DEUS, O DIABO E A MERETRIZ
(2009)
Ele não explica o porquê de ter escolhido aquela jovem de vida modesta, submersa num universo pequeno, perdida no interior de um bairro com atmosfera rural na cidade de Nova Iguaçu. Seus desígnios são secretos, mas nunca misteriosos. Muitos sabem que ele gosta de polir o fosco, dar brilho ao que se apagou; aprecia, com intenção sádica, conceder audácia aos fracos.
A rotina de Marcela não reservava as surpresas que preenchem o espírito inquieto de qualquer garota de vinte anos. Cuidava da filha, que há pouco completara um ano, adulava o marido, um nordestino tacanho que se realizava como pedreiro e dedicava-se a agradá-la, um homem simplório e apaixonado; sua casa era humilde, mas arrumada num capricho aconchegante.
Aos domingos, ela e o marido, como bons evangélicos, frequentavam o culto de uma igreja da região e prestigiavam as preleções do pastor que os casara. Nada fora do lugar, nenhuma desordem, mas ele se fez presente pelo pressentimento ou por aquela estreita porta aberta da alma humana, que é a irresistível vontade de experimentar.
Agarrava-se na fé e nas palavras do religioso para tentar conter as fantasias, os delírios que incendiavam a mente e levavam febre ao seu corpo. Era uma potranca indomada, presa por um cercado rasteiro. Queria saltar, conhecer o mundo, descobrir prazeres, tocar outros homens, sentir mulheres. Guardava em silêncio a parte inconfessável do seu ser, represava o ácido que a corroía.
A maçã que exila a pureza do paraíso não é uma fruta, mas um convite. O demônio é um mestre-de-cerimônias. Numa tarde preguiçosa, quando ela folheava um jornal qualquer, ele a ajudou a encontrar a saída do seu claustro particular apontando um anúncio dos classificados: “Procuramos moças de boa aparência, entre 20 e 25 anos, para atenderem executivos de alto nível como acompanhantes de fino trato. Ganhos elevados. Realize seus sonhos, venha nos procurar. Ligue e fale com Vera”.
Com o telefone na mão e a voz trêmula, marcou uma entrevista em Copacabana para o dia seguinte. Ainda não entendia o que estava fazendo, apenas fazia, como quem foge por uma estrada que aparenta levar a algum lugar. Inventou uma desculpa para o esposo, deixou a neném com a cunhada, encheu-se de coragem e foi buscar o seu destino.
Vera a recebeu com sorriso largo, dentes transmitem confiança. Observou que sob a aparência bruta e maltratada, soterrada pelo desleixo da pobreza, habitava uma mulher belíssima e que poderia gerar muito lucro. Apesar de retraída, Marcela possuía um jeito doce, era inteligente, conversava de forma articulada e mostrava-se hábil no raciocínio. Tudo isso encantou a cafetina, que farejava longe o potencial de uma fêmea.
Não foi necessário muito esforço para aliciar a moça, em quinze minutos ela foi convencida a “mudar de vida, conhecer homens ricos e influentes”, segundo Vera. Como prêmio, levou um adiantamento para realçar seus traços num salão de beleza da zona sul. Ingênua, Marcela explicou suas restrições por causa do marido e da filha. A cafetina a aconselhou a tirar férias conjugais, sair de casa e empenhar o tempo exclusivamente ao trabalho, o novo horizonte traria prosperidade para ela e para a família. Ofereceu o próprio apartamento para que ficasse hospedada até se ajeitar.
- Nada se conquista sem uma dose de sacrifício, minha menina – Vera esclarecia sentenciosa.
Marcela concordou, sem saber ao certo como faria para se desvencilhar de suas raízes.
No dia seguinte, um domingo, ela assistiu ao culto religioso na companhia do esposo e de sua frágil cria. O pastor discursou sobre o pecado original, falou sobre a culpa e o arrependimento. Marcela chorou, não pela tristeza do que planejava cometer, mas pelo alívio de quem tomou uma decisão.
À noite, na mesa da cozinha, escreveu a carta que diria o adeus: “Querido, preciso respirar, preciso ver o mundo. Você não tem culpa, sou eu quem carrega o mal. Cuide da nossa filha, não me procure, pois irá encontrar a dor se for me buscar. Voltarei quando aliviar o meu coração”.
Essas linhas foram temperadas com um olhar de quem supunha que seria atormentada pela saudade. Beijou a filha, despediu-se de cada objeto, atravessou a porta e se foi...
Ele, que a havia escolhido entre tantas candidatas, continuava acompanhando com interesse o progresso de sua eleita e mantinha-se atento para que ela não se desviasse do propósito.
Na mesma manhã, Marcela acomodou-se num dos quartos do apartamento de Vera e amanheceu a nova rotina num cabelereiro disputado de Ipanema. Depois de xampus, hidratações, manicures e maquiagens, foi como se tivessem desenterrado sua graciosidade, ela reluzia como uma porcelana cara e delicada. Pelo espelho, não se reconheceu e isso a ajudaria a ser outra mulher. Seus olhos embaçaram-se de lágrimas, mas ela sorriu, um sorriso discreto de quem sente uma felicidade tão íntima e intensa que prefere ocultar.
Vera testemunhou a reconstrução e teve certeza que o ouro iria jorrar, decretou que ela não se chamaria mais Marcela. Seu nome, a partir dali, seria Eva.
O primeiro cliente foi um tipo com uns setenta anos, um oficial reformado da Marinha. Ela não se intimidou diante daquele senhor que poderia ser seu avô. Ao primeiro toque das mãos sardentas e enrugadas do idoso, sua pele se arrepiou num choque que percorreu todos os seus membros. Sua vulva, ansiosa e encharcada, emanava o calor produzido nas entranhas. Ela gozou como nunca, desfaleceu diante da vibração implosiva do orgasmo, pela primeira vez entregou-se sem conflitos morais, viveu o momento.
Recebeu um maço de notas que poderia alimentar sua família durante um mês completo. Descobriu que sentir prazer era melhor do que imaginou e que vender o corpo poderia realmente realizar todos os seus sonhos. Surpreendeu-se.
Vieram outros homens, também conheceu mulheres, provou do mesmo sexo, não se cansava dos novos deleites. Vera inchava os bolsos com sua pupila, mas seria abandonada, pois ele queria que Eva seguisse sozinha no caminho que traçou. Então, Eva deu independência ao seu trabalho, não dividiria o dinheiro com mais ninguém, assumiu aquilo em que se transformou, era a outra.
Em menos de um ano, desde que renunciou como Marcela, ganhou fama através dos que a conheceram, passou a figurar no topo dos sites de sexo, tornou-se uma das mulheres mais bem comentadas dos fóruns virtuais que resenhavam sobre prostitutas e compôs uma lista de clientes célebres. Subjugou homens, despertou amor em mulheres, enriqueceu pela libido e sensualidade. Considerava-se uma vencedora, tornou-se forte. A vaidade era o seu motor de empuxo e a luxúria o seu reino inviolável.
Numa tarde indolente, diante de um espelho de motel, sua memória piscou como um relâmpago: o marido, o lar na Baixada, as pregações do pastor... Lembranças distantes de uma curta existência falecida e pela qual ela não sentia nada, nem sequer nostalgia. Havia a filha, pretendia se reaproximar da criança; talvez, um dia, tentasse reavê-la para si.
Suas novas crenças a libertavam da culpa, libertaram-na da própria consciência. Ela agora tinha a sua religião e só se arrependia dos pecados que não tinha cometido. Ele celebrava o sucesso que alcançou com sua protegida.
Voltou a concentrar-se na imagem refletida no espelho, sentiu-se linda e orgulhosa de sua beleza. Algo interrompe seus pensamentos, um homem a abraça por trás, beija sua nuca e um arrepio breve a percorre. Ele diz que a deseja para sempre, promete largar a esposa e as filhas para viver a cega paixão, quer fazê-la rainha de tudo o que possui. Marcela responde com um sorriso insinuado, desses de quem sente um poder tão íntimo e vigoroso que prefere que não seja revelado.
Deus converte, mas o Diabo seduz.
(2009)
Ele não explica o porquê de ter escolhido aquela jovem de vida modesta, submersa num universo pequeno, perdida no interior de um bairro com atmosfera rural na cidade de Nova Iguaçu. Seus desígnios são secretos, mas nunca misteriosos. Muitos sabem que ele gosta de polir o fosco, dar brilho ao que se apagou; aprecia, com intenção sádica, conceder audácia aos fracos.
A rotina de Marcela não reservava as surpresas que preenchem o espírito inquieto de qualquer garota de vinte anos. Cuidava da filha, que há pouco completara um ano, adulava o marido, um nordestino tacanho que se realizava como pedreiro e dedicava-se a agradá-la, um homem simplório e apaixonado; sua casa era humilde, mas arrumada num capricho aconchegante.
Aos domingos, ela e o marido, como bons evangélicos, frequentavam o culto de uma igreja da região e prestigiavam as preleções do pastor que os casara. Nada fora do lugar, nenhuma desordem, mas ele se fez presente pelo pressentimento ou por aquela estreita porta aberta da alma humana, que é a irresistível vontade de experimentar.
Agarrava-se na fé e nas palavras do religioso para tentar conter as fantasias, os delírios que incendiavam a mente e levavam febre ao seu corpo. Era uma potranca indomada, presa por um cercado rasteiro. Queria saltar, conhecer o mundo, descobrir prazeres, tocar outros homens, sentir mulheres. Guardava em silêncio a parte inconfessável do seu ser, represava o ácido que a corroía.
A maçã que exila a pureza do paraíso não é uma fruta, mas um convite. O demônio é um mestre-de-cerimônias. Numa tarde preguiçosa, quando ela folheava um jornal qualquer, ele a ajudou a encontrar a saída do seu claustro particular apontando um anúncio dos classificados: “Procuramos moças de boa aparência, entre 20 e 25 anos, para atenderem executivos de alto nível como acompanhantes de fino trato. Ganhos elevados. Realize seus sonhos, venha nos procurar. Ligue e fale com Vera”.
Com o telefone na mão e a voz trêmula, marcou uma entrevista em Copacabana para o dia seguinte. Ainda não entendia o que estava fazendo, apenas fazia, como quem foge por uma estrada que aparenta levar a algum lugar. Inventou uma desculpa para o esposo, deixou a neném com a cunhada, encheu-se de coragem e foi buscar o seu destino.
Vera a recebeu com sorriso largo, dentes transmitem confiança. Observou que sob a aparência bruta e maltratada, soterrada pelo desleixo da pobreza, habitava uma mulher belíssima e que poderia gerar muito lucro. Apesar de retraída, Marcela possuía um jeito doce, era inteligente, conversava de forma articulada e mostrava-se hábil no raciocínio. Tudo isso encantou a cafetina, que farejava longe o potencial de uma fêmea.
Não foi necessário muito esforço para aliciar a moça, em quinze minutos ela foi convencida a “mudar de vida, conhecer homens ricos e influentes”, segundo Vera. Como prêmio, levou um adiantamento para realçar seus traços num salão de beleza da zona sul. Ingênua, Marcela explicou suas restrições por causa do marido e da filha. A cafetina a aconselhou a tirar férias conjugais, sair de casa e empenhar o tempo exclusivamente ao trabalho, o novo horizonte traria prosperidade para ela e para a família. Ofereceu o próprio apartamento para que ficasse hospedada até se ajeitar.
- Nada se conquista sem uma dose de sacrifício, minha menina – Vera esclarecia sentenciosa.
Marcela concordou, sem saber ao certo como faria para se desvencilhar de suas raízes.
No dia seguinte, um domingo, ela assistiu ao culto religioso na companhia do esposo e de sua frágil cria. O pastor discursou sobre o pecado original, falou sobre a culpa e o arrependimento. Marcela chorou, não pela tristeza do que planejava cometer, mas pelo alívio de quem tomou uma decisão.
À noite, na mesa da cozinha, escreveu a carta que diria o adeus: “Querido, preciso respirar, preciso ver o mundo. Você não tem culpa, sou eu quem carrega o mal. Cuide da nossa filha, não me procure, pois irá encontrar a dor se for me buscar. Voltarei quando aliviar o meu coração”.
Essas linhas foram temperadas com um olhar de quem supunha que seria atormentada pela saudade. Beijou a filha, despediu-se de cada objeto, atravessou a porta e se foi...
Ele, que a havia escolhido entre tantas candidatas, continuava acompanhando com interesse o progresso de sua eleita e mantinha-se atento para que ela não se desviasse do propósito.
Na mesma manhã, Marcela acomodou-se num dos quartos do apartamento de Vera e amanheceu a nova rotina num cabelereiro disputado de Ipanema. Depois de xampus, hidratações, manicures e maquiagens, foi como se tivessem desenterrado sua graciosidade, ela reluzia como uma porcelana cara e delicada. Pelo espelho, não se reconheceu e isso a ajudaria a ser outra mulher. Seus olhos embaçaram-se de lágrimas, mas ela sorriu, um sorriso discreto de quem sente uma felicidade tão íntima e intensa que prefere ocultar.
Vera testemunhou a reconstrução e teve certeza que o ouro iria jorrar, decretou que ela não se chamaria mais Marcela. Seu nome, a partir dali, seria Eva.
O primeiro cliente foi um tipo com uns setenta anos, um oficial reformado da Marinha. Ela não se intimidou diante daquele senhor que poderia ser seu avô. Ao primeiro toque das mãos sardentas e enrugadas do idoso, sua pele se arrepiou num choque que percorreu todos os seus membros. Sua vulva, ansiosa e encharcada, emanava o calor produzido nas entranhas. Ela gozou como nunca, desfaleceu diante da vibração implosiva do orgasmo, pela primeira vez entregou-se sem conflitos morais, viveu o momento.
Recebeu um maço de notas que poderia alimentar sua família durante um mês completo. Descobriu que sentir prazer era melhor do que imaginou e que vender o corpo poderia realmente realizar todos os seus sonhos. Surpreendeu-se.
Vieram outros homens, também conheceu mulheres, provou do mesmo sexo, não se cansava dos novos deleites. Vera inchava os bolsos com sua pupila, mas seria abandonada, pois ele queria que Eva seguisse sozinha no caminho que traçou. Então, Eva deu independência ao seu trabalho, não dividiria o dinheiro com mais ninguém, assumiu aquilo em que se transformou, era a outra.
Em menos de um ano, desde que renunciou como Marcela, ganhou fama através dos que a conheceram, passou a figurar no topo dos sites de sexo, tornou-se uma das mulheres mais bem comentadas dos fóruns virtuais que resenhavam sobre prostitutas e compôs uma lista de clientes célebres. Subjugou homens, despertou amor em mulheres, enriqueceu pela libido e sensualidade. Considerava-se uma vencedora, tornou-se forte. A vaidade era o seu motor de empuxo e a luxúria o seu reino inviolável.
Numa tarde indolente, diante de um espelho de motel, sua memória piscou como um relâmpago: o marido, o lar na Baixada, as pregações do pastor... Lembranças distantes de uma curta existência falecida e pela qual ela não sentia nada, nem sequer nostalgia. Havia a filha, pretendia se reaproximar da criança; talvez, um dia, tentasse reavê-la para si.
Suas novas crenças a libertavam da culpa, libertaram-na da própria consciência. Ela agora tinha a sua religião e só se arrependia dos pecados que não tinha cometido. Ele celebrava o sucesso que alcançou com sua protegida.
Voltou a concentrar-se na imagem refletida no espelho, sentiu-se linda e orgulhosa de sua beleza. Algo interrompe seus pensamentos, um homem a abraça por trás, beija sua nuca e um arrepio breve a percorre. Ele diz que a deseja para sempre, promete largar a esposa e as filhas para viver a cega paixão, quer fazê-la rainha de tudo o que possui. Marcela responde com um sorriso insinuado, desses de quem sente um poder tão íntimo e vigoroso que prefere que não seja revelado.
Deus converte, mas o Diabo seduz.