Ciúme
Tomamos o café da manhã com Francine, mas nunca vi com bons olhos a liberdade de que desfruta do meu espaço. Sem se importarem com minha presença, comunicam-se numa linguagem que me excluí. Estou sempre observando os olhares indiscretos e os corpos que se roçam, desnecessariamente, no vai e vem da casa. Às vezes somem e a casa fica mais sossegada. Não eu que os imagino juntos e apaixonados, bebendo no mesmo cálice, amarrotando lençóis de cetim em quartos espelhados, apreciando o pôr-do-sol que nesta época do ano é violáceo. Debruço-me sobre a mesa e me entrego a um pranto alto e convulso.
Um cheiro de mar chega no vento. Não, não é um cheiro, é um barulho... É um barulho de chuveiro despejando água sobre sussurros e gemidos que se enroscam feito serpentes. Um barulho infernal que fere meus ouvidos. Agora se amam, eu ausculto a parede e fico imaginando um turbilhão de posições no território do desejo. Não penso duas vezes: eu os mato. Afogo-os na minha dor; as peles azuis e os corpos inchados, deformados, idênticos aos que apareceram ontem na praia. __ Não! Afogá-los no mar, não, não merecem. Morrer no mar é românico. Mais fácil envenená-los! Mais saboroso vê-los morrerem como os ratos: trêmulos, suados... Melhor é buscar no passado o cutelo que meu pai podava as árvores. Agarrá-los pelos cabelos e procurar no pescoço o lugar apropriado. Descê-lo. Sentir a pele se rasgando como se rasga um pano velho.
Não espero pelo elevador, disparo pela escada. Na rua, misturo-me à multidão e caminho duas quadras rumo à praça, que ironia, “Da Paz”. Tropeço numa lata de lixo e a deixo esparramada. Acelero meus passos que trabalham junto com o coração, no mesmo compasso, enquanto os procuro entre os pedestres, dentro dos carros, dos bares. Todos são iguais, olhos perscrutadores e cúmplices me dizem que sabem. As imagens me perseguem até eu alcançar a praia. Só encontro o vento empurrando, na areia, garrafas vazias, restos de lanches, copos descartáveis... um par de chinelos esquecidos, como eu, lamenta o abandono onde há pouco, tudo era alacridade.
. Galgo os doze andares com a mesma facilidade com que os desci. Não mudo de roupa e me atiro na cama. Fico medindo o quarto que de minuto em minuto dobra de tamanho pra acomodar a minha raiva. A janela luminosa se transforma num buraco negro que me suga e dentro dele, sonho com o encontro. Acordo perdida em dúvidas e fico imóvel até localizar, na parede, o brilho do relógio.
Ouço bater duas horas. Ao meu lado, ele dorme. As mãos cruzadas sobre o peito têm a posição dos mortos. Contemplo-lhe o perfil e o desfiguro em pensamento. Um suor copioso escorre-me pela fronte, banha-me o pescoço, as axilas nadam. Sinto arrepios de calor e de frio. Não há lugar pra se discernir mais nada. Um silêncio intolerável grita por mim, abro a janela com a sensação de estar sendo estrangulada. A frialdade agradável da madrugada me saúda. O céu está de um azul cobalto e nunca me pareceu tão imenso. Junto às estrelas, a via Láctea é um caminho branco no céu.__ É por esse caminho que as almas viajam. Tenho medo da morte, da cova fria, dos vermes. Ele nunca Teve!
__ O que haverá além das estrelas? Elas, agora, passeiam pelo chão do quarto e me traz a lembrança de um túmulo gigante que vimos juntos numa peça de teatro.
O medo vai se escoando, e no seu lugar a serenidade do conformismo de alguém que chega no final do túnel e sai para o infinito. Matar, matarei e ele ficará duro, frio, imóvel como as pedras.
O tique-taque do relógio golpeia o silêncio com estocadas. E vejo esvair em sangue o nosso primeiro olhar, nosso primeiro encontro, nosso primeiro beijo coroando um discurso silencioso. Depois a traição, a distância e a morte. A morte é uma escuridão total, e é ela que me guia. Na ponta dos pés, entro no corredor conhecido, seis passos, viro à direita. A porta está aberta. Tateio o cabide, passo pelo lado direito da mesa, afasto a cadeira, puxo a gaveta. A mão busca o fundo do lado esquerdo, e se fecha sobre ela. Empurro a gaveta e a cadeira no lugar, num minuto saio pelo corredor com a arma. Volto os seis passos e aspiro o perfume dele no quarto, mas não o encontro sobre cama e nem embaixo.
Procuro-o no banheiro, no armário, esvazio as gavetas, dirijo-me à janela, removo os parafusos que prendem a grade. Ela desce castigando Ipanema que parece pedir perdão trinta metros abaixo. O coração trêmulo ora me diz que sim, ora me diz que não, não: ele não saiu pela janela.
De súbito ele assoma no retângulo da porta, silencioso, horrendo feito mágica. Seus cabelos ruivos, sempre tão brilhantes, estão opacos. Só os olhos brilham agora. A boca retorcida num esgar apavorante, e traz segura pelo cabelo, a cabeça de Francine decepada e gotejante. No tapete branco, pingos terrosos da borda do pescoço cortado com instrumento sem gume: o cutelo!!
A cara esverdeada da decapitada tem algo de monstruoso. A boca enormemente aberta ameaça um grito agônico. A cabeça pendurada esbugalha o bulbo mortiço rolando por todos os lados. Ele me oferece o tétrico troféu. Eu grito que não: __ Não, não quero! __.Ele avança. Torno a gritar: __ Não quero! As pupilas vidradas me trespassam. Silencioso, ele avança. Ergo a mão e o ameaço com o revolver. Ele não se intimida e continua avançando. Um urro de horror corta o ar e a cabeça me é jogada. Corro para a janela procurando a proteção da grade que desceu há poucos instantes, só encontro a cortina na qual me agarro.
Ela balança doidamente e me solta no espaço enquanto ouço o trovejar de uma arma.