Insônia
Ah, maldita risada, acordou-me outra vez. Certamente não me é estranha, mas não consigo me lembrar de onde. E por que o escárnio e o deboche?
Virou rotina ser acordada no meio da noite. Uma existência sem corpo abre a porta, de mansinho e em silêncio sobe as escadas, quando percebo, está ao meu lado. Afasta meus cabelos, para ter a certeza de estar sendo ouvida, e abre a garganta. Sua gargalhada se espalha, caçoa-me, tece zombaria. Às vezes eu finjo que ainda durmo, finjo para mim, porque ela sabe que foi bem sucedida. Fica ali, fazendo-me companhia, ora de pé, ora sentada. É atrevida, estridente, não tem ocupação e muitas vezes, amanhece.
Ri tanto que a respiração se acelera e ofegante quase a perde. Ouço-a e acompanho seus movimentos indiscretos. Hoje ficou um bom tempo no quarto, revirou gavetas, entornou um copo de água sobre a penteadeira, foi ao banheiro e depois perambulou pela casa.
A última noite em que esteve aqui, deixou uma torneira aberta, levantei para fechá-la e aproveitei para inspecionar o que mais ela tirou da ordem. A porta havia trancado, mas levou a chave. Não posso me esquecer, preciso exigir que hoje, a deixe num lugar visível, de preferência, sobre a mesa da sala.
Desceu já tem alguns instantes. Desconfio que desta vez a porta ficou aberta. É provável que esteja na parte externa esperando que eu volte a dormir para fazer o que de melhor ela sabe: acordar-me.
Com os nervos ao limite, levanto-me, prendo os cabelos, calço os chinelos, ainda arrumando o roupão, deixo o quarto. Atravesso a casa e testo a porta. Como previ está aberta. Como um cão de guarda eu vigio. Espero-a pelo lado de fora, mas quem eu vejo chegar primeiro e a menina de cabelos pretos trançados e olhos despertos. Essa é uma velha conhecida, tão velha que não é mais menina, é uma moça apaixonada e só tem motivos para risada, mas chega chorando e traz no braço a boneca que teve os olhos arrancados. Num movimento brusco, atira-me o brinquedo e eu consigo pegá-lo antes que se quebre.
Embalo-o só por alguns segundos, depois o terror me cerca: os olhos vazados me observam. No auge do desespero, abandono-o num lixo, mas não consigo sair de perto. Fico olhando os transeuntes, alguns até se interessam, mas a maioria não percebe, no lixo, a boneca cega.
Lá vem a moça puxando pela mão a menina que ainda chora. Junto ao cesto, pega-a no colo e aponta a boneca. Ela estende os braços agradecida e é bem vinda. Travam um diálogo que apesar dos meus esforços, não entendo.
A tríade sai uma no colo da outra. Passando por mim, enviam-me um olhar de censura e torturo-me sem remédio. Pelas costas, só é visível a moça com os cabelos desmanchados pelo vento. Acompanho-a até vê-la reduzida num esmaecido contorno no final da rua.
Tudo, agora, é silêncio. A risada não aparece e me preparo para a caçada. Um desejo louco de agarrá-la com as mãos leva a me desfazer da arma. Despejo-a num canteiro próximo e vasculho cada cantinho que me cerca. Enquanto reviro o jardim, ouço-a dentro da casa. Desafia-me, ri e faz alguma coisa em pedaços. Está armada!?
Determinada, não me acovardo, subo as escadas correndo, atravesso o corredor e entro na sala. Meu retrato de bruços ao chão em meio aos cacos. Apanho-o e trago próximo aos olhos para avaliar o estrago. Incrédula constato: os músculos na junção dos lábios se contraem e expõem os dentes. Eles se separam, desarticulam ante a explosão da risada.
Eu o arremesso longe.