“AMIGOS ÍNTIMOS”
POR: M DAMER SIMAS
Do centro da sexta fileira de cadeiras do auditório do 1º batalhão de polícia do RJ, Marcelo observava atentamente o discurso do coronel Feliciano.
- Todos têm pleno conhecimento de que os dias de hoje são difíceis. A credibilidade de nossa corporação perante a sociedade beira o ridículo. Não estando satisfeito com os nossos embargos cotidianos, alguns de vocês, insistem em causar-nos mais percalços. Além de repousar sobre a minha mesa um mar de papéis, e quando digo papéis, entendam processos administrativos, tive que hoje, dois de abril de mil novecentos e noventa e quatro, dar esclarecimentos à imprensa sobre “esfriamento” de drogas e produtos roubados em nosso aquartelamento. Um dos senhores, com o perdão da palavra, está tentando me foder! No momento está obtendo algum tipo de êxito, mas eu prometo, pelas insígnias que carrego sobre meus ombros, que isso será esclarecido e o VAGUBUNDO, A MAÇA PODRE deste cesto sofrerá as devidas consequências.
A séria postura de Marcelo era contrário ao largo sorriso que ficava cada vez mais visível em seu rosto. Feliciano ainda teria que dar muitos esclarecimentos, entretanto, isso era apenas a ponta de um gigantesco iceberg.
ABRIL DE 1982 – SÃO CRISTÓVÃO, RJ
Tijolo? Isso era lenda em barracos no morro de xxxxxxxxx. Eram de madeira as estruturas que desmoronavam na cabeça do jovem Marcelo. Ouvir os gritos de sua mãe em uma das repartições da casa era aterrorizante até mesmo para os vizinhos. Sempre o mesmo homem saindo do quarto, afivelando o cinto e com um largo sorriso, fazia com que lágrimas rolassem de seus olhos. Era um rosto jovem, mas já marcado por profundas cicatrizes feitas com a faca do tempo.
- Não chora moleque! Vida de favelado é assim mesmo. Tem que matar um leão por dia!
Os próximos passos atordoaram a sua cabeça. O sorriso do homem era uma fotografia que jamais se ia. Apenas um sentimento pulsava em seu coração: VINGANÇA! Os gritos tornaram-se fantasmas cada vez mais comuns e seu cérebro era diariamente assombrado. Seus olhos ardiam, suas mãos sangravam. Aceitar esse holocausto domiciliar estava fora de cogitação e então ele fugiu de casa.
Covarde, fraco, omisso! Esses eram os adjetivos os quais ele cravava em seu íntimo. Eram três cruzes que seriam carregadas dia após dia até o seu retorno à casa. Somente nesse dia ele estaria livre de seus grilhões.
Os anos na rua o tornaram alguém diferente do jovem menino que fugira de casa. Doce por fora, mas venenoso por dentro. A perfeita química que resultara na mais mortal cicuta. Conheceu armas, drogas, violência. Tornou-se esperto, ágil e forte. Escolas muradas jamais ensinariam o que a que ficava na rua ensinava. Foi lá onde conheceu o roubo e o tráfico. O dinheiro rápido era um atraente em potencial. Adílio lhe deu emprego. Foi de foguete até gerente em menos de um ano. Tornou-se o braço direito do dono do morro e depois o matou.
Agora, Marcelo era quem mandava. Seu trono de tijolos de drogas, porém, tinha os dias contados. Ser rei para sempre não seria o suficiente. Não era aquele o reino a qual ele deveria governar. Para mudar as coisas ele teria que voltar a ser um mero plebeu e assim o fez. Algo novo acabara de nascer.
Aspira da P.M.? Nem só de pó vive o dono do morro. Marcelo sempre teve queda por livros e foi neles que encontrou a peça que faltava para o seu quebra-cabeça. Ser traficante seria apenas um pequeno incômodo para o seu antigo algoz. Era como ser um espinho na sola do pé. Logo seria retirado. Agora, ser um oficial traficante, esfriar drogas e roubos no batalhão e depois apagar o chefe. Isso sim era perturbar alguém.
Coronel Feliciano pecou duas vezes. A primeira quando pisou na casa de Marcelo e a segunda quando permitiu que veículos particulares pernoitassem dentro do batalhão.
O comando do morro ficou com Walter. O novo rei mantinha uma estreita ligação com Marcelo, pois sabia de seu plano. Dai em diante, entrar com quilos e mais quilos de drogas no quartel tornou-se uma brincadeira de criança.
ABRIL DE 1994.
Era esperto demais. Esfriava seu contrabando sob as vistas do comandante e ninguém levantara a menor suspeita a seu respeito.
- Marcelo – disse Carlos – Vai dar merda essa porra!
- Cara, isso é um blefe para intimidar a corporação. Quem vai ser louco o suficiente para traficar dentro de um batalhão?
- Sei não! Acho que esse coronel não iria brincar com esse tipo de coisa. Mas, bem que ele merece se foder.
- Você acha isso é?
- Quem não acha?
- Carlos, agente se conhece desde a rua. Eu vou te contar um troço.
Carlos sabia de tudo. Ele seria uma peça fundamental quando o golpe derradeiro começasse. Ele seria como a rainha de um tabuleiro de xadrez. A principal peça de ataque. Sendo auxiliar da seção de operações, Carlos tinha conhecimento de todas as ordens e todas as missões que viriam. Por conta desse movimento certeiro dado no jogo da vingança, Marcelo sempre estava um passo a frente de Feliciano. Era simples: - Humilhar, matar e depois voltar até sua mãe. Longos anos de espera após aquele abril.
A venda de droga não demorou em tornar-se realidade no bairro onde o aquartelamento estava localizado. A droga saia do morro no carro de Marcelo. Esfriava no batalhão e depois descia para o asfalto. Arrancar os cabelos e roer completamente as unhas, por causa da imprensa, estava virando rotina para o coronel Feliciano. Walter também estava encarregado de desmoralizar o comandante. Para tal, mantinha os jornais sempre informados sobre os deslizes de Feliciano. Após a palestra no auditório, ele sabia que a hora havia chegado.
- Carlos, só você pode me ajudar. Só você!
- O que eu não faço por você cara. Do que precisa?
- De uma blitz na linha vermelha. Chegou a hora de voltar para casa.
- O que você vai fazer? Não me diga que...
- É isso sim Carlos. Tenho que aproveitar o momento. Aquele filho da puta está surtando. Essa é a hora.
- Mas e nós? Depois de tanto tempo...
- Cara! Nós estaremos sempre juntos. Você tem que confiar em mim.
- Ok! Amanha a noite então.
Os homens de Walter balearam todos. As pesadas metralhadoras perfuraram toda a lataria dos carros. Chovia sangue e Feliciano estava descoberto, sem guarda-chuva. Logo ele estaria todo respingado e então ele fugiu. Fugiu assim como Marcelo havia feito anos antes. Matá-lo não bastava. Ele tinha que sofrer; pagar pelo que fez. O rádio da sala de operações estava desligado e então ninguém ouviu o pedido de socorro. Carlos estava a caminho.
Feliciano correu pelas escadas da frente do prédio onde morava. Não cumprimentou os que estavam no saguão e atirou-se no elevador. Cada segundo deixava-o mais perto de casa, da salvação. Suas trêmulas mãos derrubaram o molho de chaves por duas vezes até que ele abrisse a porta. Ele deveria estar seguro agora! Ou não!? A cortina esvoaçando, a janela aberta e o vulto de um homem sentado com o encosto da cadeira contra o peito responderia a charada.
- Quem diabo é você? O que faz aqui? Por onde entrou?
- Hoje sou eu quem faz perguntas! Porque tem a foto de minha mãe em um porta-retratos?
- Sua mãe? O filho de Tereza está desaparecido a pelo menos dez anos? Só pode ser uma piada de mau gosto. Você quer dinheiro? O que quer de mim?
- Onde ela está?
- Tereza foi ver o pai doente há duas semanas.
Um leve toque no abajur revelou a sombra.
- Tenente Marcelo? O que você faz aqui? Está louco por acaso?
- Eu já lhe desmoralizei. Fiz com que seu batalhão perdesse o crédito e agora vou vingar a minha mãe. Você a estuprava seu monstro!
- ESTUPRAR?! VOCÊ ESTÁ DROGADO SEU MOLEQUE? Eu e sua mãe éramos... AAAAAHHH! Minha perna! Seu desgraçado!
O tiro no joelho do coronel espalhou sangue e pedaços de ossos por sobre o fino carpete que enfeitava a sala.
- Éramos o que? Você é um maldito de um estuprador. Eu sofri a vida toda esperando por esse momento. Eu vou arrancar o seu pau antes de matar você seu filho de uma puta.
O trinco da porta girou e abriu. Carlos havia entrado na sala. Era o xeque-mate.
- Carlos, eu consegui. Peguei esse verme! Ajude-me, enfim poderemos... Carlos? Abaixe essa arma meu... O que você vai fazer?
O cérebro de Marcelo pintou a parede. O tiro de Carlos foi certeiro. No meio da testa. Uma obra de arte maléfica feita com sangue e miolos.
- Está bem Feliciano? O que ele fez com seu joelho?
- Que merda! Ele acertou a minha perna com um tiro.
- Venha aqui. Vou te ajudar. Aquele otário me contou tudo ontem. Eu somente demorei mais para chegar porque o oficial de dia ficou me questionando sobre onde eu iria estando de serviço na sala de operações.
- Me tire logo daqui. Ligue para os homens e mande limpar minha casa e levar esse bandido de merda para o lixão e queimar o corpo. Agora é só matar o tal de Walter e assumir aquele morro. Dê-me um beijo antes que alguém chegue. Isso vai acalmar a minha dor. No fim tudo vai valer a pena e nós vamos ficar juntos.
- E a mãe do otário? Quando vai se livrar dela?
- Quando? Ela já está morta!