O Pavó
O Pavó
Gustavo estava no zoológico com seus pais. Era mais um daqueles passeios para suprir a ausência deles em casa. Como sempre, seu pai digitava no smartphone e sua mãe estava numa ligação, falando sem parar. Mesmo assim, o garoto sentia-se animado, aquele era seu passeio favorito. Quando não estava na escola, estava na frente da TV assistindo aqueles canais sobre a vida animal.
Toda vez que ia ao zoológico era como que fizesse parte de um daqueles programas. Sempre ia vestido a caráter. Roupas camufladas, 'botas de aventureiro', binóculos pendurado no pescoço e uma câmera fotográfica profissional, presa no pulso.
O menino conhecia cada animal que visitava, seus pais o seguiam como cães adestrados. Algumas vezes ele falava sobre os hábitos alimentares ou sobre alguma curiosidade que conhecia, mesmo sabendo que ninguém o ouvia.
Chegaram na ala das aves, seus animais favoritos. Havia um enorme galpão montado com um cartaz que dizia: " Exposição Asas da Metrópole, venha conhecer os pássaros da nossa São Paulo". Entraram e deram de cara com um grande corredor cheio de gaiolas de ambos os lados, que abrigavam centenas de aves. A maioria piava e voava de galho em galho. O barulho era ensurdecedor e o cheiro sufocante. O garoto ignorava as duas coisas. Estava contente por não ouvir mais a voz da sua mãe falando sem parar, ou a gargalhada exagerada de seu pai, quando via algo no celular.
Passava por cada gaiola citando os nomes das especies sem precisar ler as placas. O colorido dos pássaros o fez sorrir pela primeira vez naquele dia.
- Vamos logo Gu. - Sua mãe disse mal humorada, o empurrando. Não conseguia mais ouvir sua ligação.
Seu pai seguia os dois as cegas, não fazia a menor ideia de onde estava. Participava de um debate acalorado sobre seu time de futebol, num grupo de Whatsapp.
Gu acelerou o passo mas não parou de citar os nomes.
- Cardeal. Bem-te-vi. Anu-branco. Pica-pau-barrado... - Ele parou de repente. - ESPERA! - Teve que gritar para que sua mãe parasse de empurra-lo. - É o Pavó!? - Desta vez leu a placa para ter certeza.
Na gaiola a sua frente havia apenas um pássaro. Estava parado no meio do puleiro, cabisbaixo. Era todo negro, com as garras e o bico cinzas e o peito coberto de penas vermelhas.
- É um Pavó mãe. - Disse animado. - Está em extinção... - A ave solitária estava de cabeça baixa.
- Tá tá, eu vou esperar lá fora... - Ela respondeu saindo, passando a mão automaticamente em sua cabeça.
O pai tirou os olhos da tela. Não sabia se seguia ou se ficava. Quando percebeu seu filho parado, se aproximou dizendo:
- Eai garotão, vamos?
- Olha pai. É um Pavó. - Gustavo apontou. Neste instante o pássaro ergueu o olhar. - O peito desse é diferente, mas na placa ta escrito Pavó.
- É ... bonito né filho? Vou comprar um pra você tá ... Vamos? - Disse se afastando.
- Ele ta em extinção pai. Num vende.
O garoto ficou ali parado observando o Pavó, que não piava e nem se mexia. Ele então decidiu pegar sua câmera para registra-lo. Quando o olhou através da lente, se assustou, ao perceber que os pequenos olhos do animal estavam focados nele. Começou a sentir um incomodo. Como se alguém se aproximasse por trás. A sensação de proximidade foi aumentado cada vez mais, até o momento em que ele se virou de uma vez, sobressaltado. Atrás dele havia somente uma gaiola vazia e seu pai estava mais adiante no corredor, gargalhando para o celular.
Ele voltou a atenção para a ave, assim que ergueu a câmera novamente, ela desligou. "Sem bateria", acusou. Gustavo achou estranho, ele tinha certeza de ter a carregado completamente antes do passeio, e essa era a segunda vez que a usava.
Ao perceber que o pássaro ainda o olhava fixamente, sentiu um calafrio subindo-lhe pela espinha, saiu correndo até seu pai.
- Vamos - disse já pegando sua mão.
Seu pai se soltou irado.
- Mas que po... Desligou !? Oque...? - seu smartphone se apagou. - Sem bateria? Que absurdo. Estava 80% agora...
Saíram de mãos dadas. A mãe se surpreendeu com a cena, porém não percebeu o rosto furioso do marido. Nem a expressão assustada do filho.
- Que coisa linda vocês assim... Eu falei que esse passeio seria bom. - Disse se aproximando com telefone na orelha. - Alô? Rose? Ro, tá aí? Sem bateria? Mas...
- Sério!? - O pai interrompeu sorrindo. - O meu acabou de desligar também.
- Deve ser aquele carregador que você comprou! Eu disse que não valia nada...
- É ? Na próxima vez eu não compro nada pra você então..
- E o que você compra pra mim? Eu lá preciso do seu dinheiro ? ...
E assim começaram a brigar.
Gustavo já estava acostumado com aquilo, todos os passeios em família terminavam quando a discussão começava. Sua mãe agarrou sua mão livre e os três foram em direção ao estacionamento, os adultos discutiram por todo o caminho.
No fundo, Gu agradecia aquele desentendimento entre os pais. Assim iriam embora dali de uma vez. A imagem do pássaro não saia de sua cabeça. Se arrepiou ao relembrar o que sentiu quando encarou a ave. De vez em quando olhava para trás e para os céus procurando algum sinal do Pavó, tinha a sensação de estar sendo seguido.
No carro, a discussão aqueceu. Agora o motivo era ver quem iria carregar o celular primeiro. O pai se preocupava com o que seus amigos estavam pensando sobre seu silêncio no grupo. A mãe só queria ter alguém que a ouvisse sem interrupções. O garoto estava de coração acelerado, preso ao cinto do banco de trás, em silêncio. procurava no céu, seu perseguidor.
O pai só saiu com o carro, quando conseguiu se manisfestar no grupo. Gravou um áudio cheio de palavrões e falas maliciosas, na intenção de provocar a mulher. Ela por sua vez, conectou o celular no carregador, mas ao invés de liga-lo, resolveu discutir sobre a atitude do marido.
Ele dirigia falando cada vez mais alto. O casal estava naquela fase em que nenhum cede e as discussões viram verdadeiras provas de resistência.
Gustavo estava sentado no meio do banco traseiro, se esticava de janela em janela observando o céu ainda preocupado. A cada quilômetro de distância do zoológico era um alívio a mais para o garoto.
O carro saiu da estrada e seguiu por uma avenida até parar num cruzamento sem semáforo. O Pavó estava empoleirado sobre a placa de "Pare". Gustavo sentiu um aperto no estomago quando viu o pássaro o encarando. Dentro do veículo a briga ficava cada vez pior. O pai, revoltado, arrancou à toda velocidade sem se preocupar em olhar para os lados. Um caminhão vinha em sua direção e por muito pouco não atingiu a lateral do carro.
Nem os gritos do seus pais, nem as buzinas estridentes distraíram o garoto. Sua atenção era toda da ave, que apesar do caos, continuava tranquila sobre a placa, o seguindo com os olhos. Ele ficou de joelhos no banco retribuindo o olhar, até um carro cruzar sua visão e o Pavó desaparecer novamente. Para o seu desespero.
Gu voltou a se prender no cinto de segurança, não se preocupava mais em saber do pássaro, pois tinha certeza que ele estava ali.
Seus pais estavam distraídos demais para reparar em como os olhos da criança se dilatava, ou no tom pálido que tomava sua pele. Não viam nem o suor que escorria de sua testa ou pelo menos a tremedeira de seu corpo.
- Mãe... Pai... Ele ... tá aqui. O Pavó.. - sua voz era um sussurro fraco e perdido entre as palavras gritadas que se gladiavam no ar.
Mesmo sentado Gustavo sentia a mesma presença de antes. Dessa vez se aproximava ainda mais. Seu corpo estava paralisado, seu coração batia no limite do possível.
- Estou aqui Gustavo. - um sussurro se fez em seu ouvido, ao mesmo tempo que uma mão terna tocava seu ombro.
Seus pais só perceberam algo de errado com o filho, quando este se atirou por entre os bancos da frente, rasgando o cinto que o prendia e ficou se debatendo descontrolado em seus colos. Arranhando e chutando os dois enquanto gritava até perder a voz.
Quando o carro colidiu contra a parede de um prédio luxuoso, ouviu-se no ar da capital, além do estrondo do ferro se retorcendo, um piado melancólico. Seguido do bater de asas do Pavó solitário.