FUI TESTEMUNHA DE UMA CHACINA

Lembro claramente daqueles olhos a me encarar, brilhantes e azuis como o céu, frios de fazer tremer a alma. A última coisa que pensei foi: “Essa será minha última respiração”. Não aconteceu comigo como vejo os outros dizerem, que a vida passa como um filme na hora da morte, não, comigo foi um medo e uma ansiedade sem fim, podia ver refletido nos olhos dos outros dois o mesmo medo, antes daquele barulho ensurdecedor e depois a morte.

Não sei o que foi pior testemunhar, se o medo antecipado ou a própria morte refletida em seus olhos sem vida.

Ele era o rapaz mais bonito da minha rua, sempre via as moças suspirarem e falarem dele, mas nunca dei a devida atenção ao que diziam. Chamavam de “boy”, sempre bem vestido e educado, cumprimentava a todos com cortesia de uma pessoa simpática. Sua casa tinha muros altos, não se via como era por dentro. Muito discreto e sua família era do mesmo jeito, eram tão artificiais quanto ele, eu tinha a impressão que apenas representavam, era intuição.

Como sempre trabalhava não percebia nada de estranho naquelas pessoas, até aquele dia. Jesus como foi ruim!

Saí do trabalho tarde demais naquele dia, corri quanto pude para chegar a tempo na escola, mas não consegui, o portão estava fechado e não me deixaram entrar. “Merda, atrasada novamente”, pensei. Resolvi ir andando para casa, estava cansada e pensativa e por isso me distraí, logo estranhei o silêncio da rua, não era comum aquilo na periferia, algo não ia bem. Fiquei tensa e todos os meus instintos em alerta. Foi aí que aconteceu.

Os três meninos vieram correndo em minha direção, os três com armas na mão. Vi o desespero deles e soube naquele instante que eles fugiam da morte. Conhecia os meninos desde sempre, vendiam na esquina e viviam do corre.

Naquele momento não consegui reagir, não sentia minhas pernas era como se elas estivessem enraizadas ao chão. Queria correr, mas estava pesada demais. Segundos de decisões, não quero morrer preciso reagir, era a voz em minha cabeça. Olhei para o lado e busquei uma saída, vi um beco que tinha um escadão deserto e meio destruído, com muito esforço subi para me esconder, nesse beco havia uma casa em construção, assim que a vi soltei os livros e entrei. Corri até os fundos e me abaixei no cantinho, eu tremia, tremia muito. Não demorou e logo ouvi tiros, passos apressados e gritos, não queria ver nem ouvir nada, mas meu corpo não obedecia minha mente e tive que assistir a tudo.

Dois dos meninos já desarmados e sangrando entraram na construção, um chorava e o outro veio andando de costas até esbarrar em mim, esse menino virou e me olhou, pude ver sua alma gritando através de seus olhos, secos e desesperados diziam para mim que iríamos morrer. Ouvi o tiro e ele olhando para mim caiu, continuou me encarando derrotado, a morte o levou.

De muito longe ouvi uma voz que falava zangado, aos poucos virei minha cabeça para aquele som que dizia: “Ah, não acredito. Veja o que você fez seu verme, sujou todo o rosto da menina”.

Quando olhei naquela direção veio o reconhecimento, vi os olhos azuis do rapaz mais lindo da rua, ele se abaixou perto de mim e me pediu desculpas. Pensei: ele vai me matar agora. De repente um barulho me chamou a atenção, o outro menino que chorava agora estava descalço e se arrastava sangrando, porém ele apontava uma arma para mim, não entendi mais nada, por que eu?

O rapaz bonito levantou-se e olhou para o menino ensanguentado, disse: “Larga a arma seu lixo, sabe que vou te matar”. Em resposta o menino me olhou raivoso, senti o ódio em suas palavras: “Essa cadela assistiu a tudo e nem pra gritar presta”, depois o tiro, depois o líquido quente descer no meu rosto, depois o frio. Quando olhei para o rapaz bonito, ele estava em cima do menino caído, ouvi um tiro, dois, três, perdi a conta quando tudo apagou. Mergulhada na escuridão ouvi uma voz distante que dizia para que eu não morresse, “morre não mocinha, você tem que estudar e sair daqui”....daí mais nada, acabou.

Quando acordei estava no hospital, pois é não morri. Nem eu mesma acredito. Não sabia o que estava fazendo ali, aos poucos comecei a recordar, o medo de tudo voltando, parecia que tinha tido um pesadelo, não poderia ter sido real, era macabro demais. Porém ao perceber que havia policiais em meu quarto, caí na real, aconteceu sim, comecei um choro compulsivo. Eles me disseram para ficar calma, haviam me encontrado caída com meus livros naquela casa em construção, juntamente com três mortos, um na entrada e dois no mesmo cômodo que eu. Tinham recebido uma ligação anônima informando um tiroteio com uma moça sobrevivente. De imediato queriam saber o que eu lembrava, mas eu estava em choque. Os médicos avisaram que eu não tinha condições naquele momento de falar.

O medo cresceu ao me dar conta que eu era a principal testemunha de um crime, uma pessoa marcada para morrer. Por que não morri? Era algo que eu me perguntava todos os dias, nunca entendi essa maldita sorte. Levei um tiro na cabeça e não morri, ele passou de raspão, não afetou em nada, sobrevivi.

Quando voltei para casa minha tia disse que todos os dias, aparecia um rapaz muito educado perguntando por mim. O medo voltou rapidamente e fiquei pálida. Lembrei-me daqueles olhos azuis que me encararam na hora da minha morte. Não saí de casa, fiquei isolada de tudo, repetia sempre que não me lembrava de nada, a polícia insistia, foi pior que morrer.

Logo começaram a ligar em casa, ameaçavam, queriam saber quem matou os meninos do corre, não era a polícia, era o crime que queria cobrar vingança. Eu estava sendo pressionada de todos os lados, não suportava mais.

Passando os dias fui tentando me acalmar, não tinha o que fazer, já estava feito. Certo dia minha tia conversando comigo, pediu que eu fosse aquela casa em construção, tentar recordar, não queria, mas de tanta pressão fui. Quando vi já estava dentro daquela casa, fui ficando sem ar, minhas pernas ficaram moles e veio o medo, medo que congela. Senti cansaço, queria correr dali, mas não pude. Ouvia vozes falando comigo, me perguntando coisas, não falava, só ouvia e olhava aquele lugar muda, foi quando ao me virar para sair o vi. Em pé no canto usando uniforme e capuz, estavam àqueles olhos azuis, não eram outros olhos, reconheci o gelo, e um aviso mudo, não gritei apenas caí numa escuridão.

Como um fantasma ele me seguia, podia sentir sua presença em qualquer local que eu estivesse, aparecia do nada e eu sempre fugia, eu sabia que uma palavra errada e eu morreria. Não havia nada que eu pudesse fazer, ele tinha um uniforme.

Tentei recomeçar minha vida, voltei à escola, mas nada estava igual, perdi o interesse e não conseguia me concentrar em nada, na hora da saída foi o mais difícil, o medo me consumia. Depois de uma semana decidi que não iria mais estudar, precisava fugir daquilo tudo, estava sufocada demais. Num impulso fui até a esquina comprar com os meninos. Estava lá ansiosa e apreensiva, nunca pensei em fazer nada disso, mas o medo, a angústia e o desespero faz a gente agir como louco.

De repente parou um carro, alguns uniformes saíram de lá, gelei quando reconheci quem estava ali, o assassino. Os meninos da esquina correram, eu não pude, não tive chance. Ele me pegou pelo braço com mais dois, me colocaram dentro daquele carro, eu tremia sem parar, só pensava que agora não tinha jeito, eu ia morrer. Porém com o medo da morte também veio à libertação, porque assim como tinha medo de morrer também passei a desejar a morte e assim me libertar daquilo que vivia, dizia a mim mesma: “não vou mais ter que esperar, agora acabou”.

Não, não, não morri.

Depois de ouvir por duas horas vozes e vozes, fui colocada em um ônibus para algum lugar, com a sentença de sumir e viver, fui embora com uma caixa de segredos e motivos.

Nunca mais voltei.

Malika Cruz
Enviado por Malika Cruz em 11/04/2017
Código do texto: T5967424
Classificação de conteúdo: seguro