987-RETRATO DE UM FANTASMA

Cigarras zumbiam, agarradas aos troncos das árvores centenárias. A ligeira brisa fazia dançar as sombras projetadas pelas esguias palmeiras imperiais. Nancy buscava abrigo do sol forte da tarde de primavera, enquanto Zé Luiz procurava lugares claros para tirar fotografias.

Os namorados riam de tudo e para todos. Muitas pessoas aproveitavam a tarde ensolarada para caminhar pelas alamedas do Jardim Novo e eram fotografadas pelo inquieto fotógrafo amador. Sempre que pode, está com a máquina em punho, uma Zetaflex alemã, moderno modelo 1954, que permite o acoplamento de lentes de aproximação, filtros de cores e outros acessórios. Manipula com destreza o fotômetro. O flash embutido só é usado para fotos noturnas ou lugares sombrios. A câmera produz negativos de 6 x 6 centímetros que Zé Luiz usualmente amplia para fotos no dobro ou triplo daquele tamanho. Naquela tarde, está usando pela primeira vez um filme colorido, da marca Kodakolor.

Nancy se presta com alegria aos caprichos de Zé Luiz: faz poses sentada nos bancos, encostada nos troncos, como se estivesse meditando, ou simplesmente sorri para a câmara, exibindo os alvos dentes, os olhos brilhantes, ajeitando os cabelos curtos e lisos. Os cliques são contínuos e logo o filme, de 24 exposições, está esgotado. Zé Luiz troca por outro, virgem e recomeça, fotografando a namorada, os outros transeuntes, as palmeiras ou os canteiros floridos.

A praça está cercada por casas residenciais simples, alguns sobradinhos e duas lojas. Em uma das esquinas está situada uma construção diferente: residência de três pavimentos, imitando um castelo medieval, uma torre recortada com ameias, pequenas janelas imitando seteiras e até um mastro para pendurar bandeira ou pendão.

O perfil do pequeno castelo é um bonito pano-de-fundo para as poses de Nancy. Zé Luiz tira uma, duas, três fotos.

— Agora chega — ela diz, brincando. — Você vai queimar seu filme só neste castelinho.

— Só mais esta, e termino. O sol já está mesmo fraco, a luz tá diminuindo.

Sem perceberem, passaram toda a tarde no Jardim Novo num doce enlevo, entremeado pelos cliques e pelas brincadeiras de namorados.

No dia seguinte, Nancy amanhece indisposta. Sem nenhum sintoma de doença, apenas uma lassidão e falta de apetite. É uma jovem magra, que deveria se alimentar bem. A mãe insiste a fim de que ela tome pelo menos um caldo, algo bem leve.

— Não adianta, mãe, sinto enjôo só em pensar em comer.

Ao entardecer, chega Zé Luiz com as fotos reveladas: são mais de trinta, coloridas, boas exposições. Mostra para Nancy, que olha sem interesse.

— Olha esta aqui. — o fotógrafo amador insiste. — Você está linda. Veja. Parece que tem uma pequena nuvem branca sobre a torre. E olhe que a tarde estava completamente limpa, o céu azul, lembra-se?

Nancy mal olha para as fotos, num desinteresse total.

— Ah, Zé, hoje não. Estou muito indisposta. Amanhã você me mostra, tá bom?

Entusiasmado com a beleza da fotografia, na qual Nancy foi fotografada quando sorria e passava a mão pelos cabelos, Zé Luiz manda ampliar, em tamanho cinco vezes maior do que o original. Realmente, fica evidenciada a graça e a beleza da moça, como também se amplia a pequena nuvem sobre a torre. Ao mostrá-la a Rafael, fotógrafo profissional, ouve do amigo um comentário em tom de gozação:

— Esta nuvem tá mais parecendo é um fantasma. Olha só a forma dela.

Zé Luiz presta mais atenção na mancha branca. Admirado com a observação do amigo, usa até uma lupa para examinar a foto.

— Não é que você tem razão? É mesmo parecida com um fantasma.

Cidade pequena é um caldeirão de boatos e comentários desencontrados. Dentro de poucos dias, corria a notícia de que Zé Luiz havia fotografado um fantasma.

— E é o fantasma da Maria engomada. — Com autoridade de quem sabe das coisas, Zé de Nossa Senhora, o velho sacristão da igreja de S. Roque, acrescentou detalhes. — Pois não é ela que anda passeando nas noites de sextas-feiras, assustando todo mundo?

O estado de saúde de Nancy piora nos dias seguintes. Não sentia dores, mas a prostração era geral. Não queria nem conversar, só desejava ficar deitada, no quarto com as janelas fechadas, numa penumbra tenebrosa. Na quarta-feira, o doutor Cícero foi chamado para uma consulta.

— É uma debilitação profunda. Vou coletar sangue para um exame, mas já vou deixar uma receita. — E mandou que, antes de qualquer coisa, tomasse um fortificante que prescreveu no ato.

No sábado, uma visita de seu primo Júlio, seminarista no último ano de Teologia. Zé Luiz mostra-lhe as fotos. Júlio se detém na “fotografia do fantasma”, que examina cuidadosamente.

— Gostaria de mostrar esta foto ao Padre Gonzalez. Ele gosta de fotografia, e esta é muito interessante. — Pronunciou esta palavra como se falasse de algo misterioso. — Você tem o negativo?

— Sim. Pode levar esta. Ou quer que lhe mande uma ampliação maior?

— Esta mesmo serve. — Colocando a foto no envelope pardo, levou-a ao reitor do seminário.

A boataria sobre a foto de um fantasma tinha razão de ser. Em primeiro lugar, a lenda de Maria Engomada era coisa antiga na cidade. O local onde é hoje o Jardim Novo, tinha sido cemitério. Aconteceu, no começo da década de 1900, um fato dos mais raros do mundo: a mudança do cemitério. A cidade cresceu em torno do cemitério, que ficou no centro de São Roque da Serra. Um prefeito corajoso escolheu uma área a uns dois quilômetros do centro, para o novo cemitério municipal. Foi feito o traslado dos restos mortais dos enterrados no velho para o novo cemitério. Após, na ampla praça central, foi construído o jardim, batizado com o nome de famoso político da República Velha, mas que todos conheciam como Jardim Novo.

O fantasma de Maria Engomada aparecia no Jardim Novo. Aleatoriamente. Em certas ocasiões, em todas as sextas, principalmente na quaresma. Em outras , desaparecia, caindo até no esquecimento.

— É a alma de Iza, a filha de Ramon Franco. — O sacristão, Zé de Nossa Senhora, conhece a história da cidade. — Era a filha mais moça do seu Ramon, o espanhol que construiu o castelo para sua família. A moça morreu em circunstâncias misteriosas. Foi enterrada no cemitério velho. Quando levaram sua ossada pro cemitério novo, ela não quis ir. Queria ficar perto da casa onde residira, o castelinho, bem defronte ao Jardim Novo.

Conforme informações, Maria Engomada aparecia sempre vestida de branco, como uma freira de caridade, um vestido longo, engomado — daí o nome. E quem sabe? — Zé de Nossa Senhora não estivesse certo?

Nancy continua na mesma, ou antes, está cada vez mais fraca, apesar do fortificante, que passou a tomar três vezes ao dia, conforme recomendado pelo Dr. Cícero.

— Muito esquisito. — Dizia o médico em voz baixa, falando consigo, ao examinar Nancy, na terça-feira seguinte. — O exame de sangue nada revela, está normal. Ela não se queixa de dores. É como se sua energia estivesse se esvaindo, abandonando seu corpo físico. Vou ter de interná-la no hospital, para tomar soro e ficar sob controle.

E lá se foi Nancy, com a mãe e a irmã Marly, para o Hospital Santa Clara.

Júlio, o seminarista, volta no sábado seguinte com notícias alarmantes.

— O padre Gonzalez não tem dúvidas: a foto é mesmo de um fantasma. É mesmo um fantasma que se encontra na foto. — Relatou a Zé Luiz. Em conversa reservada. — Ao captar a imagem na foto, juntamente com a de Nancy, o fantasma se apossou da alma da jovem.

Zé Luiz treme, horrorizado, ante a revelação.

— Quer dizer que Nancy está...possuída...por um fantasma?

— O nome é posse por ectoplasma. Aconteceu no momento da fotografia. A foto é o registro dessa posse.

— Mas, porque Lucy está definhando? Corre perigo de vida?

— Sim. O espírito que se apossou de sua alma vai absorver sua energia totalmente. A não ser que algo seja feito muito rapidamente.

— Fazer...o quê?

— Um exorcismo.

— Exorcismo? — Zé Luiz agora está literalmente apavorado e assombrado.

— Sim. O padre Gonzalez se dispõe a fazê-lo. E tem mais...

— Mais o quê, Júlio? Acho que Nancy estar sob a posse de um fantasma já é o bastante, mais do que suficiente para muita preocupação.

— A foto captou também outras pessoas. Veja — Júlio indica o fundo da fotografia. — Um homem e três crianças. Temos de descobrir quem são. Provavelmente também estão sob a influência do fantasma.

— Essa não! — Exclama Zé Luiz. — E Nancy, já sabe?

— Não, nem é bom que saiba. No estado em que se encontra, pode ser fatal. Vou ao hospital visitá-la. Vamos juntos?

De fotógrafo, Zé Luiz passou a ser detetive. Queria descobrir quem eram as pessoas fotografadas no mesmo instantâneo em que aparecem Nancy e o fantasma. Contudo, não foi difícil, pois se tratava de um homem com três crianças (dois meninos e uma menina), localizados na tarde do primeiro dia de investigação.

— Encontrei.— Zé Luiz comunicou-se com Júlio, por telefone. — É um professor do ginásio com seus filhos. Professor Francisco de Assis Gomes. Casado, tem três filhos: Roberto, de 4 anos, Cláudio, de 6 e Catarina, de 7 anos. Visitei a família hoje à tarde. Todos estão acamados, com fraqueza geral, igualzinho ao estado de Nancy.

— Então, vamos ter de exorcizar também o professor e as crianças.

Combinaram o encontro para o dia seguinte. Iriam Júlio e o padre Gonzalez. Zé Luiz era o elemento de ligação e teria de comunicar aos pais de Nancy e à esposa do professor Francisco de Assis a visita do Padre Gonzalez.

— Não fale nada de exorcismo, está claro? — Júlio ordena a Zé Luiz. — Diga que é uma visita de cortesia, um ato de caridade do padre Gonzalez.

— Vou falar com o Monsenhor Lucas. O nosso pároco.

— Não, não! Ninguém, além das famílias que vamos visitar, precisa saber de nossa presença aí na cidade. Vamos dizer que é uma ...missão secreta.

— E eu devo acompanhar você e o padre Gonzalez?

— Não sei. Depois de visitar Lucy, o professor e as crianças, teremos de ir ao castelinho para o exorcismo também do local onde o fantasma..humm...onde o fantasma... mora. Amanhã, quando chegarmos pelo trem da tarde, você esteja na estação. Então lhe direi se você poderá nos acompanhar.

Zé Luiz tem de administrar outro tipo de problema, causado pela “foto do fantasma”. Foi procurado por jornalistas vindos de São Paulo, que querem comprar a foto ou o direito de publicá-la numa grande revista de circulação nacional. A repercussão é grande, e gerou interesse da imprensa.

Nos primeiros dias, ficou orgulhoso de ter fotografado um fantasma. Mas, agora que sabia realmente do que se tratava, amaldiçoava cada clique que dera naquela tarde primaveril. Estava nervoso, preocupado com Nancy, quando apareceram os dois homens da imprensa.

— Não, não tem foto de fantasma, não. É tudo boato. — Ele é categórico com os dois repórteres. Sua preocupação leva-o a pensar: Não posso deixar que eles vejam a foto. Se divulgarem a foto, vão bisbilhotar até descobrir que vai haver um exorcismo aqui. Ninguém pode saber...

— Podemos ver a foto?

— Acho que perdi. Não tinha nada de diferente. Apenas uma nuvem num céu azul de primavera.

— Vale milhões. — assevera um dos visitantes.

— Não, não vale. Mesmo porque o negativo estragou-se. — Mente friamente.

Zé Luiz não esconde sua ansiedade quando, na plataforma da estação da estrada de ferro, aguarda a chegada dos dois exorcistas. A tarde é idêntica àquela do domingo em que fotografara Lucy...e o fantasma.

Que merda! Onde é que eu estava com a cabeça, pra fotografar Nancy perto de uma casa mal-assombrada? Mas...quem é que ia adivinhar que o fantasma de Maria Branca ou qualquer que seja, iria logo se apossar de Nancy? E do professor?E das crianças?

Nem com toda esta preocupação, ele deixa de portar a câmara fotográfica. Tal qual um moderno repórter, começa a clicar tão logo a Maria-fumaça aponta na curva, aproximando-se da estação. Em seguida, capta instantâneos de Julio e do padre Gonzalez descendo do vagão.

— Já dá pra saber porque o senhor fotografou...aquilo. — Padre Gonzalez abre um sorriso e os braços, apertando Zé Luiz num amplexo cordial. A empatia entre os dois é imediata, pois o padre é muito cordial.

— Vamos. Estou com o carro de um amigo.

Passando pelo saguão, saem no estacionamento. Entram no carro indicado, um velho sedã Chevrolet. Tanto o padre quanto Júlio trazem maletas de mão, pretas com emblemas religiosos.

— Está tudo sob controle. Nancy e seus pais esperam por vocês no hospital. O professor também os aguarda. E consegui as chaves do castelinho. Ele está desabitado faz muitos anos. O neto do velho Emiliano Franco me emprestou as chaves. Disse que queria fazer umas fotos da torre. E... por falar nisto...eu vou poder acompanhá-los?

— Com uma condição — Responde o padre.

— Qual é?

— Nada de fotos. Absolutamente. Nem das pessoas envolvidas, nem do local, nada. Acho melhor o senhor deixar a máquina em sua casa. Para não cair em tentação.

— Combinado.

A primeira visita é para Nancy, ainda internada no hospital. . São recebidos pelo pai e pela mãe da moça, que está mergulhada num torpor.

— Já tem três dias que ela está assim...Está cada dia mais fraca.

O padre põe o indicador sobre os lábios, pedindo silêncio. Em voz baixa, diz:

— Por favor, quero fazer uma oração especial para ela. Deixem-nos a sós. Esperem no corredor.

Os pais saem. No quarto ficam os três, que rodeiam a cama da moça. O padre abre a maleta, tira uma estola de cor negra, um crucifixo de prata, uma garrafinha de água benta e um recipiente, no qual despeja um pouco da água. Júlio também tira de sua maleta uma estola roxa, que usa sobre os ombros.

Devidamente paramentados, iniciam orações em latim, que Zé Luiz não entende. Sabe que estão rezando o Padre Nosso, mas depois, se perde. Nancy arregala os olhos ao serem ouvidas as primeiras frases da oração. O corpo começa a tremer. O padre asperge a água benta..

— In nomini Patris, et Filli et Spiritus Sancti.

Coloca a ponta da estola sobre a testa da moça, o crucifixo sobre sua boca.

Nancy escancara a boca, arreganha os dentes, recusando-se a beijar a cruz. Tenta morder a mão do padre, que se esquiva, sem afastar o crucifixo.

Júlio segura as mãos da moça, que agita a cabeça de um lado para o outro. Uma baba aparece entre os lábios. Os pés se agitam e, a um sinal de Julio, Zé Luiz os prende com suas mãos.

A cadência e o ritmo da oração se aceleram, o padre fala cada vez mais rápido. Não afasta, por um momento sequer, a sua vista da face de Nancy. Os seus cabelos se arrepiam, levantando-se como que atraídos por uma força misteriosa. Os pés — Zé Luiz os sente — tentam escapar das mãos do namorado. Com uma força inusitada.

Mais aspersão de água benta, mais estertores pelo corpo de Nancy. Zé Luiz nota que, à exceção das palavras da oração de Padre Gonzalez, tudo está muito silencioso. Nem um gemido, nem um soluço ou grito. De repente, a cortina se agita de modo estranho. Um frio inexplicável se expande pelo quarto. A cortina se abre, para dar passagem a uma corrente de ar gelado, que saindo do corpo de Lucy, passa pelos três homens e sai pela janela.

Zé Luiz está tremendo de pavor. Sente que a moça deixa de fazer força com os pés, parece acalmar-se. O padre retira o crucifixo do rosto de Nancy, e recolhe a estola. Mais uma vez, asperge a água benta.

— Ite, frater, líbera est Nancy.

Todo o corpo se relaxa. O olhar de Nancy, até então desvairado, volta à doçura anterior. O rosto reassume a candura, a suavidade e a inocência.

— Oi, Zé Luiz. — São suas primeiras palavras, ao ver o namorado, que se aproxima pelo lado esquerdo, onde está também Júlio. — Oi, Júlio... Oi, padre. — Um sorriso suave brinca nos seus lábios. — Vocês estão rezando por mim?

— Sim, minha filha. Viemos orar por você. — responde o padre. — Eu sou o padre Gonzalez e vim fazer-lhe uma visita.

— Muito obrigada. Parece que eu estava num outro mundo. Que foi que aconteceu? — Com a voz fraca, mas completamente consciente, ela se dá conta da situação estranha. — Por que estou deitada? E este não é meu quarto!

Antes de responder, o padre se dirige à porta, abre-a e pede aos pais que entrem.

— Ela já está bem. Cuidem dela com amor. E que Deus os abençoe.

Sem mais explicações, o padre sai do quarto, no que é seguido por Júlio. Zé Luiz não sabe de fica ou se sai, mas decide-se em seguida, seguindo os dois pelo corredor do hospital.

Novamente no carro dirigido por Zé Luiz, dirigem-se para a casa do professor Francisco de Assis.

À chegada, são recebidos pela esposa, dona Nair, visivelmente baqueada com a situação que reina em seu lar: o marido e as três crianças prostrados, sem ânimo para nada, perdendo a vitalidade a cada hora.

Após as apresentações, o padre, seguido por Zé Luiz e Júlio, entram no quarto, que mais parece uma enfermaria de hospital: na grande cama de casal estão deitados, juntos, o pai, os dois garotinhos e a menina. Todos de olhos fechados, não se dando conta das presenças dos visitantes. Com a janela fechada, a penumbra do ambiente é opressiva.

Como no hospital, padre Domingues pede para a mulher deixar o quarto. A cena se repete, as orações, a água benta, o crucifixo passando da boca do pai para os lábios pequenos das crianças. As crianças parecem estar mais sonolentas, e não reagem em nada às orações ou à água benta. O professor reage tal qual Nancy, agitando-se, babando, arreganhando a boca e os poucos cabelos de sua calva elevando-se verticalmente.

Contudo, a força das palavras e dos atos de Padre Gonzalez é a mesma, ou talvez até maior, pois aqui estão quatro pessoas sob a mesma influência de um ente fantasmagórico. No final, a catarse advém e os quatro saem da situação de limbo em vida, emergindo para a vida normal.

— Deus lhe pague, padre, pelo milagre. — A esposa do professor pega as mãos do padre, beijando-as, enquanto se ajoelha. O padre a levanta com cuidado.

— Minha filha, tudo o que acontece é por obra de Deus Pai. Nós somos seus servos, nada mais.

— Toca pro castelinho.

Anoitecia quando chegaram na estranha habitação. Enquanto Zé Luiz abria a porta, o padre já foi jogando água benta, fazendo sinal da cruz e pedindo a assistência da Santíssima Trindade.

Não havia luz no castelinho. Júlio tirou de sua maleta uma vela, que acendeu e que serviu para iluminar as salas, os corredores e as escadas. Um cheiro forte de mofo e de podridão invadiu as narinas dos homens.

— Parece que está fechado há séculos. — Alguém comentou.

Subiram os lances da escada que os levou até o último andar. Era um patamar cimentado, uma área de mais ou menos seis por seis metros, cercada por uma mureta recortada como se fossem vigias. Dali se avistavam as luzes dos postes, que já estavam acesas. De um dos cantos erguia-se um alto mastro, de madeira ou de metal;

— É um verdadeiro pára-raios. — Comentou Padre Gonzalez. — Que funciona também como pára-fantasmas. A energia do ectoplasma de almas errantes é atraída a lugares elevados, por torres e outras pontas que fiquem no alto de edifícios. É por este mastro que o fantasma continua mantendo sua conexão com o mundo dos vivos... e fazendo seus estragos.

O ar no topo do castelinho era frio, muito mais frio do que era de se esperar de uma noite de primavera. O solo estava forrado de folhas secas, que estalavam sob os pés. O cheiro nauseabundo era quase insuportável. Parece que estou sentindo cheiro de enxofre, pensou Zé Luiz, talvez influenciado pelo que tinha presenciado naquela tarde.

— Padre Júlio, coloque-se naquele canto. Zé Luiz fica neste canto, e eu, ficarei no centro. Não podemos nos aproximar do mastro, sob hipótese nenhuma. É por ali que a o fantasma, alma ou o espírito, o que quer que seja, vai abandonar de vez nosso mundo.

Da mesma forma como procedera no hospital e na casa do professor, tirou a estola, que colocou sobre os ombros, o crucifixo e a água benta, com o depósito e o aspersor. Iniciou as orações, erguendo dramaticamente o crucifixo na direção do mastro. Zé Luiz estava muito impressionado com tudo o que vira, por isso achou que o brilho azul no mastro seria apenas uma ilusão de seus sentidos. Mas quando o brilho começou a tremular, as palavras do padre e de Júlio foram ficando cada vez mais rápidas e ditas em vozes cada vez mais elevadas, então ele não sabia mais o que era realidade, o que era ilusão ou força fantasmagórica.

Em determinado momento, as folhas começaram a se elevar, agitadas por um vento frio. Em seguida, um redemoinho levantou toda a sujeira que estava no chão. Compacto, uivante, o redemoinho impedia a visão uns dos outros. Frio, muito frio.

As palavras eram agora gritadas ao vento, dirigidas ao alto do mastro. O crucifixo vibrava na mão do padre Gonzalez, cuja batina, estola e cabelos eram agitados por uma energia vigorosa e aparentemente raivosa. Pelo mastro, subia e descia uma luz azul, ígnea. Contra o céu escuro da noite uma imagem começou a se formar. Tal qual uma nevoa se condensando, bem no topo do mastro. Aos poucos, uma figura foi tomando a forma. Uma figura humana. Entre alvos e leves tecidos que se agitavam ao sabor da ventania, podiam-se distinguir as feições de uma mulher. Mais e mais se delineava a forma, pairando acima da agitação, da luz que passava pelo mastro. Então Zé Luiz viu. A semelhança da aparição com Lucy era impressionante: os mesmos cabelos negros, curtos e lisos, a tez morena, os olhos grandes e brilhantes, pretos como duas jabuticabas. Por momentos, o rapaz titubeou.

Então sentiu uma força que o arrastava na direção do mastro. Segurou-se firme, agarrando-se nos recortes da mureta. Fazia tanta força que sentiu seus dedos desmancharem o reboco velho, cedendo à pressão das mãos. O vulto parecia sorrir para ele. Tremia de pavor e de frio. A ventania arrancava telhas das casas vizinhas. Ouviam-se pancadas e estalos por todos os lados. Um raio atingiu o mastro, cegando momentaneamente os três homens. A casa tremeu. Parecia um terremoto ou um tufão. Um torreão esfarelou-se, desapareceu. Forças cósmicas, imponderáveis e terríveis, desencadeadas por um comando poderoso e maligno, agiam numa liberdade terrível.

Júlio também sofreu a mesma força. E por estar empunhando o crucifixo com as duas mãos, não tinha como se agarrar. Foi inexoravelmente arrastado, por entre as folhas esvoaçantes e a poeira, para o pé do mastro.

— Padre! — Zé Luiz gritou. — O Júlio está sendo arrastado. Vou segurá-lo.

— Não! Fique onde está! Segure firme, não saia daí!

O que aconteceu a seguir foi tão alucinante que Zé Luiz não sabe se realmente presenciou um fato ou foi tudo uma ilusão. Júlio foi literalmente arrastado mastro acima. A luz o envolveu. Ele contorcia-se e oferecia resistência à força que o arrastava. Padre Gonzalez deu um salto, e pegou com a mão esquerda o pé de Júlio, que já estava a uma altura de mais de metro do chão. Ao mesmo tempo, empunhou o crucifixo, apontando-o diretamente para a aparição que parecia sorrir, lá em cima. E gritou, de modo tonitruante:

— Vade retro, Satanas ! In nomine Patris Filii Spiritus Sancti!

Ante uma ordem tão forte, em nome da Potestade Trina, tudo cessou num átimo. A luz acabou, o fantasma desapareceu, o vento cessou e a temperatura voltou ao normal. Júlio caiu sobre o padre Gonzalez, e se levantavam quando Zé Luiz correu na direção deles. Júlio parecia estar meio zonzo, enquanto o padre limpava a batina das folhas e da poeira que ainda pairava no ar.

Ao descerem, viram que também dentro da casa o estrago fora grande. Puderam ver, à parca luz da vela de Júlio, escadas quebradas, vidros estilhaçados e móveis revirados.

Os homens saem para a rua e afastam-se daquele local tétrico e terrível num silêncio reverente..

No trem das 23 horas, Padre Gonzalez e Júlio descansam. Estão exaustos pelos eventos daquela tarde e noite. Entre cochilos, conversam esgarçadamente.

— No princípio, tratei do fantasma como benigno.Tratei-o até por irmão.— O padre fala baixo, consigo. — Mas, finalmente, constatei que era manifestação diabólica.

— E quase sou levado deste mundo. — Cochicha Júlio.

— É verdade. Mas, como dizia o grande poeta inglês, “tudo está bem quando acaba bem”. Demos graças a Deus. — Persignando-se, eleva os olhos para cima, fecha-os e inicia uma oração.

Nancy se recupera rapidamente. Após a visita do Padre Gonzalez e Júlio, voltou a ter apetite, a se interessar por tudo e por todos e, no final da semana, já estava bem. Da mesma forma, o Professor Francisco de Assis e seus filhos se restabeleceram com celeridade. Jamais ficaram sabendo quão importante tinha sido a visita do padre e seus ajudantes, pois tudo o que lhes acontecera parece ter sido apagado de suas memórias.

Na tarde do próximo domingo, Zé Luiz e Nancy passeavam de mãos dadas pela Avenida Central.

— Onde está a máquina fotográfica? — Ela pergunta.

— Deixei-a em casa. De agora em diante, só vou usá-la quando comprar um filtro anti-fantasmas.

Ela sorri de pura felicidade.

ANTÔNIO GOBBO – BH, 29 de setembro de 2006

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/03/2017
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