Por Nada!
Ficava esperançoso aguardando que o carteiro pusesse na caixa de correio uma carta dela...
Passava minhas manhãs e tardes naquela varanda branca, balançando-me no assento pendurado, enquanto acariciava os pelos macios de minha gata, Aryá. Para não dar nas caras, saía correndo assim que ele deixava as cartas, cumprimentando-o com um curto assentimento de cabeça.
Fingido uma ansiedade mal disfarçada, deixava Aryá descer ao solo escorrendo como se fosse fluida enquanto meus pés pesados queriam ganhar as asas de mercúrio em direção à Caixa de Correios.
Fazia um espreguiçamento natural no alto da escada e, para que os pretensos olhos agudos e afoitos dos vizinhos não me percebessem aflito, descia os poucos degraus como quem tem todo o tempo do mundo. O coração palpitava, descompassado. Um ouvido mais atento poderia perceber algo como o baterista de uma banda diante de um ataque histérico. Entretanto, senhor dos meus movimentos, pausava no ar cada passo como se fosse o caminhar dentro de um sonho.
Pude perceber o olhar da minha vizinha de frente, Anabele, uma velhota que não fazia nada além de regar as plantas do seu vasto jardim. Os canteiros baixos, de nossa cidade interiorana, eram um motivo de orgulho e exibição. Percebi que ela me vira e dei-lhe um aceno trivial. Respondeu-me a mal grado, mostrando um sorriso forçado, como o de quem é pego no flagrante de uma obrigação social mal quista.
Meus chinelos velhos de couro faziam o crepe-crepe típico. Estalavam no solo quente da calçada de concreto. Entre as hortênsias e margaridas atravessava em busca do meu destino. Diante da caixinha ornamentada com flores que ela pintara, no tempo em que vivemos felizes, retirei o conjunto de envelopes esbranquiçados. Pude perceber o sorriso irônico mal disfarçado de Anabele. Pude sentir o que pensava:
- Esse velho idiota ainda acredita no retorno dela...
Fui passando um a um enquanto caminha de retorno à morada. Eram contas, contas e, estanquei diante da próxima. Um envelope rosado, com textura macia, tendo como lacre um coração vermelho em papel laminado sorriu-me.
Não havia remetente. Com destinatário o meu nome abreviado: JS. Meu descompassado coração já não comportava mais tanta angústia. Senti que meu jardim sorria, o sol se fizer mais brilhante e uma intensa força pareceu emergir do nada. Eu me sentia novamente vivo e esperançoso. Por minutos perdi toda aquela cautela e acelerei para dentro da casa. Sentei-me na mesa da cozinha. Lancei para longe as contas e me concentrei no envelope rosa.
- Seria mesmo dela?
Cautelosamente abri-a. Fui retirando de dentro a mensagem que vinha em um papel amarelo-ouro. Uma única folha se encontrava dobrada ao meio. Abrir? Não abrir? Fui, aos poucos, desdobrando a folha com a lentidão daquele que caminha o corredor da morte rumo à forca. A respiração opressa, descompassada. Parei por um segundo e dobrei-a novamente deixando-a sobre a mesa. Afinal, após tantos anos, por que escreveria novamente para mim? Já não bastou o abandono, a fuga na noite, as humilhações diante dos amigos e da vizinhança? Apesar de tudo o que me fizera eu ainda a amava com a força de mil vendavais. Queria mais que o mundo explodisse, desde que ela voltasse para mim. Tive que me levantar e beber um pouco de conhaque para ganhar novas forças. Leria a carta ou não? Seria a volta da amada ou apenas mais uma das suas brincadeiras e pilhérias sádicas?
Ademais, o que ela iria querer a não ser mais e mais dinheiro? Não bastara me trair com um homem mais jovem? Na verdade, com mais de um homem mais jovem? Teria sido o carteiro um deles? Estaria ele na esquina, após armar aquela nova pilhéria pondo-se a rir deste velho tolo? Ingeri uma dose do conhaque, depois outra e mais outra. Olhei para o envelope ali, parado, com a folha amarela sobre ele jogada na mesa e tive ímpetos de lançar tudo ao fogo. Que bem me trairia aquilo tudo? O coração batia ainda mais forte e uma pressão incomum saltou apertando-me a garganta. A respiração ficara difícil.
Um suor frio correu-me todo o corpo e, em segundos, fiquei molhado.
Segurei-me fortemente na pia da cozinha para não cair. Era tarde. O descompasso não era natural. Pude ouvir o miado de Aryá percebendo que havia algo errado. Foi o último som que ouvi. A partir daí, o baque do meu corpo no chão e a cabeça batendo com força contra a irredutível coerência do granito vieram a dar o som final da minha falência naquela vida...
A polícia chegou horas depois, visto que a vizinha Anabele estranhou não ter acendido as luzes e viu que a gata Aryá se comportava estranhamente. Ademais, a porta da frente ficara entreaberta até quase ao anoitecer. Como não mais vira o vizinho, aproximou-se e, pela janela da sala pode ver um corpo estendido na cozinha. Aflita, correu para informar ao marido. Foi diagnosticado o infarto e os policiais recolheram tudo, inclusive uma carta anônima com endereço postado errado. Uma brincadeira de uma garota ao namorado que morava duas quadras abaixo, tendo um nome com as mesmas iniciais do falecido...
Ficava esperançoso aguardando que o carteiro pusesse na caixa de correio uma carta dela...
Passava minhas manhãs e tardes naquela varanda branca, balançando-me no assento pendurado, enquanto acariciava os pelos macios de minha gata, Aryá. Para não dar nas caras, saía correndo assim que ele deixava as cartas, cumprimentando-o com um curto assentimento de cabeça.
Fingido uma ansiedade mal disfarçada, deixava Aryá descer ao solo escorrendo como se fosse fluida enquanto meus pés pesados queriam ganhar as asas de mercúrio em direção à Caixa de Correios.
Fazia um espreguiçamento natural no alto da escada e, para que os pretensos olhos agudos e afoitos dos vizinhos não me percebessem aflito, descia os poucos degraus como quem tem todo o tempo do mundo. O coração palpitava, descompassado. Um ouvido mais atento poderia perceber algo como o baterista de uma banda diante de um ataque histérico. Entretanto, senhor dos meus movimentos, pausava no ar cada passo como se fosse o caminhar dentro de um sonho.
Pude perceber o olhar da minha vizinha de frente, Anabele, uma velhota que não fazia nada além de regar as plantas do seu vasto jardim. Os canteiros baixos, de nossa cidade interiorana, eram um motivo de orgulho e exibição. Percebi que ela me vira e dei-lhe um aceno trivial. Respondeu-me a mal grado, mostrando um sorriso forçado, como o de quem é pego no flagrante de uma obrigação social mal quista.
Meus chinelos velhos de couro faziam o crepe-crepe típico. Estalavam no solo quente da calçada de concreto. Entre as hortênsias e margaridas atravessava em busca do meu destino. Diante da caixinha ornamentada com flores que ela pintara, no tempo em que vivemos felizes, retirei o conjunto de envelopes esbranquiçados. Pude perceber o sorriso irônico mal disfarçado de Anabele. Pude sentir o que pensava:
- Esse velho idiota ainda acredita no retorno dela...
Fui passando um a um enquanto caminha de retorno à morada. Eram contas, contas e, estanquei diante da próxima. Um envelope rosado, com textura macia, tendo como lacre um coração vermelho em papel laminado sorriu-me.
Não havia remetente. Com destinatário o meu nome abreviado: JS. Meu descompassado coração já não comportava mais tanta angústia. Senti que meu jardim sorria, o sol se fizer mais brilhante e uma intensa força pareceu emergir do nada. Eu me sentia novamente vivo e esperançoso. Por minutos perdi toda aquela cautela e acelerei para dentro da casa. Sentei-me na mesa da cozinha. Lancei para longe as contas e me concentrei no envelope rosa.
- Seria mesmo dela?
Cautelosamente abri-a. Fui retirando de dentro a mensagem que vinha em um papel amarelo-ouro. Uma única folha se encontrava dobrada ao meio. Abrir? Não abrir? Fui, aos poucos, desdobrando a folha com a lentidão daquele que caminha o corredor da morte rumo à forca. A respiração opressa, descompassada. Parei por um segundo e dobrei-a novamente deixando-a sobre a mesa. Afinal, após tantos anos, por que escreveria novamente para mim? Já não bastou o abandono, a fuga na noite, as humilhações diante dos amigos e da vizinhança? Apesar de tudo o que me fizera eu ainda a amava com a força de mil vendavais. Queria mais que o mundo explodisse, desde que ela voltasse para mim. Tive que me levantar e beber um pouco de conhaque para ganhar novas forças. Leria a carta ou não? Seria a volta da amada ou apenas mais uma das suas brincadeiras e pilhérias sádicas?
Ademais, o que ela iria querer a não ser mais e mais dinheiro? Não bastara me trair com um homem mais jovem? Na verdade, com mais de um homem mais jovem? Teria sido o carteiro um deles? Estaria ele na esquina, após armar aquela nova pilhéria pondo-se a rir deste velho tolo? Ingeri uma dose do conhaque, depois outra e mais outra. Olhei para o envelope ali, parado, com a folha amarela sobre ele jogada na mesa e tive ímpetos de lançar tudo ao fogo. Que bem me trairia aquilo tudo? O coração batia ainda mais forte e uma pressão incomum saltou apertando-me a garganta. A respiração ficara difícil.
Um suor frio correu-me todo o corpo e, em segundos, fiquei molhado.
Segurei-me fortemente na pia da cozinha para não cair. Era tarde. O descompasso não era natural. Pude ouvir o miado de Aryá percebendo que havia algo errado. Foi o último som que ouvi. A partir daí, o baque do meu corpo no chão e a cabeça batendo com força contra a irredutível coerência do granito vieram a dar o som final da minha falência naquela vida...
A polícia chegou horas depois, visto que a vizinha Anabele estranhou não ter acendido as luzes e viu que a gata Aryá se comportava estranhamente. Ademais, a porta da frente ficara entreaberta até quase ao anoitecer. Como não mais vira o vizinho, aproximou-se e, pela janela da sala pode ver um corpo estendido na cozinha. Aflita, correu para informar ao marido. Foi diagnosticado o infarto e os policiais recolheram tudo, inclusive uma carta anônima com endereço postado errado. Uma brincadeira de uma garota ao namorado que morava duas quadras abaixo, tendo um nome com as mesmas iniciais do falecido...