Boris (conto publicado na última antologia de suspense/terror da editora Andross)
Girando pela cidade no banco traseiro de um carro, assisto do alto de meu torpor a triste decadência urbana. Gotas de chuva caem e escorrem pelo para-brisa. Em breve a chuva cairá forte, e isso me deixa triste. Dias de chuva sempre me deixam triste. Giro o corpo e tento manter a visão focada, é um trabalho difícil quando se bebe demais. A cidade ainda está acordada, o mundo ainda está acordado, o ser humano nunca descansa. Bêbados, viciados, prostitutas e malandros se amontoam pelas esquinas escuras e perversas de nosso mundo noturno, não é difícil de encontrá-los. Estou cansado, fecho os olhos em busca de conforto, o mundo gira duas vezes mais rápido e sinto surgir dentro mim o impulso que colocaria tudo para fora. Alarme falso. Encosto a cabeça no suporte do banco e espero que chegue logo em casa.
— Cara, cê tá bebendo demais — escuto Denis dizer enquanto realiza uma curva.
— É, cara, tem de pegar mais leve ou vai acabar parando no AA — dessa vez era Lucas no banco do carona.
— Ah, vão se foder — respondi por entre os dentes. — Um homem não pode mais passar da conta sem que alguém encha seu saco?
Não responderam.
Seguimos rodando por mais alguns minutos até chegarmos em frente à toca do Diabo. Antes que me pergunte, o tinhoso não morava de fato ali. Toca do Diabo era apenas um nome idiota que dei para o edifício caindo aos pedaços em que morava. No fundo, não deveria ser muito diferente do inferno.
— Quer que a gente suba com você, Ted? — ouvi Denis perguntar.
Levantei com dificuldade e pulei para fora do carro. A chuva começava a engrossar, nos agraciando agora com relâmpagos e trovões. Nunca gostei de trovões, trauma de infância. Mostrei o dedo do meio para meus companheiros de farra e tomei o rumo do prédio por entre passos nada firmes. Pude escutar em minhas costas o Volkswagen barulhento arrancar e desaparecer pela noite. A tempestade se aproximava e algo dentro de mim me dizia que não estava preparado para essa tormenta.
Adentrei o velho edifício com sérias dúvidas se conseguiria chegar ao décimo primeiro andar. O elevador estava quebrado há séculos e as escadas pareciam uma serpente faminta prestes a me engolir ao menor vacilo. Eu me arrastei com dificuldade pelos corrimões sujos e encardidos que contornavam a construção. Demorou um tempo que não soube ao certo mensurar, quando se está bêbado qualquer tempo é muito tempo. Mas ali estava em frente à porta do meu apartamento tentando colocar a chave no buraco da fechadura. Seria uma cena cômica para qualquer espectador, não para mim. Estava em uma luta épica contra a Hidra de Lerna, provavelmente a maior batalha da minha noite, quem sabe da minha vida. Saí vitorioso alguns minutos depois,
sentindo-me a reencarnação do próprio Hércules.
Girei a chave e escutei o baixo click da fechadura. Aquilo foi quase um orgasmo percorrendo meu organismo. Vitória acima de tudo. Entrei dançando no meu doce pardieiro. Acendi a luz fraca e sem vida da sala e joguei a chave sobre a mesa. Um trovão ecoou pela noite fazendo meu corpo estremecer. Então uma voz tão nítida quanto poderia ser ecoou pelo local.
— Olá, Ted.
— Olá, mundo, QUÊ?
Olhei ao redor sem compreender o que havia acontecido. Morava sozinho e a televisão estava desligada. De fato o meu mundo estava desligado e afundado no breu. Havia bebido demais e essa era a explicação.
— Acho que o Lucas está certo, melhor pegar leve na bebida
— disse coçando a cabeça.
Então a voz ecoou de novo pelo recinto.
— Aqui no sofá, Ted.
Olhei para o sofá buscando uma explicação plausível para os fatos. Não havia ninguém em meu apartamento. Pelo menos não humano. Em cima do sofá um gato preto estava sentado desassossegadamente a me fitar com seus enormes olhos amarelos. Não me lembrava de ter deixado alguma janela aberta, mas certamente isso não seria um empecilho para um felino tão versátil.
Aproximei-me com cautela fitando aquele bichano de olhos impenetráveis.
— Xô, gato! Xô! — disse tentando espantá-lo com um abano das mãos.
— Boris!
— Mas que porra é essa? — respondi caindo de bunda no chão.
— Meu nome.
Não era possível, o gato estava falando comigo. Certamente deveria parar de beber ou talvez procurar um psiquiatra. Qualquer que fosse a opção, a gente sempre terminava chapado.
— Estou alucinando, deve ser a bebida, melhor dar um tempo — consegui falar, me colocando de novo de pé.
— Pareço uma alucinação, Ted?
— Sim, parece, uma daquelas bem fodidas. E olha que faz tempo que não uso a parada.
— Que parada, Ted?
— LSD miau.
— Boris, quantas vezes terei de repetir?
— Ah, cara, estou mesmo falando com um gato, que merda.
— Por que não se senta, Ted? Temos muito que conversar.
— Temos?
— Sim, temos. Senta.
Segui as ordens do felino e me sentei na poltrona, bem de frente para ele. Uma parte de mim não acreditava que aquilo estava de fato acontecendo, mas o que podia fazer? Estava bêbado e, conversando com um gato, era loucura demais para uma única noite.
— O que quer comigo, Boris?
— Vim te buscar para fazer a passagem — respondeu o bichano balançando o rabo de um lado para o outro.
— Que passagem, miau? Desculpa, Boris.
— Dessa pra melhor.
— Como assim?
— Você deve partir, Ted. É uma viagem sem volta.
— Do que está falando, Boris? Partir pra onde?
— Para a terra de ninguém.
— Está falando que vou morrer?
— Poxa, demorou pra pegar essa!
— Você é só um gato e eu bebi demais. Some daqui, ilusão
— disse tentando afastá-lo de novo com as mãos.
— Acha mesmo que sou só um gato?
— Acho.
— Tenho poderes além de sua compreensão, Ted.
— Prove — bradei em tom de desafio.
Boris me fitou por longos segundos antes de finalmente
dizer.
— E Deus disse: Haja Luz.
Então, de repente, como num passe de mágica, todas as luzes do apartamento se acenderam.
— Puta merda! — exclamei.
— Satisfeito?
— Qual é, bichano, isso não prova nada, já vi um monte de truques melhores que esse.
— Boris. Mais respeito com o emissário da morte, companheiro.
— Qual é, Boris? Sempre que penso em morte imagino um esqueleto com uma foice afiada ou quem sabe uma mulher dessas de outro planeta me dando um gelado beijo de despedida.
— Estamos com falta de pessoal.
— Fala sério?
— Seríssimo.
— Puta merda! Mas você ainda não me provou nada. Pra mim você é apenas um gato diferenciado e nada mais que isso. Tipo Pokémon, sabe, o miau da equipe Rocket.
— Você está me comparando com um desenho idiota?
— Não tenho nenhum Pokémon Boris.
Uma luz estourou na cozinha, fazendo um estardalhaço tremendo. Logo após, todas as luzes do apartamento estouraram, restando apenas a da sala, intacta por enquanto.
— Não brinque comigo, rapaz!
— Santo Deus, Boris, mais devagar ou vai acabar com meu apê.
— Você não precisa mais dele.
— Ok, ok, entendi o recado, senhor emissário da morte. Mas por que eu?
— Olhe pra você, Ted, me diga o que vê?
— Um par de pernas, outro de braços, abdome, tórax, essas coisas.
— Idiota.
— As pessoas normalmente me chamam assim. Não sabia que os gatos pensavam da mesma forma.
— Não sou um gato.
— Tudo bem, mas ainda não me respondeu por quê.
— Álcool, cigarro, drogas, dieta gordurosa, sedentarismo, antidepressivos, estresse, e o principal, ninguém no mundo te ama, Ted, ninguém.
— Poxa, não precisa ferir meus sentimentos, Boris.
— O papo acabou, hora de partir, Ted.
— Posso saber como irei morrer?
— Infarto.
— Vai doer?
— Bem menos do que minha segunda opção.
— Que seria?
— Te jogar daqui de cima.
— Mas seria morte instantânea.
— Quer descobrir?
— Melhor não. Posso fumar um último cigarro?
— Vai fazer diferença?
— Talvez.
— Fume.
Puxei o maço amassado do bolso. Saquei o isqueiro, levei um dos palitos brancos à boca e o acendi. Fiquei ali lentamente tragando aquele que seria o meu último cigarro. Enquanto ele rapidamente
reduzia de tamanho, pensava comigo mesmo, a vida não era boa, mas em alguns momentos era até suportável.
Então veio a palpitação. Logo após uma dor lancinante pelo peito, espalhando-se lentamente pela mandíbula. Pingos de suor escorrendo aos montes pela fronte, pescoço e sumindo em minha camisa de algodão. Aquela figura sádica e seus grandes olhos amarelos se deliciando com meu sofrimento. A bituca de cigarro caiu da boca e se alojou sobre o colo. De repente a escuridão tomando conta de tudo. Aquela dor maldita socando meu tórax. Era o fim e sabia disso, um homem deve saber quando se render. Eu me contorci em desespero na poltrona e dei aquele que seria o meu último suspiro. Ainda pude escutar Boris dizer:
— Adeus, Ted.
Maldito gato. Vou acabar com a sua raça quando chegar à terra de ninguém.
Acordei assustado. Querendo gritar, mas nada saía de minha garganta. Estava suado, muito suado, respiração ruidosa. Que merda havia acontecido? Um pesadelo, um maldito pesadelo. Precisava parar de beber. Levantei com dificuldade e fui até o banheiro. Ainda chovia, uma chuva triste e deprimente tocando sua sinfonia em minhas janelas. Escovei os dentes e joguei água no rosto. Estava horrível, parecia ter uns setenta anos ou mais. Caminhei até a sala, ainda confuso, esfregando os olhos doloridos. Olhei para o sofá e para minha surpresa ali estava um gato preto de grandes olhos amarelos sossegadamente a me fitar, balançando seu rabo idiota pra lá e pra cá, como um maldito
pêndulo de relógio.
Nem me dei ao trabalho de lhe dirigir a palavra. Saí em tremenda correria escadaria abaixo quase despencando pelos degraus uma porção de vezes. Não tive sequer coragem de olhar para trás. Nunca mais voltei à Toca do Diabo. Uma semana depois mandei uma empresa de mudança buscar minhas tralhas e me disseram que o gato ainda estava lá, usufruindo de seu novo lar. Que fique com o apartamento, nem queria morar mais lá mesmo.