O CAUSO DO ARROZ
O CAUSO DO ARROZ
Ouvi, faz muitos anos, esse causo do arroz. Foi uma tia quem me contou, de modo que o conto -- um ponto a mais; um ponto a menos... -- corra por aí. Faço esse registro ressaltando que a história, verídica ou não, é meio que de domínio público já.
Segundo essa tia minha, o tipo era viúvo, calvo e circunspecto. Enfim, um amanuense... Difícil de imaginar alguém mais sério e de hábitos morigerados como os d'ele. Após guardar o devido luto por sua senhora, viu-se despertado da rotina por essa moça uns quinze anos mais nova. Ela trabalhava em sua repartição e, cheia de atenções, soube se fazer notar a ele, homem fechado e sisudo, até lhe obter a afeição. E, diga-se de passagem, a moça tinha lá suas graças... Além do quê, era de boa família, bem educada, prendada... Sim, moça para casar!
Como, de facto, se casaram após longos namoro e noivado. Casamento na igreja, de véu e grinalda mais cravo na lapela: Tudo nos conformes! Foram morar na casa dele, n'um subúrbio distante, d'onde ele vinha todos os dias para a Cidade enquanto ela, decidida a tornar aquela ermida de misantropo uma casa de família, pedira baixa de suas funções para ser uma perfeita senhora do lar.
Em pouco tempo quem passasse de fronte à casa deles já notava diferenças. O jardim frontal -- que até então se reduzia a um gramado falho -- enchera-se de canteiros e arvoretas ornamentais. Estrelícias, roseiras, beijinhos, margaridas, corações magoados, lambaris, trapoerabas roxas, leiteiras vermelhas... Um primor! Nos quintais, mandara cortar tudo que crescia ao deus-dará e, como terreno capinado, plantara mudas bem covadas a cada dez metros; enfim, logo vingava um pomar precioso com toda espécie de frutíferas para lhes adoçar a existência.
A casa em si fora um capítulo à parte. Contratara ela mesmo empreiteiros que lhe construíram uma edícula nos fundos para isolar mais os serviços do dia-a-dia, mais um amplo acréscimo na frente, à guisa de nova sala de estar, cuja coberta mudou a composição do telhado que ela, engraçadinha que era, chamou leigamente de "duplo-vê com varandinha" na falta de termo melhor. Depois de concluída aquela arquitetura, toda a vizinhança a louvava como pessoa de excelente gosto, de modo que vinha gente de longe naquela comunidade lhe pedir conselhos sobre reformas e empreitadas.
Dentro de casa, contudo, fora ainda mais eficiente, mudando toda a decoração e o mobiliário... Mando fazer em madeira de lei uma mesa enorme e junto desta uma rebuscada cristaleira onde exibia orgulhosa um aparelho de jantar de porcelana branca e azul afamada em todo o bairro.
Deitara fora quase todas as velharias que encontrara, remanescentes do enxoval da falecida... Costurara ela mesma as cortinas e as almofadas! Tecera de croché novos caminhos-de-mesa e tapetes em composições geométricas coloridas e delicadas. Todas as toalhas de mesa, lençóis, cobertas, guardanapos, panos de prato e adornos foram pacientemente trocados em conformidade com ordenado do marido amanuense. Sem dívidas, transformara àquela casa triste e escura n'uma luminosa e confortável residência. Não havia visita que não se rasgasse em elogios em face de tão caprichosos adornos.
Todos, menos o marido, que permanecia circunspecto e homem de poucas palavras. Ele saia e voltava todos os dias nos mesmos horários e se recolhia silencioso à leitura de jornais e romances, enquanto ela se ocupava continuamente das benfeitorias de seus domínios. Raramente, ele dava algum palpite e nunca dela discordava. Mesmo porque, o talento de sua esposa era tão evidente que ninguém poderia lhe censurar o que quer que fosse. Não obstante, após um ano de matrimônio, não havia mais qualquer vestígio de que existira outra mulher naquela casa um dia. Era como se a verdadeira história daquela casa houvesse começado com a chegada da senhora mocinha...
Mas eis que, de repente, o amanuense recebe da chefia o encargo de auditar uma repartição mais perto de seu bairro. Durante duas semanas ele teria a oportunidade de almoçar em casa! Era uma singular mudança na rotina d'aquele homem... Enfim, ele participou à esposa sua situação e lhe disse que viria almoçar com ela nos dias em que durasse a tal auditoria. A moça não titubeou: Preparou com calma e ordem aquele que seria o primeiro almoço quotidiano do marido cozinhado por ela. Quando ele chegou, a mesa estava posta e os dois se sentaram. Primeiro, salada de alface, tomate e repolho servida com azeite de oliva e ovos de codorna. Em seguida duas qualidades de carne de boi, uma assada e outra cozida, muito bem temperadas; acompanhadas de feijão preto e arroz branco soltinho. A parte, mandioca frita e, para beber, o mais refrescante suco de maracujá!... Tudo simples, mas muito bem feito e saboroso.
Ele se serviu, comeu com apetite, repetiu a carne e estalou a língua com gosto da acidez do maracujá. Era evidente que havia apreciado! Todavia, ao fim, se saiu com essa:
-- "Meu amor, estava tudo delicioso! Que mãos de fada você tem... Dá gosto vir em casa e comer assim.
-- "Então você gostou da minha comida, querido?"
-- "Muito!... -- e despejou sobre ela a frase fatídica -- Pena que o arroz não é como o da falecida..."
A partir d'aí, ela não ouviu mais nada do ele disse. Aliás, era como se não houvesse dito nada além d'aquilo: "pena que o arroz não é como o da falecida"... Como assim? Como era possível ele ainda se lembrar d'aquela sombra? Que raio de arroz havia-de ser esse arroz para ser tão especial? Ela fizera um arroz perfeito! Temperado com alho fresco frito -- socado no pilão com pimenta do reino e alecrim! -- E depois cozido em panela de aço grosso: Branquinho... Soltinho... Nem um cisco! Mas ai, que diacho de arroz é esse que ela fazia?
Ela não sabia... Tomada de pânico, ela se deu conta todo seu esforço dentro d'aquela casa tinha em vista apagar com seu brilho jovial a presença doentia da outra. E agora isso: o arroz dela, de algum modo, era melhor que o seu!
Seu marido se despediu dela e voltou para o trabalho. Iria voltar para a ceia da noite, na qual tomavam canjas, caldos e sopas -- isto é, jamais arroz e feijão. Ela o serviu e ele não disse palavra. Nada. Nenhum comentário que fizesse menção à falecida ou ao passado. Dir-se-ia que nunca havia dito nada mais cedo naquela mesma cadeira! Ela o observou atentamente e não viu nada de diferente. Ele era o de sempre. Nada que fizesse supor saudades da falecida ou de seu arroz. Tentou se tranquilizar e dormir.
Dia seguinte, após o marido sair, sai ela também em busca de receitas de arroz. O inferno de cozinhar diariamente para o marido iria durar mais duas semanas e ela haveria-de ouvir da boca dele que o arroz daquele almoço era melhor que o da falecida! Era um ponto de honra. Quem era aquela mulher -- morta e enterrada -- para lhe ofuscar sua glória?
Decidiu-se a fazer um risoto. Sim, a outra devia ser filha de imigrantes! Sim, risoto. E seguiu a receita com uma precisão científica... Ao final, o risoto estava perfeito, molhadinho... Nem em restaurantes italianos ela comera outro tão bom. O besta do seu marido agora sim conheceria o que era arroz bom de verdade!
Ele chegou, tirou o paletó e lavou as mãos. Sentou-se à mesa e se serviu da salada. Comeu a carne com o risoto e repetiu a carne. Estava satisfeito! Não obstante, ao se levantar da mesa, repetiu insensivelmente a frase da discórdia: -- "Muito bom! Pena que o arroz não é como o da falecida..."
Ela engoliu seco. Risoto é que não era, pensou consigo mesma. Despediu-se do marido e foi ter com as mulheres da vizinhança no mercado. Reuniu dúzias de receitas. Dia após dia, porém, ela variava o preparo do arroz apenas para, ao final, ouvir o mesmo comentário :-- "Muito bom! Pena que o arroz não é como o da falecida..."
Passada a primeira semana em que o marido deveria almoçar em casa, o fim de semana chegou como um alento... É que aquele homem tinha por costume antigo cozinhar nos sábados e domingos. Era a oportunidade dela para ela ver como ele preparava e gostava só arroz. Ledo engano... Tal como em outras ocasiões, ele preparou apenas carne assada!... Bebeu cerveja com os raros amigos do dominó à tarde inteira e fora dormir cedo. Almoçaram churrasco e jantaram cozido... Nada de arroz.
Segunda-feira, seu calvário recomeçou ainda mais terrível, buscando novas receitas e condimentos... Nada! Todos os dias ele ouviu a mesma frase sair de sua boca: -- "Muito bom! Pena que o arroz não é como o da falecida..."
Na sexta, absolutamente esgotada dos nervos, a moça se distraiu... Entre o preparo das comidas e atenção com as coisas da casa, deixou o arroz no fogo alto e o queimou! Tarde demais para fazer um novo, decidiu servir como estava. Ele chegou em casa e foi até a panela se servir. Retirou quase todo o arroz que havia na panela e para pôr no prato justamente aquela rapa escura do fundo. Seus olhos brilhavam como se comesse uma iguaria! Depois, ele voltou na panela de arroz e comeu a rapa toda!
Ela não acreditava no que via. Aquele homem cheio de manias e exigências comendo com avidez arroz queimado! Pior: Repetindo!!! "É hoje que ele me solta os cachorros..." -- pensou consigo mesma.
Para sua surpresa, ele apenas disse o seguinte:
-- "Agora sim, meu amor, esse arroz está tão bom quanto o da falecida!
"Arroz queimado..."-- pensou ela sem falar nada. Apenas olhava para o vazio como se desse conta da inutilidade da própria vida. Então era isso viver decentemente?... Depois que ele saiu para retornar ao trabalho, ela fez sua mala e, sem deixar bilhete, saiu daquela casa para nunca mais voltar.
Betim - 28 09 2016