Maldita ligação
Madrugada, parecia que todos dormiam, o celular toca. O volume do aparelho não estava alto, mas o suficiente para incomodar a todos do quarto e todos os outros que estavam na casa apesar de ter sido somente um toque. Mesmo assim ela atendeu ansiosa: - Alô! Alô! Valdir, é você meu amor? Não fique em silêncio, diga alguma coisa. Não estou gostando da brincadeira viu. Meu bem vou desligar, para com isso. A voz dela ecoava pelos cômodos da casa, ninguém ali dormia com portas fechadas, por isso os que não acordaram com o barulho do aparelho acordaram com a voz estridente de Elisa buscando uma resposta que não vinha do outro lado da linha.
Do outro lado da linha Robson permanecia em silêncio ouvindo a voz da moça. Ouvia muito mais forte através do próprio ambiente do que pelo aparelho, já que estava a poucos metros de distância, no quarto vizinho. Ficara decepcionado pois o nome que Elisa pronunciava e chamava de amor não era o dele. Mas o que poderia esperar? O namoro já havia terminado há algum tempo e após isso foram pouquíssimos contatos. Por mais que soubesse disso, no seu interior esperava que de imediato ela soubesse que poderia ser ele, já que foram tão próximos um dia.
Finalmente, após o término da ligação onde não houve comunicação, Elisa resolveu olhar o número do aparelho de onde a ligação foi originada. A surpresa foi grande quando apareceu o número do telefone da própria casa. Ela começou a desconfiar e foi até o quarto do rapaz tirar a dúvida. Não falava baixo: - Foi você quem me ligou Robson? – Eu? Não! – Estranho, a ligação foi feita aqui da casa. – Se eu quisesse dizer alguma coisa a você teria dito pessoalmente mais cedo, por que ligaria? Ainda mais do telefone aqui da casa, uma hora dessas.
Os outros, já totalmente despertos, aproximaram preocupados. – Aconteceu alguma coisa? Ela contou a história. Aproveitando a distração de todos, Robson, o único que ainda estava coberto, pegou o aparelho sem fio, que estava embaixo do travesseiro e o colocou em modo silencioso. Sorte. Um dos dois irmãos dele que estavam mais exaltados sugeriu que fosse feita uma ligação para o número, dessa forma o aparelho poderia ser localizado, identificando quem fizera a ligação. Já sabiam que o telefone não estava no local de costume onde encontrava-se somente a base.
Insistentes chamadas, dos celulares de Renilson, Rener e de Elisa foram feitas sem que nenhum toque pudesse ser ouvido. Buscavam ouvir o toque pela casa, sala, cozinha, copa, varanda, nos quartos, foram até a despensa e de lá para o terreiro e, nada. Robson estava desconcertado e todos já sabiam que ele havia ligado, faltava a confirmação, encontrar com ele o telefone perdido. Os irmãos queriam a prova para desmascarar o “certinho” da família. Enquanto os três procuraram pela casa o rapaz levantou-se e vestiu um moletom, rapidamente calçou um tênis. A coisa ficou séria, precisava livrar-se do aparelho a humilhação seria total, seria desmascarado.
Quando saia pela porta da sala foi flagrado pelo trio. O aparelho estava embaixo da roupa e estava decidido a consumir com ele. Maldito momento em que pensou que poderia conversar alguns minutos de madrugada com a antiga amada, e, quem sabe até tentar algo mais pela proximidade dos dois naquele momento. Isso agora era irrelevante, não poderia em hipótese alguma ser flagrado como mentiroso. Saiu batendo o portão e começou uma corridinha às duas e meia da manhã. Só que os outros não desistiam e saíram correndo atrás dele. Como tinha mais preparo, nem se preocupou tanto, venceria facilmente pelo cansaço e quando isso ocorresse jogaria o telefone fora.
O aparelho já estava na mão, para não ter perigo de cair da roupa que era larga. Nos primeiros metros Elisa já desistiu da tarefa, mas Renilson e Rener não se cansavam e estavam bem próximos. Haviam percorrido várias ruas do bairro e a situação parecia insustentável para Robson. Pega não pega, pega não pega, pega não pega... a distância entre ele e os dois era apenas de alguns metros. Pensava em voz alta: - Como é que pode? Esses dois com roupa de dormir, um de chinelo e um descalço e correrem tanto?
Aproveitou a construção de um conjunto habitacional e entrou no primeiro prédio. Poderia jogar o telefone em um dos cômodos escuros e o problema estaria resolvido. Melhor não, estão trazendo a lanterna que levaram para a busca na despensa e no terreiro. Subiu quatro andares quando percebeu que havia um cabo de aço entre uma construção e outra. Eram vários prédios, um ao lado do outro e, provavelmente transportavam material entre eles, daí a presença do cabo no local. – É minha salvação, consigo atravessar. No meio do caminho deixo o aparelho cair, pensarão que ele continua comigo quando eu chegar do outro lado, só continuar correndo para bem longe dali.
Não deu certo. Quando estava prestes a executar o plano viu que Renilson o observava da janela onde havia partido e Rener já estava descendo correndo para aguardá-lo do outro lado. Era o fim. Como é que uma simples ligação poderia ter se transformado em uma aventura daquelas e por que os dois faziam tanta questão daquilo? Implicância de irmãos, mesmo que tardia. Dos três apenas Rener era menor de idade, tinha dezesseis. Ôpa! Uma luz. Percebeu que lá embaixo havia um enorme monte de areia entre os dois prédios. Estando há mais de dez metros de altura teria que contar com a sorte.
Como o monte de areia era muito grande, não teve muitos problemas com a queda, difícil mesmo foi desatolar-se. A roupa toda suja, o tênis cheio de areia, a tarefa de correr agora seria mais complicada. Poderia deixar o telefone naquele enorme monte de areia mas Rener, que já havia descido observava tudo certamente contaria com isso. Saiu correndo pelo lado oposto e deparou-se com um muro de arrimo, que separava a área da construção e uma barranceira. Não teria forças para pular do muro para o barranco lá embaixo, mas era agora ou nunca. Jogou o aparelho do muro e continuou correndo.
- Pode parar, vimos que jogou o telefone. Cansado o rapaz sentou-se alguns metros a frente. Agora era torcer para que não encontrassem. Observava de longe Renilson que havia ficado em cima. O outro irmão já havia dado a volta e já estava na parte de baixo. Procurava com uma lanterna do celular enquanto era auxiliado por uma luz muito mais potente que vinha da parte de cima, da lanterna empunhada por Renilson. Apenas alguns minutos e o telefone foi encontrado. Era o fim.
- Tudo isso só para não admitir que fez uma ligação para a ex-namorada que é convidada em nossa casa? Não é homem não? Perguntou Rener a Robson dando uma gargalhada. – Vocês não sabem o motivo pelo qual eu não quis admitir. Como eu e ela terminamos há muito tempo ficaria constrangido, se fossem irmãos de verdade não teriam feito isso. Elisa foi chegando, vindo de moto com Romeu, o mais velho dos irmãos e viu o telefone na mão de Rener e lançou um olhar repreensivo e de decepção a “Rob” como ela o chamava quando estavam juntos.
Sempre conservador, moralista, sério agora era comprovadamente um mentiroso. De certinho da casa a um cara que mente por um motivo fútil qualquer. O problema não foi terem todos acordado de madrugada e todo o transtorno causado. Para Robson mentira não tem tamanho, sempre falou isso. – Uma mentirinha tem a mesma gravidade de uma mentira grande. Todos já se arrependeram por terem feito uma ligação. Imediatamente ou algum tempo depois percebem que foi um erro. O rapaz estava convicto, por aquele problema não passaria mais. Jogou fora o celular, nunca mais quis usar telefone.