UM MILAGRE NO NATAL - CAPITULO II

CAPÍTULO II.

"nos curamos de um sofrimento depois de o haver suportado até ao fim”.

Marcel Proust

A vida nos impõe certos limites difíceis de serem ultrapassados. Estamos cercados de limites por toda parte, leis, regras a serem obedecidas custe o que custar, direitos a serem respeitados, fronteiras que limitam o nosso comportamento em relação aos demais. Temos também as nossas particularidades, as nossas regras que exigimos dos outros o respeito devido. O que faz a pessoa perder o controle de si mesma? Existem vários fatores para que isso aconteça, por exemplo: invadir a nossa privacidade, interromper uma noite de sono, usar nossos objetos. Existem pessoas que se comunicam pausadamente, parece que escolhe as palavras no pensamento antes de expor as ideias, não inspiram confiança.

Maria Cecília aprendera, desde cedo, a não se apegar a nada nem a ninguém tornando o desapego a parte mais fácil de seu dia a dia. Sabia que nada se leva desta vida. Nasceu nua e nua vai partir. Vivia literalmente sempre nua naquele inferno em conformidade aquele regime imposto por aqueles homens maus que vigiavam dia e noite o Reformatório Krenak.

-Lembro-me – recordava Maria Cecília – que as mulheres e as crianças tomavam banho coletivo, despidas, sob a vigilância dos soldados. Minha mãe se sentia profundamente constrangida. Alguns deles se masturbavam e outros escolhiam alguma delas para praticar sexo. Minha mãe sofreu violência sexual várias vezes. Naquele tempo, ainda criança, não compreendia o motivo daquela súbita retirada. Algum tempo depois ela voltava fingindo nada ter acontecido. Hoje eu entendo o motivo pelo qual ela vomitava convulsivamente quando estava distante daquela gente do mal. Pobre de minha mãe, quanto sofreu por si, por seu amado esposo Francisco, por mim, sua filha extremada... Presenciei muitas mortes e através delas adquiri a certeza de que esta vida é passageira, coisa que muita gente esquece. Procuro não perder tempo com futilidades nem com pessoas imaturas, inatas, as que ainda não abriram os olhos para a realidade da vida e insistem permanecer em berço esplêndido. Tornam-se inseguras para sempre, cegas, precisando do apoio das outras pessoas. Desde cedo aprendi a me tornar apressada. Odeio gente lerda. Tanto espaço para se desenvolver do lado de lá, por que ficar em minha frente, atrapalhando o trânsito, atrapalhando a minha passagem? Sou um pouco elétrica, a vida me fez assim, está bem, admito, eu sou muito elétrica. Não preciso ficar menstruada para demonstrar toda a ira que me domina... Agora compreendo porque fui aceita no trabalho que exerço e sou muito respeitada quando imponho a minha voz de comando.

Difícil gravar o voz do silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada, o Curral do Governo estava morto. Um silêncio sepulcral. Não se ouvia um barulho sequer, ninguém passava entre as taperas. Eu dormia ao lado dos meus pais que procuravam da melhor maneira possível me preservar de tanto sofrimento, me preservar do óbvio. Eles nunca desanimaram, sempre alimentaram a esperança de que um dia alcançariam a liberdade e ofereceriam uma vida digna à filha amada. Afinal, presos por que? Qual o tipo de vadiagem? O bom pai exercia a medicina em sua aldeia sem ajuda do governo. Eu havia perdido o sono. Pela abertura da tapera onde vivíamos, observava o tempo, estava próximo do amanhecer. De repente vi o silêncio carregando uma pessoa desacordada. O silêncio era um carregador, era um justiceiro ou o que mais poderia ser o silêncio? Tive outras visões naquela madrugada. Vi a minha imagem projetada no Reino do Faz de Conta, eu era uma linda princesinha, exalava um perfume de jasmim e a carruagem que me levaria ao baile era toda de ouro e acolchoado de cetim . O perfume de jasmim se movia, para o meu maior encanto. Vi a existência pregada em uma cruz mais do que em movimento constante. A existência foi despregada da cruz e foi existir pela vida afora. Vi ainda um verde-esperança no olho de um índio meu amigo. A esperança adquiriu forma e sorriu para mim. Olhei a tristeza que pairava sobre aquele antro de desespero onde a gente vivia, o desespero passou a esperar com mais vigor. Foi difícil vislumbrar a tristeza porque ela dominava toda a cercania e não dava espaço para mais ninguém. “Tristeza, por favor vá embora, a minha alma que chora, está vendo o meu fim”. Acredito que nenhum poeta neste mundo teria este tipo de visão se não sofresse todo aquele tormento a nós imposto... Foi difícil, mas vivi... Estas visões seriam uma premonição?

Naquele convívio, muitos índios não falavam português, aprendi com eles sua língua nativa: tupi, macro-jê, cricatis, apinajés, etc. todos dialetos da língua timbiras. Infelizmente, línguas fadadas à extinção. Aprender, eu aprendi. Só não tenho paciência para ensinar, é verdade que não nasci sabendo, aprendi vivendo, convivendo, perdendo e ganhando, muito aprendi. A maioria das coisas que aprendi na vida, aprendi sozinha, com os próprios esforços, com os próprios erros e com os próprios acertos. Ao longo de minha pouca existência, desde cedo, adquiri uma personalidade mais do que própria, auto-estima mais do que trabalhada, por isso é que, nos dias atuais, me chamem de arrogante, prepotente, dona da verdade ou até chata, não é nada disso. Aprendi a lutar por meus interesses, pelos ideais e a depender de Deus somente para alcançá-los e algumas pessoas não se sentem bem junto a alguém, como eu, por não precisar de favores delas. Meus pais me ensinaram, desde criança, a não acreditar em falsas promessas nem em pessoas prestativas em demasia. Como eu amo o meu pai! Com o seu porte nobre, discreto, atencioso, carinhoso para comigo, sempre encontrei nele o anjo do céu que veio nos proteger: a mim e à minha mãe. A sua missão aqui na terra é se doar de graça, com amor, pelo amor e por amor, é um pai completo! Diferentes de meu pai, só encontrei pessoas que não se doam de graça, sem interesses, aquelas que muito se dão, muito cobram, muito pedem em troca, e acaba saindo mais caro do que ter ido à luta sozinha. Nesta vida que levo atualmente, tenho regras próprias. Por exemplo: quando estou em um coletivo e alguém sentar a meu lado, espero que sente calmamente, com respeito e não invada o meu lado do banco. Existem pessoas espaçosas que não respeitam o limite do outro. Exijo respeito aos limites de meu corpo. Não suporto roupas apertadas, cintas para conter o excesso de gordura e mostrar aos outros uma aparência caricata. Procuro me amar primeiro para me tornar apta a amar o próximo. Não suporto pessoas que me interrompem quando estou conversando, seja qual assunto for. É insuportável ter de aturar uma pessoa inconveniente, mal educada e entrona. Este meu comportamento é herança que carrego em minha vida e, com certeza, o levarei até a morte.

A sede do reformatório possuía duas edificações. Numa delas ficava a administração, o almoxarifado e o alojamento dos guardas. Já a outra era o reformatório propriamente dito. Dispunha de cozinha e refeitório, além de duas celas individuais, dois confinamentos coletivos e dois cubículos para detenção – estes últimos destinados a encarcerar quem cometesse faltas graves no dia a dia correcional.

Pela manhã, após o desjejum, meu pai e os outros índios apelidados “confinados” – jargão utilizado para designar os índios – eram levados para trabalhos rurais, que prosseguiam também depois do almoço. No fim do dia, numa rotina tipicamente prisional, eram postos para dormir após o banho e o jantar coletivo. Era muito triste ver o meu pai e os demais confinados regressarem desta faina dária: cansados, suados e famintos. Quando caíam na cama (se aquilo era cama) dormiam imediatamente sem forças, sem desejos, sem vontade, sem alegria e sem esperança. Estas pobres criaturas não tinham tempo nem para protestar, para odiar aquele tratamento a eles imposto. Viviam como verdadeiros animais. Sexo? Eles não praticavam sexo, atendiam às necessidades, juntavam-se na cama, se apertavam e se apartavam. Esta era a função sexual. Um ou outro casal exalava um suspiro de prazer.

“Íamos até um brejo, com água até o joelho, plantar arroz”, revela Dagoberto dos Santos, índio pataxó levado ao Krenak em 1969. “Botavam a gente para arrancar mato, no meio das cobras, e os guardas ficavam em roda vigiando, todos armados”, complementa Manuel Batista, conhecido como Manuel Bugre, da etnia krenak. A região onde foi instalado o reformatório era habitada pelos índios krenaks, e muitos de seus representantes também foram presos.

Um índio da etnia karajá, lerdo e preguiçoso, sofria açoites diários já que os guardas o consideravam como “um elemento fraco, parecendo até mesmo ser um retardado. Se pudesse, não faria nenhum serviço.”

No final da tarde os homens retornavam do serviço, tomavam banho e vestiam a mesma roupa molhada de suor. Devido à escassez de vestimentas. Meu Deus, nem é bom lembrar: e a escassez de alimentação? Era degradante aquela forma de tratamento. Por muitas vezes, a gente se alimentava de pura mandioca e inhame, já que faltava tudo. Nós, as crianças chorávamos de fome. Todo este drama sensibilizou o cabo da PM Antônio Vicente, então chefe do Posto Indígena Guido Marlière, em telegrama de 1971, pedindo providências a seus superiores. “Considerando-se a precariedade da alimentação, serão suspensos os trabalhos braçais.”

Quando ainda criança, no mundo dos sonhos e das ilusões, eu me divertia com as outras crianças do confinamento. À proporção que fui crescendo em idade e conhecimento, fui perdendo a alegria, perdi o sorriso, fui dominada por uma revolta interior, nem sei se era ódio ou rancor, era um sentimento indescritível em ver o meu pai, um médico, um idealista, sofrendo humilhações, em ver minha mãe, professora, sendo desrespeitada e violentada sem a menor contemplação. Certo dia escutei uma índia dizer:

“Inês você sofre por causa da sua beleza!”

O meu povo, - considero aquela gente meu povo porque a minha descendência é indígena por parte de meu pai, sofreu – sofreu aquela perseguição desenfreada não foi por motivo político ou afronta ao governo militar. Os motivos foram os mais torpes: homicídios, roubos e o consumo de álcool nas áreas tribais – na época fortemente repreendido pela Funai – são alguns dos motivos alegados para a transferência de índios ao Krenak. Além disso, os documentos do órgão também citam brigas internas, uso de drogas, prostituição, conflitos com os chefes de posto, indivíduos penalizados pelo “vício de pederastia” e atos descritos, não raro de forma bastante vaga, como vadiagem. Hoje sei que existia um interesse muito forte por trás de tudo isto. VADIAGEM – não me conformo! O meu pai está confinado por Vadiagem! Logo ele, meu Deus? Além de ser médico, ele não podia exercer a medicina porque ele não tinha autorização da FUNAI. Certo dia ele “ousou” medicar uma criança doente, foi açoitado cerca de quinze minutos enquanto eu entrava em desespero!

“manda essa criança parar de chorar” - dizia o guarda à minha mãe que chorava também – “senão as duas entrarão no açoite também!”

Alguns índios permaneceram por mais de três anos e havia indivíduos sobre os quais desconhecia-se até o suposto delito. “Não sei a causa real que motivou o meu encaminhamento, uma vez que não encontram nenhum relatório de origem”, lamenta-se um índio xavante, considerado de bom comportamento, que lá estava há mais de cinco meses.

Os guardas maltratam os confinados em presença dos velhos e crianças. Outra cena triste que presenciei foi a de dois índios urubu-kaápor que, no Krenak, apanharam muito para que confessassem o crime que praticaram. O problema é que eles nem sequer falavam português. Como eu entendia um pouco da língua indígena, tentei traduzir o que eles chorando diziam.

“cala esta boca, moleca! Eles vão ter que aprender a falar português na marra!”. “Para nunca mais se meter onde não é chamada, vai receber um castigo!” Em também apanhei...

Surras com chicotes e o confinamento em solitária eram outros castigos aplicados.

Manuel Bugre, outro ex preso, veio em meu auxílio, depois que recebi as chicotadas: “Minha filha, minha menina, você não sabe que se comunicar em língua indígena, é terminantemente proibido? Os guardas acham que a gente está falando deles, minha pobre menina! As mulheres levaram a sua mãe para dentro da tapera para que ela não cometesse uma loucura vendo você apanhar!

O meu querido e inesquecível Bugre foi preso em 1970. O registro sobre o caso, descrito nos documentos da Funai, afirma que ele transportou cachaça para dentro da aldeia e se embriagou com outros índios. “Manuel Bugre está insuportável pelas desobediências que vem cometendo. Já faz juz a um confinamento e está detido em alojamento separado”, relata o documento.

“Muitos, como eu, não tinham feito nada. Tomei uma pinga. Será que uma pinga pode deixar alguém preso quase um ano?”, questiona ele. Bugre afirma ter ficado preso no reformatório por cerca de nove meses.

Certo dia, meu pai saiu da área do posto indígena, atitude esta que era considera uma falta grave. Meu Deus, nem é bom lembrar! Ele chegou a ser arrastado com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés, porque tinha saído da aldeia.

“Meu pai, por que o senhor fez isso?” interroguei-o depois do “merecido” castigo, enquanto a minha mãe e as outras mulheres o limpavam com ervas e unguentos. “Para não enlouquecer neste inferno, fui lá fora sentir o cheiro da liberdade” dizia meu pai, gemendo de dor mas muito feliz: “atravessei o rio sem ordem, e fui jogar uma sinuquinha na cidade”

São exemplos do comportamento comumente classificado como “vadiagem” pelos representantes do órgão indigenista na época. Até mesmo atividades tradicionais de caça e pesca fora dos postos indígenas – não raro pequenos e impróprios para prover a alimentação básica – podiam, segundo relatos, levar índios a temporadas correcionais.

“Preso por ser pederasta” – esta foi a ficha atribuída a João Curumim. Sete meses de prisão para “aprender a ser homem”. No dia que ele tentou o suicídio foi um corre corres na aldeia! A pobre criatura cortou a barriga com gilete, as vísceras expostas. Foi a maneira que João Curumim encontrou para protestar contra tamanha injustiça!

Via de regra, os presos lá chegavam a pedido dos administradores regionais das áreas indígenas. Mas, em alguns casos, por ordem direta de altos escalões em Brasília. É o caso de um índio canela encaminhado à instituição em julho de 1969. “Além do tradicional comportamento inquieto da etnia – andarilhos contumazes –, o referido é dado ao vício da embriaguez, quando se torna agressivo e por vezes perigoso. Como representa um péssimo exemplo para a sua comunidade, achamos por bem confiá-lo a um período de recuperação na Colônia de Krenak”, atesta ofício emitido pelo diretor do Departamento de Assistência da Funai, Lourival Lucena.

Saímos deste inferno no final do ano de 1977. Foi quando comecei a “viver na civilização”. Tentei deixar para trás este passado doloroso, nasci literalmente na dor e convivi com a dor até os meus nove anos...

Vida nova me espera. Será? Fomos libertadas a mãe e eu. O pai ficou uns dias a mais. Dizem que ele foi liberto. Mas... por onde anda o meu pai? Hoje tenho 28 anos de idade e vivo a saudade daquele homem que foi meu pai e meu herói.

De uma coisa tenho certeza: todo brasileiro é índio e poderá, a qualquer momento, sofrer uma injustiça e penar nas enxovias de KRENAK.

clira
Enviado por clira em 18/12/2016
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