33 CARCAÇAS

Saindo do esplendor contemplativo diário do manto verde de minha cidadezinha, tal dia, num desses sem categoria, classificação, apenas de calendário - dia-diário. Dirigia-me pelo asfalto quente, negro e condescendente aos pneus do meu carro, sem nenhum tráfego a me atrasar. Sem pressa, blasé, olho fito na estrada serpenteante. A gravidade nos conduzia impulsionada pelo combustível queimando o inferno dentro do motor. Fui percebendo a presença não amistosa de figuras leprosas sobrevoando todo o espaço ao redor - eram as aves de rapinas, malditas, que, assim como os chacais, as hienas e o verme comem a carne decomposta ainda fresca.
 
Comecei a observar em volta, mas o que deveria existir, outrora fosse noutra linha do Equador, não se pintava ali. Concomitantemente foi-se diluindo minha percepção ao volante em consequência às carnificinas aos meus olhos apresentadas; da Natureza agreste, semi-árida, sertão, dura e valente como é a natureza de sua gente, em trinta anos vividos nesse umbral santo do mundo, jamais tinha visto o que vi: Por todo trecho de minha viagem, só o que consegui ver era uma caatinga cansada, com muita sede; de suas árvores o que lhes restavam, somente o esqueleto de um projeto esperando um longo tempo a cobertura de sua estrutura. Convalescentes, eu sentia, via, por exemplo, que nas pequenas fagulhas de verde, havia um mínimo de resistência e de esperança ainda, como um aviso para não desistirmos.  
Não chamo mais o agreste pelo rabo, chamo-lhe agro, azedo.

O sertanejo, o ser de todos os lampejos, não é mais caricatura rica para os Sudestes ridículos, só quem sofre a nobre experiência de viver no limite é  que se sente humano realmente.

Eu, ainda contemplando o plano e o horizonte também, para não me perder ao volante, fui entendendo a revoada dos abutres, das rapinas, dos urubus... Quase que a cada quilômetro, em ambos os lados da pista, fui reconhecendo formas retorcidas parecidas a grandes caixas de papelão, mas desta vez não era lixo urbano, o que presenciava, e é aqui que começa o canto do cisne para esta crônica: Como quem conta carros na contra-mão, comecei a fazer o mesmo com aquelas caixas, que não eram caixas, eram as carcaças do gado da região, degoladas pela Seca durante o percurso. Às vezes, não era uma apenas, mas cinco, seis mortas no mesmo local. Se fôssemos colocar cruzes, como fazemos com os homens a estes inocentes, sem dúvidas essa estrada seria um grande cemitério; grandes ciprestes já os tem, cadáveres também, e o mais importante, pessoas para carpirem seus passamentos.

Na Seca só não morrem os caprinos, que teêm alma de menino, traquinos, vivem pela caatinga, pulando que nem criança, subindo nas pedras, nos morros e nos paus de rato. É, na verdade, o último sustento do personagem principal da clareira infernal do Romance de Canudos.

A chacina do Estado, contra os que nunca foram assistidos já vem de longa data, isso já é sabido, mas contar cabeças de bois, vacas e bezerros numa tarde de terça-feira e achar que está tudo bem!? Não dá!

Eu não contei 5, 10, 15... eu contei 33!
Agmar Raimundo
Enviado por Agmar Raimundo em 17/03/2017
Reeditado em 17/03/2017
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