960-EDIFÍCIO SOB O SIGNO DO MAL

Um dos sonhos do velho Mateus se materializou na construção do edifício de ele erigiu e deu seu próprio nome – Mateus da Silva Cifé.

Homem sagaz, havia conseguido sair da miserável vida de sua família e atingir uma relativa prosperidade. O pai era catador de papelão nas ruas da cidade, e apesar de comida não faltar no barraco, roupa, calçados e outras coisas necessárias eram conseguidas à custa de pedir nas casas dos bairros vizinhos.

Escapou daquela situação por pura vontade própria. O pai queria que ele o ajudasse catando latinhas de cerveja e garrafas de plástico. Vendo que não tinha futuro, simplesmente fugiu de casa. Deu sorte, conseguiu estudar, trabalhou duro, formou-se e teve sucesso.

Na faculdade é que soube realmente o significado de seu sobrenome. Descobriu que o sobrenome da mãe era Silva e do pai, Café. A intenção do pai ao batizá-lo era dar o sobrenome da mãe e dele. Mas o escrivão ou tabelião errou na grafia de Café e registrou Cifé. Mesmo sabendo do erro, nunca cogitou de alterar. ContinUou Cifé.

Foi um homem cordato, de boa índole e totalmente dedicado à família. Casado, gerou seis filhas e seu grande desejo era ter um filho homem, para que levasse o nome da família para frente. As meninas eram de índole completamente diferente do pai. Gostavam de fofocas, detestavam a escola e os estudos, faziam futricas e maldades entre si e com os vizinhos, conhecidos e todas as pessoas com quem se relacionavam.

Alem de tudo, desajeitadas e sem a graça e a feminilidade próprias das mulheres. Não conseguiam namorados, pois eram, além de tudo, destituídas de sex appeal.

Carmem, Corina, Conceição, Clorinda, Clareana e Catarina viviam às turras em casa, e constituíam uma carga difícil para a mãe. Não trabalhavam, não estudavam, em nada ajudavam a mãe nos labores domésticos. No escritório do pai, nunca puseram os pés. Umas inúteis, enfim.

Solteironas ficaram. Mateus, vendo que se elas continuassem em casa, poderia ocorrer em qualquer dia uma tragédia, ou, no mínimo, a esposa, a dedicada Ofélia, ficaria louca.

Imaginou uma solução capaz de dar ás filhas conforto fora de casa, ao mesmo tempo em que as mantivesse juntas e sob seu olhar e sua proteção: construir um edifício pequeno, de apenas seis apartamentos, destinando cada unidade cada uma das filhas.

Dona Ofélia pouca resistência opôs à saída das filhas de casa, cansada que estava à beira de um esgotamento nervoso. Mais difícil foi convencer as filhas, com idades entre 30 e 40 anos, que tinham de assumir vida própria e as responsabilidades que isto implicaria.

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O “Edifício Mateus Da Silva Cifé” ficou logo conhecido como o Edifício das Solteironas; e tornou-se famoso pelas confusões que as mulheres aprontavam não só no edifício como em toda a vizinhança. As seis irmãs azedaram a vida dos vizinhos e da redondeza.

Como obrigação legal tiveram de escolher uma síndica entre elas. O que só conseguiram após muitas brigas e a intervenção do pai.

A mais velha, Carmem, foi a escolhida. Sua responsabilidade como síndica terminou subitamente, três meses depois da escolha, ao ser atropelada na frente de casa por um carro desgovernado que a matou na hora.

Novas brigas para a sucessão, que, à falta de melhor indicação, recaiu sobre a segunda solteirona, Corina.

O inverno daquele ano foi severo e levou Corina para a cama, com uma pneumonia galopante, que a matou em poucas semanas.

Novas brigas, agora entre as quatro, para ver quem seria a síndica. Se antes elas brigaram por mandar, agora, com a morte seguida das duas irmãs, ligaram os eventos ao cargo de síndica, e nenhuma delas queria assumir a responsabilidade.

Enfim, pela idade, foi escolhida a sobrevivente mais velha da irmandade, Conceição, que conseguiu organizar melhor a gestão do edifício. Sua saúde, contudo, não era boa, pois sofria, há anos de um câncer que se agravou repentinamente no ano em que administrou o prédio. Faleceu no fim do ano.

Com a morte de Conceição, ficou patente, para as três remanescentes que o exercício de síndica estava ligado a alguma maldição que levava à morte.

Os apartamentos das falecidas permaneceram fechados, pois a fama do prédio corria pelo bairro e até pela cidade.

Catarina, a mais nova, cogitou de sair do prédio, a fim de não ser síndica. Entretanto, tiveram que se entender. Ficou combinado que a síndica seria sempre a irmã mais velha, o que fez com que Catarina permanecesse residindo no edifício.

Clorinda, saudável e forte, geriu o prédio com cuidado, pois estava convicta que o cargo era perigoso, arriscado ou mesmo... mortal.

Mas a vida prega peças e Clorinda, escorregando no banheiro, bateu com a cabeça numa quina e teve uma concussão cerebral. Levada para o hospital ficou dois dias em estado de coma e não sobreviveu.

Restaram as moradoras Clareana e Catarina. Convictas que uma maldição qualquer rondava o prédio, quiseram vender seus apartamentos para se mudarem.

Clareana, que seria a próxima síndica, procurou o pai, que, já bem idoso, não quis que elas abandonassem o prédio.

— Besteira! — disse Mateus. — As mortes das suas irmãs foram fatalidades, nada tem a ver com o cargo de síndica.

Mastigando o charuto, continuou o conselho:

— Contratem uma firma especialista que possam gerir o prédio para vocês. Mas pelo menos nominalmente, uma de vocês terá de ser a síndica.

Assim fizeram as duas. A empresa “Administração de Imóveis Aramis” foi contratada. Mas ficaram sem a assistência da “Aramis”, devido a um incêndio no escritório.

Clareana, enfim, assumiu o encargo.

Creiam ou não os leitores, Clareana veio a falecer justamente quando arrumava a papelada. Parece que a Morte tinha pressa.

Catarina, a ultima sobrevivente, que não era boba nem nada, apavorada com as “coincidências” das mortes das irmãs, visitou o pai.

— Aquele prédio é maldito! — Disse ao pai e à mãe. — Não quero viver mais ali. Nem vou voltar lá. Já fiz minha mala, estou indo para um hotel e vou vender meu apartamento.

E acusando o pai:

— O senhor deve saber de alguma coisa que ficou ali. Incorporado na construção, sei lá.

Não foi mais feliz que as cinco irmãs já mortas. Na tentativa de escapar à maldição, como ela mesma disse, dirigiu-se ao hotel “Almanara”, no centro da cidade, e foi colocada no quarto 214, décimo segundo andar.

Subiu ao apartamento com o rapaz da portaria que levava suas malas, entrou, deu uma gorjeta ao jovem e fechou a porta. Desfez as malas, colocou as roupas no espaçoso armário, trocou a roupa por um roupão de banho.

Um banho bem quente e demorado vai tirar de mim qualquer maldição. - — pensou.

Estava fisicamente cansada e mentalmente exausta de tanta preocupação e medo.

Entrou na banheira com a água tépida chegando-

lhe ao pescoço.

Ouvindo os acordes da musica ambiente que se difundia pelo apartamento, deixou-se enlevar e fechou os olhos. Um cochilo se seguiu, o corpo escorregou e a cabeça mergulhou.

Numa espécie de sonho viu a fachada do edifício, destacando o nome que brilhava em letras flamejantes, que iam sendo queimadas desde o início.

Entrou de vez numa inconsciência eterna quando se queimaram as últimas letras da palavra CIFÉ.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 3 de setembro de 2016.

Conto # 960 DA sÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/02/2017
Reeditado em 02/02/2017
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