Recomeço

- Sabe de uma coisa, esse desenho ficaria bem melhor se você não colocasse tanta força no lápis. Ei, garoto, eu to falando com você. Será que sua mãe não te ensinou que é falta de educação ignorar os outros? Ou ela não teve tempo de fazer isso antes de morrer?

- Sai daqui.

- Ah, consegui sua atenção. Parece que a menção da sua mãe desperta alguma coisa ai dentro.

- Eu pedi pra você sair daqui.

- Sim, eu escutei, não sou como certas pessoas que se fazem de surdas.

- Mesmo? Não é o que parece.

- Ok. Entendi a indireta, estou me retirando. Pelo visto você não quer saber como trazer seus amados de volta.

- O que você falou?

- Mais uma vez chamei sua atenção. Você tem algum dispositivo que apita quando alguém menciona a morte?

- Para de ser idiota e sai daqui.

- Mas que contraditório. Tem certeza de que não quer ouvir sobre isso?

- Ouvir o que? Um monte de baboseiras saindo da boca de um maluco?

- Para a sua informação eu não sou maluco. Por que pensou isso? Porque eu falei sobre ressuscitar mortos? Os humanos são tão engraçados, acreditam que um cara foi capaz de ressuscitar há mais de 2000 anos, mas não crêem que isso pode acontecer de novo.

- Você fala como se não fosse humano.

- O que te faz pensar que eu sou?

- Não sei a maioria dos humanos que eu conheço se parecem com você.

- Nem tudo é o que parece ser.

- Olha cara, eu tava tentando ser legal com você por causa de todo esse negócio de direitos humanos e não discriminar ninguém, coisa e tal, mas você está claramente bêbado, então, por favor, volta pra calçada onde você dorme.

- O que? Acha que sou um mendigo? Garoto você é pior do que pensei, e ainda por cima acha que eu to bêbado. Vamos lá, o que te fez pensar nisso tudo? Minha barba por fazer? Meus cabelos longos? Talvez sejam minhas rugas ou olheiras, ou quem sabe meu olhar de cansaço. Bêbado? Você deduziu isso pela minha aparência ou pelo meu papo de voltar dos mortos.

- Um pouco dos dois, mas olha me desculpe se te ofendi, não foi minha intenção, de verdade, contudo não to no meu melhor momento, então se você puder me dar licença eu agradeceria.

- Bom, gostei da sua educação, ainda tem esperança para você. Importa-se de eu me sentar?

- O certo seria perguntar antes de já ir sentando.

- Certo, errado, tudo uma questão de ponto de vista.

- Talvez. Se puder me dar licença, tenho que ir andando.

- Não se levante ainda, você pode se interessar pelo que eu quero falar.

- Duvido muito.

- Me dá uma chance?

- Você tem dez segundos para chamar minha atenção.

- Mãe, pai, irmão, irmã recém nascida, namorada. Isso te lembra alguma coisa? Deixei-te sem palavras, hein? Agora senta aqui e vamos ter uma conversa.

- Se isso for uma piada, não tem graça.

- Confia em mim, nada do que eu irei falar é brincadeira. Aliás, vou ser bem sério agora. Por que matou todos aqueles que você amava?

- Do que você ta falando? Eu não matei ninguém.

- Não é o que me parece.

- Cara, quem é você?

- Espero que descubra isso até o final essa conversa.

- Não to pra brincadeiras.

- Achei que tivesse deixado bem claro que isso não é brincadeira. Você é um assassino, garoto.

- Já falei que não matei ninguém.

- Por que tem que ser tão teimoso, hein? Mas fique tranqüilo, nós vamos trazer todos aqueles que você matou de volta.

- Ta bom, digamos que eu tenha matado alguém, como você espera ressuscitar uma pessoa?

- Isso é fácil, basta apenas terminarmos de conversar. Agora, fale-me da sua vida, você faz alguma coisa de diferente além de vir para museus e copiar as obras em exposição no seu caderno?

- Não sei como isso vai ajudar a trazer alguém de volta.

- Vai ajudar se você apenas responder minhas perguntas.

- Não faço nada de extraordinário. Vou pra escola, volto ao orfanato, desenho bastante, só venho nos museus quando consigo fugir.

- Orfanato? Que tristeza.

- Meus pais morreram há sete anos. Faz tempo, já não é tão triste assim.

- Mentiroso. Mas isso é só o começo. Conte-me de quando seu irmão morreu. Foi na rua, certo?

- Como você sabe disso?

- Saber das coisas é parte do meu ser.

- Já sei. Você é um psicólogo que eles mandaram para me persuadir a voltar por vontade própria. Mas que clichê.

- Errado. Faltam duas chances. Voltando, seu irmão morreu e você se sente culpado desde então. Por que mesmo?

- Não me sinto culpado. Ele morreu espancado por uns caras na rua. As pessoas não gostam de serem roubadas.

- Faz sentido. Mas você se sente culpado sim, não tente mentir para mim.

- Não menti. Não foi culpa minha.

- Então fugir da casa adotiva não foi ideia sua? Roubar as pessoas para conseguir um dinheiro não foi culpa sua? Se você tivesse pegado um pouco de comida...ou tivesse planejado as coisas um pouco melhor, nada disso teria acontecido.

- Isso é mentira.

- É?

- Uma parte. Sim, foi tudo ideia minha, mas ele não teria morrido se não fosse tão lento.

- Então você o culpa? Seu caso é realmente bem pior do que pensei.

- Não, eu não o culpo, mas se tivesse sido só um pouco mais rápido teríamos uma chance.

- Como você quer que ele tenha sido mais rápido? Você sabe que seu irmão nunca foi do tipo atlético. O erro foi seu, completamente seu e apenas seu.

- Não. Não foi. Não pode ter sido.

- PARA DE SER TÃO COVARDE. Seu pai estava certo, você é um grande medroso que não assume suas responsabilidades e não tem coragem para proteger aqueles que ama.

- Não venha me falar do meu pai.

- Claro que eu falo, principalmente por que ele estava certo. Você não tem coragem de assumir seus erros, não teve coragem para proteger seu irmão. Nem capaz de chamar a polícia você foi. Tem noção de que sua covardia matou seu irmão e seus pais? Que tipo de idiota não é capaz nem de chamar os policiais quando tem ladrões invadindo?

- Eu não chamei a polícia porque meu pai pediu para não fazer isso, era apenas para me esconder e ficar calado.

- Desculpas e mais desculpas, só isso que você tem. Aceite logo, aceite o fato de que você é culpado pela morte de seus pais e pela morte de seu irmão.

- Não sou... Não sou culpado de nada.

- Por sua causa seu irmão nunca mais vai falar de seus video games e nunca mais vai reclamar de seus pés doendo depois de tanto andar. Como você acha que ele se sente sabendo que seu irmão mais velho, seu exemplo, a pessoa em que ele se espelhava, não passa de um garotinho covarde que não é capaz de fazer nada? Ele ta decepcionado. Não mais decepcionado do que seu pai. Aquele homem nunca te aprovou e você sabe disso, você nunca foi bom o bastante. Será que o rancor disso o fez deixá-lo morrer?

- O quê? Não. Nunca. Eu amava meu pai.

- ENTÃO POR QUE NÃO FOI CAPAZ DE PROTEGÊ-LO? Seu mentiroso. Você não o amava, por isso não chamou a polícia. Sua mãe ficaria feliz em saber disso? Em saber que seu filho é um egoísta que deixou os próprios pais morrerem, que é culpado pela morte do irmão e nem coragem de assumir isso tem? Ela gostaria disso?

- O que você quer que eu diga? Sim, é culpa minha. Se eu não fosse covarde meus pais estariam vivos agora. Meu egoísmo me fez fugir de casa e levar meu irmão comigo e fazê-lo ser morto. Por todo esse tempo eu fui atormentado por isso. Qual é seu objetivo aqui? Deixar-me miserável como naquela época?

- Meu objetivo é fazê-lo confrontar seus sentimentos. Fugir não adianta, se você fugir estará desistindo e essa não é a solução.

- Não estou fugindo. Só me acomodei com a situação. Trazer todos aqueles sentimentos de volta não vai ajudar em nada.

- Só de pensar assim você está fugindo, mas disso você entende né? Sem problemas então, corra dos seus sentimentos do mesmo modo que correu de casa depois que sua irmã morreu.

- Não fale disso, eu tive motivo para correr.

- Teve mesmo? Vejamos finalmente você encontra um casal que quer te adotar, são boas pessoas, gentis, carinhosas, compreensivas, cheias de amor para dar, mas incapazes de ter um filho, então resolvem adotar, mas olha que coisa engraçada, poucos meses depois a mulher engravida. Que felicidade, um milagre acabou de acontecer. Todos estão radiantes, menos o adotado, ele sabe que essa criança será o centro as atenções, ela vai roubar todo amor e carinho só para ela, o bebê nasce e é exatamente isso que acontece. Quanta inveja, quantos ciúmes, se pelo menos tivesse um jeito de se livrar dela.

- Por favor, para de falar, eu te imploro.

- De que adianta chorar agora? Naquela hora você não chorou, não, foi frio como uma cobra. Viu sua própria irmã sufocando com um travesseiro e não foi ajudá-la, quanta crueldade. Deixar um bebê morrer é frio pra cacete.

- Eu não estava pensando direito, não era minha intenção.

- Não era sua intenção? Garoto, faça-me o favor. Você tinha plena consciência do que queria.

- Claro que não. Eu amava aquela criança, ela significava um novo começo, nunca foi minha intenção que ela morresse.

- Então qual era o objetivo?

- Dar um susto nos meus pais, era isso o que eu queria. Eles não cuidavam dela, deixavam tudo pra mim, eram péssimos em tomar conta de um bebê. Foi só uma pequena lição, eu... eu não queria... não era pra isso ter acontecido.

- Aconteceu, e mais uma vez você fugiu, como o grande covarde que é.

- Eu não era capaz de olhar na cara deles, não depois disso, então fugi.

- Sim, sim. O que te faz pensar que fugir é a solução? Sua consciência te acompanha pra onde você vai. Uma batalha não é vencida até ser travada. As conseqüências existem, não importa o quanto você fuja elas vão te alcançar, uma hora você terá que pagar, pare de fugir e aceite logo isso.

- Você é Deus, esta aqui para me punir por tudo o que eu fiz.

- Não, seu plano ainda não funcionou, garoto. Não sou Deus, e mesmo que eu fosse não seria eu o responsável por te punir. Só resta mais uma chance.

- Ta bom, já entendi, não irei mais fugir dos meus sentimentos, vou enfrentar o que tiver que enfrentar e aceitar as conseqüências dos meus atos.

- Tenho certeza de que é isso o que ela gostaria que você fizesse.

- Não. Para. Por favor, para. Você falou do meu pai, da minha mãe, do meu irmão, da minha irmã, me fez ver que fugir não é a solução, já até me arrependi, mas ela não, não fala dela.

- Ainda é muito recente? Desculpe-me, mas esse assunto é um ponto vital disso. Fale-me dela.

- Ok. Conhecemo-nos no orfanato. Eu estava desenhando quando a avistei pela primeira vez. A coisa mais linda que já vi em toda a minha vida, os olhos claros, da cor do mel, o sorriso tão branco quanto as nuvens em um dia de sol e os cabelos cacheados e cheios, quando eu a abraçava sentia o cheiro deles, cheiravam a canela, sempre me perguntei qual era o creme que ela usava. Às vezes nos deitávamos na minha cama, um ao lado do outro, e eu era capaz de achar que nada mais existia. Todos os meus problemas sumiam as mortes que me rondavam, a culpa que me atormentava, o medo de descobrirem o que eu fiz nada disso importava, quando estávamos juntos nada mais exigia a minha atenção, apenas eu e ela. Nunca fiz um desenho dela, achava que não era capaz de retratar aquela beleza, por isso sempre que me pediam para desenhá-la eu falava que não, pois ela era tão perfeita que qualquer desenho que não retratasse essa perfeição corretamente nem deveria existir. Olha, eu não sei quem você é, mas já deve ter se apaixonado, já deve ter sentido amor em sua forma mais pura, era isso o que eu sentia. Muita gente acha que encontrou o amor de sua vida, mas sempre tem aquela pequena voz que fica perguntando se aquela é de fato a pessoa certa, com ela essa dúvida não existia, eu tinha certeza de que aquela era a mulher da minha vida. Então...por favor, não me fale dela, não me fale de sua morte, não fique jogando na minha cara que a culpa é minha, porque eu sei que é. Eu sei o que eu fiz. Sei que eu que a levei para beber naquela noite e que ela só foi sequestrada, violentada e morta por minha causa. Já me atormento o suficiente todos os dias, não preciso que você faça isso também. Às vezes não queria tê-la conhecido, se não fosse por mim aquela criatura perfeita nunca teria sofrido esse destino tão cruel. Sabe de uma coisa, não acho que você seja Deus, porque Ele não existe. Deus é um mito que as pessoas criaram, e se ele existe então é o ser mais cruel do mundo, ele é mal por levar as melhores pessoas embora, as mais gentis, justas, bondosas, que nunca fizeram nenhum mal, são levadas, enquanto eu, que não mereço viver fico aqui, isso não é justo, eles não mereciam isso, eu mereço, EU MEREÇO, morrer, sofrer, isso é para pessoas como eu, não para os anjos que existiam nesse mundo.

- Você fala da morte como se ela fosse um castigo. A morte é parte da vida, uma só existe por causa da outra. Ninguém merece morrer, mas todos devem. Essas pessoas, anjos como você as chamou, iriam morrer de qualquer jeito, não importa o que você fizesse. Não foi culpa sua...não se atormente por algo que não fez. A maldade das pessoas os arrancou de você. A maldade dos bandidos que invadiram sua casa, dos homens que espancaram seu irmão sem piedade, dos animais que fizeram aquilo com a sua namorada. A sua irmã foi um erro seu, não tem como escapar disso, lide com essa atitude, não corra dela. Essa criança não deveria existir, mas existiu, e sabe por quê? Para te ensinar uma lição, porém se você fechar os ouvidos ela terá morrido em vão. Todas essas pessoas existiram para te ensinar algo e morreram pelo mesmo propósito, se você jogar isso fora... nada terá valido a pena. A culpa da morte física deles não é sua, mas a morte deles em seu coração é. Eu estou aqui para ressuscitá-los. Eles morreram, aceite, nada irá mudar esse fato, mas confie em mim, a morte não é o fim, ela não é tão má assim, o problema é que as pessoas não entendem a função dela. Você amava todas essas pessoa, então as traga de volta, ressuscite-as em seu coração, você é o que restou dessas pessoas aqui, se você deixar de existir, então eles deixarão de existir.

- Agora...agora é tarde...eu já tomei mais de uma cartela de remédios, é fatal, só me resta algumas horas.

- Não te resta mais nada, os remédios já fizeram efeito. Eu estou aqui para lhe dar outra chance. Apenas me diga se você quer, e então não deixo você entrar no meu domínio.

- Eu quero...quero mais que tudo. Voltar...encarar a vida. Por favor, faça isso por mim.

- Então que assim seja. Antes, uma última pergunta. Quem... eu... sou?

- Você é o ser mais temido do mundo, e mesmo assim talvez seja o mais gentil. Você acaba com a miséria das pessoas, dá um fim no sofrimento e ainda assim não é compreendido. É o fim de muitos e o começo para alguns. Você é a Morte.