Ninguém

Bordejo pela cidade penumbrada, todas as noites. Espiando as fachadas semiiluminadas das lojas, os pecados e prazeres das meninas da noite, o vai vem dos homens em busca de amor , apenas encontrando sexo barato. Insone metódico, mapeio as rotas antes de botar a cara na rua para não ter o desprazer o rever sempre o mesmo cenário, as mesmas sacanagens, as mesmas mentiras.

Talvez você tenha cruzado comigo noite dessas e nem reparado. Já houve quem me chamasse de metamórfico, tal minha capacidade de passar desapercebido e tudo ver sem ser visto. Talvez tenha me dado um cigarro, uma moeda ou um resmungo. Afinal, não tenho a altura ideal, o peso ideal, a aparência ideal de alguém a ser encontrado e lembrado depois. Sou como as pedras da calçada. O beco escuro. O sinal de pare. Ou aquela putinha sem graça que faz ponto na esquina da José Custódio com a Domingos Robert, com sua maquiagem pesada, suas saias mostrando a calcinha e seu ar de tédio. Sou ninguém.

As vezes paro nos bares e como coxinha de frango com tubaina, analisando os outros. Antes bebia cerveja, mas com minha mente fraca e o monte de gardenais nas entranhas depois do primeiro copo começava a falar mole e meus pensamentos iam junto com a urina ralo abaixo. Então sento num canto e presto atenção nas palavras saídas da embriaguez. Se forem compensadoras, anoto. Endereços, nomes, paixões proibidas, taras. Tudo numa desordem proposital que só eu entendo, se os policiais pegarem vão pensar que são fruto de uma mente louca e não darão atenção.

Quando a tesão é muita vou aos cinemas pornôs e me masturbo vendo as mulheres transando com os garanhões e, se sobra algum, apanho qualquer vagabunda de fim de noite e tiro o atraso. Mas é difícil com minha aparência. Mesmo sendo vagabundas sempre querem mais do que pedem aos outros e eu entendo. Quando me vejo no caco de espelho que tenho em casa ou nos vidros das lojas dou razão a elas.

As informações, eu passo para o Bocamuxa e ele com seu bando faz bom uso em troca dumas quireras que volta para mim. Os endereços viram notícias de assalto à residências na capa dos jornais. As taras, os manés pagam uma boa grana pela ausência de notícias para suas respectivas esposas e filhas. E as paixões proibidas. . . bem, essas são guardadas para futuro uso.

Quando reparei no sujeito de terno cinza, olhos atentos perscrutando o ambiente , tomando sua cerveja compassado, o cigarro queimando o balcão e ar de pato imaginei possíveis lucros. Difícil errar. Casados cansados das esposas com suas eternas reclamações quase sempre saem à noite caçando aventuras amorosas e ficam assim, posando de intelectuais ou fingindo-se de aventureiros em pausa. 007s de araque, detetives cinematográficos, escritores procurado temas são tipos comuns nesse ambiente. Na verdade, otários prestes a serem depenados por tipos como eu ou piranhas precisando sustentar seus homens.

Com ar de falso enfado sentei no banquinho vago ao seu lado. Acendi um cigarro acendendo o fósforo na sola do sapato, palito de dentes no canto da boca, tentando parecer mais malandro que sou e puxei conversa.

Nunca falha! Os idiotas também pose parecida e se abrem.

Meia hora de conversa fiada depois eu sabia que era um comerciante ,dono de um supermercado num bairro afastado , exausto da cara emburrada da patroa, da falta de sexo de qualidade e dos filhos que viviam como playboys, torrando o dinheiro ganho com suor e sacrifícios em noitadas com amigos. “ Até isso – confidenciou em voz baixa – sou obrigado agüentar! Ainda se fosse com mulheres.” Deixando implícito a decepção e reforçando minha convicção inicial de ser mais um, doido pra enfiar o cacete na primeira xoxota que encontrasse. Não importando quem fosse a dona.

Apesar da minha cara feia e minha dificuldade em apanhar mulher sempre tive alguns pontos de escape. E conhecia algumas meninas que faziam seus programas em casa, evitando o pega pra capar das ruas e foi por isso que fingindo ir ao banheiro liguei para a Marcinha, alertando sobre um possível freguês. Era só aguardar meia hora, tempo do atual fazer o serviço e podia ir até lá.

Voltei para perto dele e “sem querer” comentei de uma amiga gente fina, novinha ainda, cheirando a cabaço, que estava precisando de um reforço extra nas finanças da casa.

Nos damos bem , eu e ela, nessa vida noturna. Nunca transamos e pretendemos continuar assim. Mulher pra comer não pode ser amiga da gente, fica parecendo incesto e nem dá tesão. Então arrumo alguns freguezes, levo eles, transam, pagam e mais tarde ela volta algum pra mim. Não me considero um gigolô. Esses trocam carinho e sexo com suas protegidas e tomam todo o dinheiro. Eu não. Aceito qualquer gorjeta e carinhos de irmã. Um segurar no braço. Um prato de comida. Um pouso no sofá de madrugada se estou com preguiça de voltar para o barraco.

Talvez pense que a acho feia, mas não é isso não. Até bonita apesar da vida que leva.

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Fui no carro junto com o pato até a Vila Paraíso, onde mora a Marcinha sob a alegação dele de não conhecer o lugar. Devia ter ido embora quando entrou para fodê-la, mas tem certas coisas que acontecem na vida da gente que nem mesmo a gente sabe porque apareceram. Devia ter ido mas fiquei sentado no banco da frente ouvindo um CD caipira de uma dupla completamente desconhecida. Abri o vidro e acendi um cigarro.

Acho que fiquei com dó de gastar 3 reais de mototaxi. Que ironia! 3 reais gastos e nada teria acontecido. Inda se fosse mais!

A casa fica numa rua afastada, quase no fim da Vila. Meia quadra depois um matagal onde a molecada vive caçando coelhos e rolinhas.

Estava eu ali, já no terceiro ou quarto cigarro quando ouvi o som do tapa e em seguida o berro de dor vindos da casa. Não devia, que não tinha nada com isso, mas saí correndo e entrei.

A cena que vi, até hoje dá arrepios. Marcinha caída no chão, toda nua e ensangüentada, um rasgo na barriga branquinha onde o sangue espirrava , mais sangue no canto da boca e o sujeito, todo empavonado, com uma faca de caça na mão, também ensangüentadas, berrava sem medo nenhum de alguém ouvir: Sua piranha de quinta categoria! Está pensando que sou algum trouxa pra afanar meu dinheiro! Sua vaca!

Nessa altura do campeonato eu devia ter picado a mula. Não era minha mulher, apenas uma conhecida da noite usando o que veio de graça pra ganhar algum. E ele, um ilustre desconhecido que tinha conhecido num bar mal afamado.

Mas fiz isso?

Que nada!

Tentei argumentar que ele devia deixar quieto e a gente ir embora, porém o sacana veio para o meu lado gritando que eu tinha parte naquilo tudo e estava de conluio com a piranha.

Lógico que neguei e não estava mentindo, mas a faca brilhando para o meu lado e o ódio nos olhos dele mostravam que não acreditava em nada do que dizia e vupt!

A faca rasgou pelo braço, ele tentando dar novo golpe, a Marcinha berrando sentada no chão, os vizinhos aparecendo para ver qual q razão do berreiro e da fuzarca, a lua espiando pela janela aberta, o medo dentro de mim, de morrer ali mesmo sem ter culpa nenhuma de nada, a faca vindo de novo, a desviada sem querer, um sujeito tentando segurar o sujeito sem conseguir e também sendo ferido, a lembrança do .38 no bolso, a vontade de não se foder de vez, o tiro na testa, o corpo despencando devagar, quase em câmera lenta , o segundo tiro sem acertar o filhadaputa, o terceiro na barriga, os avisos de “se manda Mane, antes dos homi chegar!” , o vacilo.

Quando a polícia chegou eu estava paralisado e foi assim que me levaram para a 18ª.

Peguei 25 anos no julgamento. Não adiantou nada a tese de legítima defesa que o advogado do Estado usou. Nem teria como! O sujeito era comerciante merda nenhuma. Era investigador da polícia dando seus roles e um tremendo de um sacana, explorador de putas e traficantes.

Nada disso foi de valia para mim.

O advogado me alertou que cumpro oito anos e saio pela condicional, mas não sei se quero sair.

Lá fora eu era ninguém!

Aqui dentro sou um matador de policiais e respeitado. Mandei tatuar uma caveira encimando dois ossos cruzados no antebraço direito e na cela que ocupo sou o xerife.

E tenho um nome americanizado que me deram: Copkiller, que ainda não descobri o que quer dizer e um número: prisioneiro 1998.

Agora sou alguém!

Porque voltaria para as ruas? Para ser novamente como as pedras da rua? Ou o cartaz de filme chinês que todo mundo vê mas não presta atenção?

Nickinho
Enviado por Nickinho em 04/08/2007
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