Pesadelo

Os médicos disseram que me restavam duas, talvez três semanas. Pela janela do quarto do hospital de custódia observo as luzes dos meus últimos dias.

Lembro-me de que era uma terça-feira de uma noite de final de junho. Estava assistindo a um programa na TV sobre religiões e crenças antigas. O documentário asseverava que tanto o divino quanto o diabólico não passavam de criações puramente humanas. Posicionamento este que eu perfilhava há muito. A certa altura, pareceu-me que ocorrera uma oscilação na energia, as lâmpadas tinham piscado ligeiramente, mas a TV não chegou a desligar. Não dei importância ao fato e continuei a assistir à programação. Alguns instantes mais e novamente a energia oscilou, as lâmpadas piscaram e logo em seguida tudo se apagou.

Olhei pelas vidraças da sala do meu apartamento, apesar de não ser dia nublado nem de chuva, toda a cidade estava envolvida no mais intenso breu. Enquanto pensava comigo que diabos poderia ter causado aquela súbita queda de energia, julguei, por uma fração de segundos, divisar algo como um espectro no lado mais escuro na sala. Fixei meus olhos naquele ponto da sala e comecei quase a rir de mim mesmo pelo ridículo da situação. Que tolices eram aquelas?! – pensei. Quando ia desviar meus olhos, vislumbrei a imagem novamente, naquele instante, porém, mais intenso. Parecia que estava me observando, vigiando-me. Um estranho desconforto apossou-se de mim.

Acordei agitado, que pesadelo mais incomum aquele! Acordado, notei que o quarto continuava escuro, julguei ser por volta de três ou quatro horas da madrugada. Ajeitei-me na cama para voltar a dormir. Em uma reação instintiva, corri os olhos pelo quarto e no que ia fechá-los, um súbito terror tomou conta de mim. Naquele quarto escuro eu estava vendo o mesmo espectro que vira no pesadelo de há pouco. Distinguiam-se dois olhos escuro-avermelhados na parte superior daquele avantesma que se me parecia nítido como uma mancha disforme ainda mais escura no escuro do quarto. Fui tomado de uma angustiante opressão, de um mal estar beirando o enjoo. Quis-me levantar, pular da cama, mas nenhum só músculo se moveu. Tentei gritar, mas o grito ficou preso na garganta.

Todo suado, acordei novamente. Outro pesadelo! Um pesadelo dentro de um pesadelo! Julguei que fosse pelas cobertas que me fizeram passar calor, ou talvez do jantar um pouco tarde e pesado. Senti ainda, ao relembrar o estranho pesadelo, um leve calafrio percorrer-me o corpo. Levantei-me. Acendi a luz, fui até a cozinha e bebi água. Olhei o relógio da parede, quatro e trinta. Teria ainda duas horas de sono. Voltei ao quarto já mais serenado. Era incrível como nossa cabeça era capaz de criar fantasias que se nos pareciam tão reais durante o sono a ponto de nos infundir verdadeiro medo. Apaguei a luz, voltei a deitar.

Acordei com o despertador. O resto da noite fora de um sono tranquilo e reconfortante. Levantei-me, tomei uma ducha e em seguida uma xícara de café antes de sair para o trabalho. Já esquecera o pesadelo, os pensamentos estavam voltados para as ocupações do dia.

Dirigindo para o trabalho, com os vidros do carro abaixados e ouvindo música, curtia o ar fresco da manhã ligeiramente nublada. Ao que ia me aproximando da Rua Burundanga, não pude deixar de reparar numa moça de extrema e exótica beleza cruzando a rua. Meus olhos hipnotizados acompanharam seu sensual desfilar. Lembro que a moça me notara, pois também ela me olhou. De repente, num átimo, atemorizado julguei ver em seus olhos os olhos do espectro do pesadelo havido.

Um baque surdo! Buzinas! Gritos! Não lembro muito daquele momento. Falavam de uma criança. Vi luzes piscando. Ouvi imprecações, sirenes.

O tribunal considerou-me culpado pelo atropelamento de uma criança de sete anos que passava na faixa de pedestres enquanto eu avançara o sinal vermelho.

Cumpri três anos e meio da minha pena em uma cela úmida e mal iluminada, entre outros mais socialmente desqualificados. Certo dia comecei a sentir uma tristeza profunda e a ela logo se associou um cansaço crescente, dominador. Comecei a ter desmaios. Fui examinado diversas vezes. Tiraram radiografias, coletaram sangue e outros fluidos. Minha saúde estava fragilmente abalada. Dado o meu grave estado de saúde, acabei sendo transferido para o hospital de custódia.

Até aqui, mesmo durante o julgamento, calei sobre os eventos que precederam o atropelamento daquela inocente criança e não saberia dizer exatamente por quê. Continuo sem uma resposta de o porquê tudo ter acontecido da forma como aconteceu. O certo é que a última noite fez com que eu mudasse de ideia. Sonhei que estava caminhando em uma sombria estrada ladeada de prateleiras repletas de livros e de inscrições que catalogavam todas as descobertas científicas e todos os grandes feitos da humanidade. Entre essas prateleiras e inscrições havia espaços em que podia ver os mais renomados cientistas já conhecidos. Todos pareciam gravemente pensativos e compenetrados como que a buscar uma resposta para alguma grande questão. Ao longe, aquela estrada onírica se tornava mais umbrosa e justamente ali, em seu ponto menos iluminado, mais uma vez identifiquei o espectro dos meus pesadelos e dessa vez pude-lhe ouvir a voz: “és estúpido, mostro-me, destruo-te e continuas a me negar”.

Ao ler este registro já não mais estarei aqui, deixo-o, não para justificar minha falta, mas porque talvez, apenas talvez, algum dia se jogue uma luz sobre os estranhos eventos que me fizeram colher a vida de um inocente e acabaram por levar a minha também.

Dimas A Reichert
Enviado por Dimas A Reichert em 06/04/2017
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