Necrofagia Noturna

Vagando solenemente pelos campos verdes-prateados da noite na clareira, eu me deparei com um corpo todo envergado sobre algo que lhe repousava às pernas. Observando percebi que o desespero rondava o ar daquela cena, meu medo incompreensível (do que eu conheço) me fez recear e olhar para trás, para ver se haveria algo que me encorajasse a voltar para o acampamento, mas nada aparente circundava a noite nas árvores. Continuei a me aproximar das formas informes ao banho de prata. Percebi resquícios vagos de sangue enquanto andava, muito lentamente, até lá; tais resquícios logo se transformaram em poças vermelhas, cada vez maiores que, para minha tormenta, levavam em trilha até as formas que eu buscava. Minha formação como agnóstico indeciso me forçou a fazer o sinal da cruz, não que crisse realmente naquilo, mas proteção, em horas de medo, é sempre bem-vinda. A cada passo meu, mais o medo invadia-me. Houve hora que parei e desejei ter coragem para desatar em uma correria incessante, mas sou covarde, e continuei a me aproximar da estranha cena. Agora a poucos passos do objeto de meu medo e desejo percebo que ainda não consigo entender direito o que era, parecia como alguém mordendo fortemente um corpo, logo após ingerindo, rudemente cada parte arrancada. Parei, embasbacado, tentando identificar qual seria aquele corpo, desejando profundamente que fosse um veado ou animal da floresta, mas pouco a pouco reconhecendo formas humanas no pobre diabo que estava a ser devorado. Subitamente, o desprezível predador parou o seu jantar e começou a me encarar, com a boca a pingar sangue e os olhos funestos e vazios, que eu costumava ver no espelho do banheiro de meu apartamento de luxo em Nova Iórque. Era sim um ser humano o jantar do assassino, mas não posso dizer-lhes mais se era um homem ou uma mulher, que lutou com o ser antropófago. Embora estivesse completamente carcomido por medo, meu espírito de aventureiro me fez reagir àquilo tudo com diversas indagações, repletas de ódio, ao canibal postrado à meus pés, com a refeição ainda por comer. Houve, porém, algo inesperado naquela hora, assim que abri a boca para reclamar a vida (ou a paz eterna) da pobre criatura, nenhum som saía da minha boca. Comecei a me analisar e, quando voltei a prestar atenção nos dois à minha frente, tudo ficou negro como a noite. Rapidamente me vi no acampamento, deitado, olhando o céu sem estrelas. E, depois disso, outra forma negra cobriu-me os olhos. Levantei-me e fui ao banheiro, lavar o rosto, para me recuperar do pesadelo. Antes, olhei pela janela, na cobertura do prédio, o céu tinha uma lua cheia cheia de constelações pontilhadas, à sua volta. Retomei meu caminho ao banheiro e lavei o rosto, com a luz bem acesa. Voltei o rosto para o espelho e os mesmos olhos funestos me espreitavam do outro lado do espelho, a mesma criatura desprezível jazia, embasbacado à minha frente, encarando-me através do limiar o espelho. O antropófago era eu, logo pensei: "Ora, era só uma forma de continuar a sobreviver, em últimas estâncias, alimento." Voltei a dormir, e minhas noites nunca mais foram povoadas por essas cenas de morte. Continuei a viver minha vida, ainda com olhos funestos e vazios, mas sem ter provado o sabor do sangue e da carne de algum homem, ou mulher.