ELVIS NÃO MORREU

A minha vida inteira tive bem poucos amigos como o Elvis. Ele era, sem dúvida alguma, uma pessoa suis-gêneris. Amigos desde crianças, fizemos juntos todos os anos do primário e ginásio, e somente quando ele optou por fazer um curso diferente do meu é que nos separamos. Apesar disso, sempre frequentamos a casa um do outro, nossa amizade continuou firme e forte pelos anos afora.

O Elvis era considerado por todos como um cara de muita sorte. Acostumou-se desde cedo a ganhar as rifas e sorteios dos quais participava, e chegara, inclusive, a ganhar dois prêmios na loteria federal, de pouca monta, é verdade, mas que serviram para que todos os que o conheciam achassem que era só uma questão de tempo para que ele ficasse rico. A bem da verdade, Elvis não ligava muito para essa coisa de sorte, de ficar rico, de possuir bens e coisa e tal. Ele era uma pessoa simples, que se contentava com muito pouco: seus amigos, sua peladinha dos finais de semana, seu fusquinha e sua esposa, Glorinha, a morena mais bonita e desejada do bairro.

A Glorinha era um caso à parte. Dona de pernas perfeitas, rosto angelical e uma voz suave e musical, ela era o desejo de consumo de todos os marmanjos do bairro, sem exceções. Possuia uns olhos profundos, que quando te olhavam, você não sabia onde se enfiar, trocava os pés pelas mãos e desandava a falar bobagem.Quando ela passava não havia quem não virasse o rosto para admirá-la. E, claro, com a sorte que tinha, coube ao Elvis o cargo mais invejado de toda zona oeste do Rio de Janeiro: o de namorado da Glorinha, a menina mais deliciosa do pedaço.

Quando, quase três anos atrás, eles se casaram, foi uma decepção geral. No fundo, todos os rapazes da vizinhança aguardavam ansiosos por uma chance de chegar junto da morena, mas o sortudo não deu sopa pro azar e tratou logo de agarrar a sorte com as duas mãos. Aqui pra nós, eu sempre achei que eles não combinavam, creio que até comentei isso com o Elvis quando o namoro começou. Mas ele brincou e disse que eu estava era com inveja dele, no que eu dei uma gargalhada e confessei que estava mesmo. Mas na verdade eu sabia que aquela relação tinha poucas chances de dar certo, pois conhecia o Elvis até melhor do que ele mesmo e sabia do seu jeito displiscente de levar a vida sem esquentar a cabeça. E sem dúvida, com uma mulher daquelas do lado, a última coisa que o sujeito deveria esperar era sossego.

Então, quando ele chegou naquele dia com uma expressão de preocupação no rosto, eu quase podia jurar qual era o motivo.

- Pô, cara, nem te conto: a Glorinha hoje falou em divórcio...

Não demonstrei a menor surpresa.

- Mas o que você andou aprontando?

- Nada, eu juro! As mulheres é que são complicadas...

- Sei não, Elvis, acho que pra ela ter falado em divórcio, alguma coisa você deve ter feito.

Ele abaixou os olhos, um pouco envergonhado.

- Ela disse que eu sou um marido desinteressado, que não corro atrás o suficiente para melhorar de vida.

- Ah, mas isso você é mesmo!

- Qualé, cara, eu aqui me abrindo contigo, buscando um apoio, e você dando razão a ela!

- Desculpa, fazer o quê? Você poderia estar bem de vida se fosse um cara mais decidido. Com a sorte que tem, não duvido que estivesse até rico!

Elvis tirou um cigarro do bolso mas não acendeu. Ficou brincando com ele na mão, estava tentando parar de fumar há tempos, por imposição da Glorinha, que detestava o cheiro da nicotina.

- Você sabe que eu não ligo pra essas coisas de carreira, dinheiro, poder... Eu me viro muito bem com a vida que levo aqui, no subúrbio. Mas ela tem sonhos de morar lá pros lados da zona sul. Sei lá... Isso simplesmente não faz o meu gênero, sabe como é?...

- Elvis, mulher não gosta de homem paradão, elas querem ver resultados. Uma mulher como a tua precisa de um certo conforto...

- Mas o que é que tu entende de mulher? Nem casado você é...

- Mas eu entendo a alma feminina, cara...

- Pronto, era só o que me faltava! Meu melhor amigo é um feminista disfarçado!...

- Não é nada disso, Elvis. O que eu tô falando é que quando a Glorinha casou contigo, esperava muito mais da vida do que ficar passeando de fusquinha por aí.

- Tu tá falando mal do meu fusca? Esqueceu quantos galhos ele já te quebrou, meu irmão?

- Caramba, é difícil conversar contigo, Elvis! Quando você cisma com uma coisa ninguém consegue tirar isso da tua cabeça!

Depois que ele foi embora, fiquei matutando cá com os meus botões. O fato é que a Glorinha não estava nem um pouco satisfeita com o casamento, e você sabe que uma mulher insatisfeita é capaz de certas coisas que o marido não gostaria nem de pensar... Ela achava que tinha bala na agulha para conseguir coisa bem melhor, a aqui pra nós, tinha mesmo! Ah, como tinha!...

Numa sexta-feira em que estávamos no barzinho do Naldo tomando cerveja, eu, Elvis e mais três amigos, percebi que estava sem a minha carteira. Como o bar ficava apenas a duas quadras de casa, corri para buscá-la antes de racharmos a conta. Ao passar na esquina anterior à nossa rua, vi a Glorinha subindo pela calçada, do outro lado. Ela, que trabalhava no centro da cidade, estava chegando àquela hora, quase onze da noite, mas não parecia ser do trabalho, pois usava um vestidinho curto de seda, que deixava seu belo corpo bem marcado pelo tecido à mostra. Atravessei a rua e segui lado a lado com ela.

- E aí, André? - ela falou. - Meu marido está com você?

- Sim, nós estamos tomando uma cervejinha lá no bar do Naldo. Voltei para buscar minha carteira. Você não quer ir pra lá comigo?

Ela fez um sinal negativo com a cabeça.

- Ah, não. Agora, tudo o que eu quero um bom banho e cama. Estou morta de cansaço.

Eu a olhei de perfil e comentei:

- Pois não parece. Eu diria que você está muito bem hoje.

Ela me devolveu o olhar.

- Que gentil, André. Só você mesmo para levantar o meu astral. Tive um dia péssimo no trabalho. Mas amanhã é sábado, então eu recupero o fôlego logo, logo.

Chegamos em frente à sua casa. Hora de nos despedimos. Ela entrou e eu continuei até o meu portão.

Quando voltei ao bar, o Elvis estava impaciente:

- Caramba, que carteira foi essa, André? Eu já estava indo embora.

- Quem disse que eu encontrava a danada? Tive que revirar a casa inteira...

- Só por causa da demora, você vai pagar a minha parte.

- É ruim, hem! Quem tem filho barbado é gato, velho. E anda logo que a tua mulher já está em casa. Olha que se tu não chegar depressa ela vai dormir...

O pulo que ele deu da cadeira foi tão grande que todos deram uma gargalhada. Elvis jogou as notas em cima da mesa e se mandou para casa.

Foi quase na véspera deles completarem três anos de casados que surgiu o boato de que ela tinha arranjado um amante cheio da grana. Sabe como são essas coisas, um belo dia alguém cochicha no ouvido da pessoa errada, e a notícia se espalha feito um rastilho de pólvora. A festa de aniversário deles já estava marcada, o salão alugado, tudo nos conformes, quando, certa noite, ele chegou com lágrimas nos olhos lá em casa:

- Ela tem um amante, cara! Ela tem um amante...

Eu me assustei com o jeito tempestuoso com que ele entrou na minha sala, nunca antes vira o Elvis tão nervoso assim.

- Calma, Elvis, diz o que foi que aconteceu, irmão!

- Eu flagrei a safada no telefone com outro cara, mano! Ela tava marcando um encontro pra amanhã, na hora do almoço, em frente ao trabalho! - ele chorava de verdade, as palavras saiam tumultuadas, como uma enxurrada de verão, e eu tinha que me esforçar para entender o que ele falava.

- Não pode ser, Elvis. Tu anda imaginando coisas desde que ela falou em divórcio pela primeira vez. A Glorinha é mulher direita, cara, pega mal ficar falando assim da própria esposa!

- Ninguém me contou nada não, eu ouvi!... Como ela pôde fazer isso comigo, André, como??? Ela não podia ter feito isso comigo... Eu vou lá!... Vou encher a cara dela de porrada, aquela vaca!

Percebi pelo bafo que ele havia bebido o suficiente para estar naquela situação, chorando que nem uma criança. Tive que ampará-lo senão ele cairia em cima da mesinha da sala. Ajudei-o a sentar-se no sofá e sentei-me do seu lado.

- Cara, você vai pra casa, toma um banho, dorme um pouco e vai ver como amanhã tudo vai estar diferente. Nessa situação não tem a menor condição pra você conversar com ninguém.

Ele se agarrou no meu ombro, soluçando.

- Pô, André, sem ela eu não vivo!... Eu amo aquela mulher, não tem outra pra me fazer feliz, cara! O que eu vou fazer se ela me deixar?...

- Calma, ela não vai te deixar. Você vai conversar com ela direitinho e tudo será esclarecido. Mas isso é amanhã. Por hora, vamos pro chuveiro. Vou passar um café bem forte, pra mandar esse pileque embora. Senão é bem capaz dela se separar de você hoje mesmo, seu pinguço!...

Isso pareceu convencê-lo a tentar ficar sóbrio. No final da noite, ele deixou-se levar para casa como um cordeirinho e concordou em não tocar no assunto do telefonema com Glorinha.

No dia seguinte, bem cedinho, ele bateu na minha porta. Levantei cambaleando de sono, afinal fora dormir de madrugada e ainda nem eram sete da matina. Ao vê-lo ali, parado, com uma expressão tão séria no olhar, o sono me abandonou por completo. Pisquei duas vezes para ter certeza de que não estava enganado, por fim afastei-me e deixei-o passar.

- Elvis, não tá muito cedo pra uma visita social?... Ainda mais que você saiu daqui ainda há pouco...

Ele continuava calado. Caminhou em direção ao sofá e deixou-se cair, desanimado, com as duas mãos no rosto. Parecia uma continuação da última madrugada.

- Elvis, isso já está ficando chato! O que foi, dessa vez?... - eu estava cansado e meio sem paciência para aturar ressaca de bêbado.

Elvis me olhou tristemente, por fim suspirou:

- Acabou, cara. Acabou tudo!...

Eu demorei para entender do que ele falava.

- Acabou? Como assim, acabou? O que acabou?...

- O meu casamento, André. Dessa vez foi pras cucuias!...

O meu cansaço desapareceu como que por encanto.

- A Glorinha... ela foi embora?

Ele deu um sorriso que me deixou todo arrepiado. Era um sorriso insano, não sei explicar bem, mas sei que não era uma coisa normal.

- Ah, ela foi sim. E não volta nunca mais!...

Por um instante, pude perceber seus olhos brilharem. Só por um instante. Quando a ficha finalmente caiu, eu fiquei assustado.

- Meu Deus! Você não fez nada com ela, não é? Me diz que você não fez nenhuma loucura, Elvis...

Mas ele apenas sorria e sorria, aquele sorriso vazio que só os loucos têm.

Do jeito que estava, só com a bermuda do pijama, abri a porta e atravessei a calçada como um louco até a casa deles. Pensava no meu erro crasso, ao deixá-lo voltar pra casa bêbado e desesperado. A porta da frente estava escancarada. Eu entrei e me deparei com uma cena horripilante, que somente havia visto em filmes de terror na televisão: havia sangue espalhado por todas as paredes, sangue espalhado pelo chão, sangue espalhado pelos móveis da sala... uma trilha vermelha subia pela escada até o quarto do casal. "Aquilo" estava em cima da cama, mas não se parecia com uma pessoa. Ele a havia retalhado em pedaços pequenos com o cutelo, na verdade, era uma massa disforme de carne humana e sangue. Aproximei-me devagar, com medo de escorregar no sangue do chão do quarto, com meus pés descalços.

- Deus, o que aconteceu aqui?!!

Lembrei-me da sua expressão há pouco, de como ele me olhara. Não entendi o porquê daquele sangue todo, se as roupas do Elvis estavam limpas. Parecia que ele havia tomado banho antes de ir na minha casa. Mas por que ele não limpara tudo?...

A ânsia de vômito me veio de forma incontrolável, eu não tive como segurar. O quarto inteiro desapareceu sob os meus pés, e eu apaguei de vez, ali mesmo.

O que aconteceu depois foi nebuloso para mim. Quando acordei, estava num quarto de hospital, algemado na cabeceira da cama. Havia um guarda na porta, e isso me deixou confuso. Fui acusado pelo assassinato da Glorinha sem nem saber o que tinha acontecido direito, pude apenas deduzir os fatos pelo que me contaram depois: Elvis me seguiu até a sua casa e assim que eu desmaiei preparou toda a cena que a polícia encontrou ao chegar. Eu estava coberto de sangue, o cutelo na minha mão, marcas das unhas dela pelo meu corpo. Ele havia me dopado por horas, enquanto ia trabalhar e conseguia um álibi. E eu, desacordado, sem a menor chance de me defender. Durante o inquérito que se seguiu, Elvis alegou que saíra para trabalhar no horário habitual, deixando a esposa viva e sorridente, mas ao chegar em casa antes da hora, preocupado porque uma amiga em comum ligara perguntando o motivo dela não ter comparecido ao trabalho, deparou-se com aquela cena terrível. Sempre que me olhava, durante a audiência, ele sorria, aquele mesmo sorriso da manhã em que esquartejou Glorinha e planejou tudo de modo a colocar a culpa em mim.

Ele sabia. Era uma certeza que eu tinha dentro de mim. Somente isso explicava o plano minuncioso para me incriminar. Era uma vingança terrível aquela. Não sei como ele descobriu, mas eu não tinha a menor dúvida que ele havia descoberto o meu maior segredo. Talvez ele a tivesse torturado antes de matá-la, eu não sei. Mas ele sabia que eu era o amante da sua mulher. Eu sempre fora apaixonado por Glorinha, desde os tempos de colégio. Creio que ele desconfiou, em algum momento, do meu amor por ela. Naquela noite, em que eu voltei em casa para buscar minha carteira, tudo foi tão imprevisível, nós dois ali a sós, no portão, ninguém na rua... Nada havia sido planejado, mas aconteceu. Ela sabia que eu a amava há tempos, e se aproveitou do meu sentimento. Mas não posso dizer que fui uma vítima, eu sabia todo o tempo o que estava fazendo, foi minha escolha trair meu melhor amigo com a mulher que ele adorava. Talvez eu mereça o que aconteceu, como uma espécie de castigo por não ter me portado como deveria.

Sei que nenhum advogado vai conseguir me tirar dessa situação. Tenho todas as provas contra mim, e é só uma questão de tempo até a polícia descobrir que eu e Glorinha éramos amantes. Aí então eu estarei perdido de uma vez. Eu sei que Elvis está esperando a hora certa para deixar escapar essa informação. Ele me odeia, e quer curtir cada minuto da minha condenação. Tenho que admitir também que ele representa muito bem o papel de marido traído e desconsolado.

Hoje consegui roubar uma faca do refeitório. É tosca, velha, mas serve bem aos meus propósitos. Vou somente encerrar essa história e acabar de uma vez com tudo. Não sei se alguém vai acreditar em mim, mas eu não aguentaria passar vinte ou trinta anos preso nessa cela miserável, ainda mais sendo inocente.

Ah, Glorinha, Glorinha... Por que você me provocou? Eu já havia me habituado a te olhar à distância...

No final das contas, somente Elvis não morreu.

Porque eu acabo de chegar ao fim.