Fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu — Esta será minha última vigem em  missão! Ficarei alguns meses em Dakar e em seguida, deixarei o hábito. Pretendo tornar-me cidadã italiana, tenho um pé no Brasil e outro na Itália. Sinto muito decepcioná-lo por não ser irmã de Morgana.
— Parece tanto com ela.
— Deus utiliza molde diferente para cada pessoa, e jamais repete o mesmo modelo de rosto. Há sempre alguma coisa que diferencia uma pessoa de outra. Somos plural e singular, um ser coletivo e ao mesmo tempo, individual e único para Deus.  A propósito, no VIII Congresso Missionário Latino-Americano de 2008,  no Equador, um padre que se identificou como Victor Augusto me fez pergunta semelhante. Tive medo de penetrar nos mistérios do passado e me calei. Preferi não revelar o pouco que sabia sobre minha vida e minha história. Minha história de vida foi descrita numa linha reticente, repleta de  interrogações. Não sei quase nada de mim mesma. Só o Galileu conhece a dor escondida na burca da samaritana. Disse tentando por um ponto final naquele assunto.
— O padre não deu maiores informações sobre Morgana?
— Não! Não dei esta oportunidade a ele.  Aprendi com o anonimato uma forma de maquiar o rosto e não rasgar lembranças. Estávamos no Coliseu General Rumiñahui, na cidade de Quito e depois daquela hora, evitei novo encontro, misturando-me com a multidão. Eram mais de três mil pessoas de diversos países da América do Norte, Sul, Central e Caribe. Delegações religiosas, movimentos eclesiais e jovens missionários leigos. Foi muito fácil me esconder de um brasileiro no meio de tanta gente estranha. Meu pai falava pouco. Parecia esconder uma de suas faces, alguma coisa que o incomodava, alguma coisa que seu coração queria dizer e ficava presa como um pedaço de maçã na garganta  de Adão. Ele também percebia o nó em minha garganta e nos calávamos. O silêncio guarda muitos mistérios — disse finalmente a freira, enquanto segurava uma lágrima que tentava escapar pelo canalículo nasolacrimal.
A conversa foi interrompida por uma voz firme, quase mecânica: ‘Atenção senhores passageiros do voo ABS 815 com destino a Paris, por favor, dirijam-se ao Portão B.’  Sem nenhum tumulto, os passageiros se organizaram em fila única. Fernão também se apresentou e se identificou como operador de voo, ainda assim, encontrou dificuldade para embarcar no aeroporto do Rio, porque debaixo do terno, o colete salva-vidas o deixava com o tórax desproporcional, largo, muito largo como de um jogador de futebol americano. Seu coração era uma bomba, pestes a explodir.
Fernão acomodou-se na poltrona.
O curso para obter licença de pilotar avião que concluiria na França, completava as horas mínimas de voos necessárias para conquista do brevê. Ele não queria apenas uma carta para voar. Depois do brevê, ingressaria na Esquadrilha da Fumaça e faria acrobacias assustadoras. Sua coragem e habilidades fariam de Hemor um velho atobá com os pés presos na areia da praia. 
 Lera Capelo Gaivota,  com a intenção de  aprender a superar  seu próprio limite. No entanto, sentia-se derrotado pelo ciúme, este mau sentimento era o  grande obstáculo a transpor. Precisava estar aberto de corpo, e de  mente, quando desembarcasse em Paris para conversar com Vanini.  Sabia que o  desejo pela coisa proibida tinha-se tornado o vulcão aceso com a tocha do diabo, que induziu Siquém a sequestrar Dina, o mesmo sentimento que levara Páris a raptar Helena, o mesmo vulcão que também ardeu na alma de Hemor quando tomou Vanini para si.  Fernão decolaria do porta-aviões Charles de Gaulle para pousar no coração da amada e nunca mais decolar. Queria superar os limites de suas forças; rasgar as páginas  que registram a vida de um homem traído e não esconder de si mesmo o segredo que muitos já sabiam: sua mulher o trocou por um piloto que voava sem licença para voar. Pobre diabo este Capelo. Não tinha boas lembranças de Paris: as tardes  frias tocavam folhas secas no outono de seu coração.

 
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Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...