O ano bom
Richard olhou para o relógio da estação.
Sete minutos.
Um grupo de evangélicos passou entoando louvores e repetindo frases bíblicas.
Quem havia dito que a religião era o ópio do povo?
Os pais insistiam para que ele os acompanhasse.
Quando criança ia. Forçado.
Puxado pelos braços.
Ameaçado pela cinta do pai ou o chinelo da mãe.
Ajeitou a mochila no colo e comparou o movimento com os demais dias da semana.
Pessoas se empurrando. Falando alto. Crianças chorando.
Domingo era a paz.
O guarda caminhou em sua direção.
Richard não esboçou reação.
Continuou a jogar no celular ultrapassado, que adquirira com o próprio salário.
Seis minutos.
Se o homem o abordasse, protegeria a mochila.
Por que o guarda desconfiaria dele?
Por que o abordaria?
Era um jovem trabalhador que estava todos os dias naquela estação, indo ou voltando do trabalho.
O homem seguiu na direção do final da plataforma.
Lá, acendeu um cigarro e fumou, olhando para os pombos que espalhavam dejetos por todo o espaço.
Que se passava na cabeça de um homem como aquele?
Esperar o final de semana para fumar escondido dos superiores. Impotente diante das regras que outros homens haviam estabelecido para ele.
Liberdade. Liberdade.
O professor de História insistia nas aulas.
Liberdade era poder.
Poder era liberdade.
Cinco minutos.
Um camelô subiu as escadas.
Bêbado e cambaleando mal conseguia equilibrar as balas e chicletes que trazia.
Poucas pessoas na plataforma.
Independente de seu destino, o trem partiria vazio.
Só a irmã caçula tivera a curiosidade de perguntar o que ele tinha na mochila.
“Livros”.
Fruto de um trabalho que consumira horas de sono. Pesquisa engenhosa na internet e outros meios.
O pai podia ser um fanático imbecil, mas não impedia que usassem a internet.
Idiota.
No trabalho obedecia cegamente aos patrões. Em casa era o “senhor”.
O homem que decidia. Exigia. Castigava.
Mundo de imbecis.
O pai. O guarda. O camelô.
Covardes sem nenhuma causa.
Conformados com a própria sina.
Quatro minutos.
Canadá. Inglaterra. Holanda.
Ainda não definira seu destino.
Aos dezoito anos saíria de casa.
Podia antever o choro sentido da mãe.
Ela era doce. Tanto que chegava a ser amarga.
O pai tentaria detê-lo, buscando mais uma vez , mostrar quem é que mandava na casa.
Lamentava pelas irmãs.
Cresceriam obedecendo, da mesma maneira que a mãe fazia por tantos anos.
Tinha um dinheiro guardado.
Pouco.
O salário na cartonagem era baixo.
Mal ajudava em casa.
O pai sempre reclamando, pedindo mais dinheiro, o aconselhando a não deixar o serviço.
Ia juntar mais.
Tudo o que precisava.
Canadá.Inglaterra. Holanda.
Qualquer lugar onde as coisas funcionassem.
Três minutos.
De domingo o trem não atrasava.
O guarda voltou ensaiando um risinho de cumplicidade.
Richard se manteve sério. Nunca ria.
Por que acharia graça daquele gesto covarde?
O mundo precisava de homens.
Os evangélicos iniciaram uma conversa em tom alto.
O camelô começou uma provocação, cantando músicas obscenas e dizendo palavrões.
Richard procurou o aplicativo com suas músicas preferidas.
Liberdade. Poder. Dignidade.
O mundo não tinha mais espaço para covardes, fracos, idiotas de todo tipo.
Os anônimos fariam a revolução.
Revolução teu nome é justiça.
Liberdade. Poder. Identidade. Dignidade. Justiça.
Dois minutos.
Duas jovens em trajes esotéricos foram aguardar próximas aos trilhos.
Entretidas , falavam de previsões , mantras, oráculos e outras palavras de ordem.
Richard pensava na revolução.
Estava só começando.
Primeiro no centro do poder econômico.
Depois o poder político. Religioso.
Culpados e inocentes.
Todos culpados.
Só a irmã tinha perguntado sobre o conteúdo da mochila.
Todos conformados. Cegos diante daquilo que viam. Não viam.
Na noite seguinte o pai assistiria ao jornal perplexo.
A mãe entoaria uma oração.
Seria prova de matemática.
O professor de História condenava as provas.
Liberdade. Poder.
Dignidade. Poder.
Justiça. Poder que emana dos homens.
Identidade.
Um minuto.
Quem havia determinado que alguns deviam mandar e outros tantos seguiriam ordens?
Ele não seria mais um na legião de homens sem identidade.
Tinha um rosto.
Olhava-se no espelho e via alguém.
O trem apitou.
Richard se preparou para o embarque.
Uma revista caiu das mãos de uma das moças esotéricas.
“O ano bom”, dizia o título.
O ano buum!Ele quase riu.
Se preparou para a troca de mochilas.
Agora sim, seriam livros.
Quantas vítimas?
Agora sim o ano estava começando.
Viajou até a próxima estação.
Os livros pesavam.
Se conseguisse andar rápido encontraria a família na mesa , comendo as sobras do domingo.
Ele tinha que estudar para a prova de matemática.
Continuar juntando o dinheiro.
O ano estava só começando.