A paciente
Três batidas na porta, e vi aparecer, nos trinta centímetros da abertura, a cabeça de Dora com sua tiara azul-marinho segurando a franja que, quando solta, tampava-lhe os olhos. __A paciente das onze está atrasada, devo esperar? Perguntou-me.
__ Não, são onze e quarenta e cinco, acho que não vem mais. Eu vou almoçar. É melhor você ir também. __ Acrescentei.
__Estou indo, porque horário da tarde está fechado, até... __ levantei a cabeça para responder, mas só vi a porta fechada e ouvi o salto do sapato se afastando. Barulho irritante, ele sempre me incomodava. A porta da frente bateu, __ ah, será que ela deixou a chave? __ É melhor eu ir também, __ pensei enquanto dava um jeito sobre a mesa, a ficha da paciente atrasada, na mão, já levantando rumo ao arquivo.
Não ouvi bater, e a porta se abriu __ pensei que Dora houvesse se esquecido de algo. Um costume dela que pensei superado, entrar sem bater. __Dora, é você? __ Já não se fazem mais secretárias como antigamente. __ Censurei verbalmente.
Então a vi. Cecília estava atrasada, abriu a porta, devagarinho e antes que entrasse, foi precedida de uma nuvem aromática: flores recém colhidas. Esqueci-me da porta aberta sem bater, e fui envolvido por uma nebulosa. Ela era uma estrela cadente atravessando a minha porta. Alta, primaveril, a mais bela espécie do seu gênero que os meus olhos já viram. As vestes eram negras, e pensei em morte, luto, mais uma perda a ser trabalhada, mas seu sorriso desmentia a hipótese. Ele fazia da boca um desenho exótico, pintado de um rosa escuro, ao meu alcance, era só esticar a mão e retocá-lo no meu passa tempo preferido: desenho artístico. Eu já me levantava e desconcertado, contentei-me em apertar-lhe a mão e indicar a poltrona a minha direita. Eram dali que eu ouvia os medos, as culpas, os dramas familiares. E foi dali, também, que veio o mais terrível dos segredos, sem drama, sem culpa. __ Ah, se eu pudesse...
__Se você pudesse voltar atrás...
__Eu não quero voltar atrás.__ foi enfática.
__Não quer, porque não pode, ou não quer por não querer mesmo?
__Você quer saber, se me arrependi?
__E não se arrependeu?
__Se tivesse me arrependido, procuraria um padre, não um profissional....__ A resposta áspera contrastava com a voz aveludada.
__Quando optou por um profissional, qual foi o objetivo?
__Não sei. O tempo é o senhor da razão. __ E sorriu segura.
_ também a insônia da eternidade. __Apreciei.
__Ah, me poupe, aforismos pernósticos, não.
__Não são aforismos, nem pernósticos. São poéticos.
__Eu sei o que são. __Falou com tanta segurança que naquele momento eu era o paciente que adentrara uns minutos antes.
__Você fez uso de alguma droga? __Perguntei torcendo para ouvir um sim; mas balançou a cabeça que não, e o sorriso de Monalisa voltou tão fácil. Levou a mão direita à boca e reparei que ela tinha um pedacinho dos lábios na ponta de cada dedo, a mesma cor de primavera: um rosa controverso, a cor e o cheiro acasalando os sentidos. Perdi-me em reflexões impróprias.
Eu divagava sobre o que ouvira e não ouvi o que ela disse, mas vi na leitura labial um pedido de licença, quando levantou e se dirigiu ao banheiro. Meus pulmões se expandiram.
Não fechou a porta e estranhei o comportamento. Quanta ingenuidade! Estranhar alguma coisa diante de tudo que ouvira. Pensei em me levantar, fugir, mas eu nunca fui um homem adepto ao bom senso, e também não deu tempo, ouvi a descarga enquanto procurava a chave, mas ela voltou à sala antes que a encontrasse.
Sentou segurando a bolsa, os olhos golpeavam os meus. Um arrepio percorreu-me da nuca aos quadris. Desde a adolescência, minhas mãos nunca me incomodaram tanto. Eu as sentia imensa sobre a mesa e, inutilmente, uma tentava se esconder dentro da outra. Ela sabia do meu desconforto, seu sorriso brincalhão fazia acrobacia nos lábios cor de primavera e confirmava o que descobri um pouco antes: ela era sádica.
Sem tirar os olhos dos meus, abriu a bolsa com movimentos bem treinados. A mão esquerda buscou e trouxe, do fundo, a tiara azul marinho que Dora usava quando deixou a minha sala. Meu queixo tremeu. Vi ou imaginei o sorriso dar uma cambalhota e ficar lá, pendurado. Eu não tinha certeza de mais nada, a não ser do suor que procurava fugir pelos meus poros. __Você precisa sair daqui, agora. __ Repetia meu bom senso.__ Mas eu continuava pasmo e suspeitando de que já fosse muito tarde.
As mãos, agora as duas, voltaram para o interior da bolsa e trouxeram um par de luvas que ela colocava, numa coreografia ensaiada e sem tirar os olhos dos meus, ela controlava o tempo. Num esforço supremo, arranquei meu olhar do duelo e o empurrei para a câmera posicionada no teto, sobre minha mesa. Ela registrou o movimento, mordeu o lábio inferior e se levantou. __Está na hora.
__Esticou a mão enluvada se despedindo.
Meu cérebro ordenou que a boca sorrisse, mas os músculos da face não obedeceram. Levantei, e tinha na mão a ficha em branco. Não havia conseguido registrar nada. No alto, só o nome e o telefone registrados por Dora.
A mão enluvada, depois da despedida, não se recolheu e continuou erguida apontando para a ficha __Corrija o nome, eu não me chamo Cecília, meu nome é Dora.
__Dora... ora...ora...__ O nome fazia eco quando ela deixou a sala. O consultório inundou-se com o cheiro de flores velhas. Tampei o nariz e a boca para controlar a náusea. Corri ao banheiro e fechei a porta. A toalha pendurada, no cabide, com o movimentou do ar deslocado, balançou negativamente. Eu ignorei o aviso.
Acerquei-me da pia, abri a torneira ao máximo, __pedi perdão aos ambientalistas, __ e dobrado sobre ela, com as mãos em concha tentava sentir, no rosto, a temperatura da água. Percebi que me molhava todo, a camisa estava encharcada, até os sapatos foram chapinhados. Fechei a torneira, estiquei as mãos e peguei a toalha que, também, estava molhada. Esfreguei-a vigorosamente no rosto adormecido, mas em alguns pontos ele queimava.
Pendurei a toalha e olhei no espelho para me compor quando me descompus por completo. Por ele, eu vi a porta se abrindo, e nos trinta centímetros da abertura, a mão de Cecília ou de Dora, enluvada.