O pênis tatuado

REBECA

– Como posso saber quem matou o Brutus? Eu é que não fui. Mas posso opinar e nesse caso aposto minhas fichas no Zaqueu.

– ...?

– É porque a ideia de ficarmos o fim de semana juntos no chalezinho à beira do rio Donzelinhas foi dele.

– ...?

– Eu posso explicar. Na sexta-feira o Zaqueu telefonou lá pra casa no momento em que eu vestia o Danilinho para levá-lo à Escolinha Infantil Pequeno Polegar. Ele perguntou: “Você e o Brutus ainda são chegados num swing?” Eu achei um despropósito falar de nossa vida sexual, minha e de Brutus, naquela hora da manhã e ainda por cima com um amigo que, aposto, só tran-sava na posição papai-e-mamãe. Mas sou uma pessoa bem-educada, cordial, e por isso respondi que havíamos largado a prática desde o nascimento da criança, atualmente com três anos. Então Zaqueu, lamentando, explicou: “É que minha mulher anda desejando apimentar um pouco nossa vida sexual e pensou em vocês”. Eu: “Espera um pouco, Zaqueu, a Melissa está interessada?!” Não podia acreditar que aquela sonsa cheia de não me toques, tão feminina e cheirosa, tão gostosa, assim de

– ...

– Tá bem, aos fatos. Zaqueu afirmou que era a mais pura verdade, juraria com as mãos postas em cima do livro Kama Sutra. Eu perguntei: “Por que você não fala diretamente com o Brutus, afinal vocês estão juntos o dia todo.”

– ...?

– É que, como o senhor já deve estar careca de saber (me desculpe, nada a ver com sua calva), eles são sócios proprietários da indústria têxtil Adorno

– ...?

– Ah, não sabia? Pois então. Na verdade, o Brutus se tornou sócio faz pouco tempo. Ou mui-to, o que eu sei? O fato é que meu marido mandava e desmandava na empresa. Ele até se vangloriava de

– ...

– Certo, não irei perder o fio da meada. Então Zaqueu me disse: “Olha, Rebeca, eu tenho razões íntimas para te pedir a intermediação, faça isso por mim, pela Melissa e por você mesma, querida; garanto que não vai se arrepender”. Bem, prometi que iria falar com meu marido, aliás, ele tinha me dito que tremia de tesão pela Melissa toda vez que olhava a sua bundinha arrebita-dinha e natural, quando ele dizia natural referia-se ao fato de que os glúteos dela não tinham nada artificial, nem mesmo um grama de silicone

– ...?

– É que não duvido que Brutus tenha visto Melissa nua. Eu, de minha parte, sentia que minha respiração se alterava toda vez imaginava o corpo leitoso dela – o que poderia haver embaixo dos panos que cobriam sua silhueta? Surpresas maravilhosas ou desencantos brochantes? Eu estava doidinha para descobrir, você acha que

– ...!

– Bem, aí eu levei meu filho pra escola e na volta passei no Shopping Panorama onde possuo uma boutique chamada Moleca Chique. O nome especifica bem o que nós

– ...

– Tá certo, sem devaneios. Então fui à boutique e dei ordens à gerente para assumir meus compromissos comerciais, em seguida dirigi-me à indústria têxtil Adorno, fui à sala do Brutus e conversamos. Para minha surpresa, Brutus disse que não toparia o encontro de casais, nem era por causa da Melissa, longe disso, o problema era o Zaqueu. Amigos desde a infância, eles estudaram no mesmo colégio, jogaram no mesmo time de futsal. Na adolescência chegaram a namorar duas garotas que eram irmãs gêmeas, será que eu não via o tamanho da familiaridade de ambos, uma amizade tão fraternal, tão forte, ora, era simplesmente impossível imaginar uma suruba onde no auge da excitação ele poderia até enrabar o amigo, ou vice-versa. “Você está seguindo o fio do meu pensamento?”, ele perguntou. Eu não achava que tais pormenores reprimiriam o que quer que fosse, porra, era só sexo, apenas sexo, nada mais que sexo! Então Brutus perguntou se já tinha me falado sobre os nomes femininos – Íris e Ísis – que ele tinha tatuado no pênis. “Se não me engano você fez as tatuagens quando estava na adolescência, era uma homenagem às deusas grega e egípcia, não foi isso?”, eu disse. “Eu menti pra você”, disse Brutus, “Íris é o nome da avó de Zaqueu, Ísis é o nome da mãe. Quando eu ia dormir na casa do Zaqueu, de madrugada eu traçava ou a mãe ou a avó, dependia muito se o chefe da casa estava ou não viajando a trabalho. Você pode imaginar o Zaqueu vendo esses nomes no meu pau? Ele vai querer explicações”.

– ...!

– Como assim, estou embromando com essa história comprida? Olha, gostaria de fumar um cigarro, será que posso?

– ...

– Se não pode, não pode. Vamos continuar. A grande verdade é que se o Brutus estava de o-lho na bunda da Melissa, eu de minha parte tinha grande interesse no Zaqueu.

– ...

– Sim, desejava a Melissa, mas também o Zaqueu, ora bolas. Vai daí que falei um monte para o Brutus, sugeri mesmo que ele não precisava ficar nu na frente de ninguém, ora, alegasse vergonha, timidez, dissesse qualquer besteira, afinal a finalidade do encontro era foder e nada mais que isso, ficar pelado – ele podia pretextar – não passava de lamentável exibicionismo. Depois de ouvir meus arrazoados por mais de meia hora, Brutus finalmente cedeu. Eu fui pra casa, liguei para o Zaqueu anunciando que gostaríamos sim de participar de um fim de semana delicioso no chalezinho; em seguida telefonei pra minha gerente pedindo que ficasse com o Danilinho e depois fiz as malas, ia levar pouca coisa, umas roupas de banho, minhas e do Brutus, para eventuais mergulhos no rio Donzelinhas – sabe por que o rio se chama Donzelinhas? Tem esse nome por causa de uma espécie de libélula muito abundante no lugar, esses insetos, libélula é inseto, não é? Eu acho que

– ...!

– Continuando, fiz um almoço caprichado e fiquei esperando meu marido. Eu tinha esperança que a retomada das festinhas de swing regadas a bom vinho e muito sexo fosse dar um pouco de luz ao nosso casamento. Eu e Brutus estávamos brigando muito, trepávamos raramente e com pouquíssimo entusiasmo, pra falar a verdade a gente até havia chegado à conclusão que o divór-cio seria a mais honesta forma de sermos felizes individualmente, já que em termos de convivência mútua a vaca já tinha ido pro brejo fazia um tempão, a vaca já estava atolada e

– ...?

– Eu não senti, de fato, a morte do Brutus É por isso que estou assim tão tranquila, sem sombra de tristeza na voz, sem vestígios de choro nos olhos. Durante algumas horas fiquei horrorizada, é verdade, quem é que não treme diante do fim, principalmente um fim trágico, quem é que não se compadece quando se vê diante de um cadáver, um ser humano que riu, fodeu, bebeu, trabalhou, sonhou, quem é que não se assusta com a morte matada? Mas depois me conformei.

– ...?

– O seguro principal é de um milhão quinhentos e trinta mil reais. Ele tem mais dois ou três seguros.

– ...?

– É sim, eu sou a beneficiária.

– ...?

– Isso mesmo, a única beneficiária.

– ...

– Muito bem, vamos retomar o fio da meada. Nós chegamos ao chalezinho na noite de sexta-feira em nosso carro, Zaqueu e Melissa nos esperavam à porta, tinham preparado um jantarzinho à base de massa com mix de cogumelos e mostarda em grãos, além de sagu de vinho tinto como sobremesa. Fazia uma noite agradável, do rio Donzelinhas vinha uma aragem refrescante e da serra perfumes da flora nativa, eu pelo menos sentia os olores, não posso dizer o mesmo das de-mais pessoas – de qualquer maneira a tranquilidade nos envolvia, apesar do estranhamento per-meando nossas conversas e atitudes. Entenda uma coisa, não é fácil pra dois casais que sempre foram amigos de repente avançar o sinal, há tantas barreiras a serem quebradas ou transpostas! Não só éramos bons amigos, éramos amigos do tipo que se visitam aos sábados para um churrasco familiar, que trocam presentes na época natalina, que se beijam fraternalmente no rosto, fazem anedotas inocentes e conversam sobre os filhos – Zaqueu e Melissa também têm um filho, aliás, uma menina, com a mesma idade do Danilinho. Para você compreender o grau de intimidade, confiança e familiaridade entre nós, basta dizer que às vezes ficávamos imaginando – de brincadeirinha logicamente – que num futuro não muito distante nossos filhos iriam se apaixonar um pelo outro, namorar e noivar, casar e nos dar netos. Era bem gostoso imaginar isso, desenhar um horizonte risonho se distendendo

– ...!

– Tudo bem. Voltando ao passo a passo. Jantamos quase em silêncio, tudo o que eventual-mente falávamos estava recheado de constrangida futilidade. Eu não quis experimentar a sobre-mesa, Brutus também não. Então ninguém comeu o sagu de vinho tinto. Fomos para a sala. E ali estávamos os quatro sentados nos dois sofás de frente um para o outro com uma mesinha no meio, evitando os olhos nos olhos, ali, completamente vestidos, babacas e com os pensamentos voltados para o swing – a verdadeira finalidade daquele encontro. “Vamos tomar alguma coisa para quebrar o gelo”, disse Zaqueu. Pegou no barzinho um litro de uísque e começamos a beber. Uísque puro. Uísque caubói – é assim que se chama? Eu não entendo muito dessa coisa de bebi-da, eu evito beber, minha mãe era alcoólatra, bebia quase duas garrafas de vodca por dia, às vezes tomava até mais, como eu li que o vício alcoólico é genético, obviamente não quero deixar o meu na reta, já cansei de ver gente embriagada que

– ...!

– Okey. De qualquer maneira, nesse dia resolvi encher a cara, a gente nem bem acabava de virar o copo de uísque, lá vinha o Zaqueu despejar outra dose. A bebida destravou nossas línguas, começamos a falar de mil coisas, o assunto fluía sem tropeços, começamos papear sobre literatura, cinema, televisão – e depois entramos em terreno mais pantanoso, começamos a criticar nossos parceiros. Antes que a coisa fedesse, Melissa sugeriu que nós duas comparássemos os nossos seios, ela achava que suas mamas eram maiores e mais bonitas que a minha. Um desaforo. Tenho uns seios lindos. Tiramos os sutiãs sob aplauso de nossos maridos.

– ...

– Esses detalhes são desnecessários? Muito bem, vou evitar. Mas o fato é que eu e Melissa começamos a transar, depois de nos despirmos completamente.

– ...?

– Como vou saber o que os nossos maridos faziam? Eu estava entretida com a Melissa, ora essa! Não tinha olhos para mais ninguém, apenas para a Melissa. Acho que os dois observavam a gente e bebiam. Os dois em silêncio. Foi só quando eu e Melissa chegamos ao orgasmo, um or-gasmo simultâneo, é que percebemos a ausência de Brutus e Zaqueu. Melissa disse, “vai ver fo-ram transar em outro lugar do chalé”. Concordei. Vestimo-nos, Melissa foi ao aparelho de som e colocou uma música cantada por Diana Krall, eu amo a Diana Krall, Melissa sabe disso. Busquei duas latinhas de guaraná na geladeira, nos sentamos no sofá e, acredite ou não, começamos a conversar sobre coisinhas bobas e quando vimos colocávamos nossos filhos às alturas, ambas babando de felicidade como qualquer mãe-coruja. O CD de Diana Krall tocou inteirinho, pusemos outro do Michael Bublé, reiniciamos a conversa e já se tinham passado quase duas horas e nada dos dois homens retornarem à sala. “É melhor a gente ver onde eles se enfiaram”, eu disse. Melissa concordou. E lá fomos nós pelos quartos chamando-os pelos nomes, eles nem til. Revistamos a casa inteira, depois fomos à varanda e nada de homens em lugar nenhum, nem mistura-dos às árvores da floresta, nem escondidos nas sombras da noite. Nada. Então Melissa lembrou-se do porão. “Vamos lá, talvez eles estejam desmaiados de bêbados, ou fazendo troca-troca ou sei lá o quê”. E foi assim que descemos ao porão. Mas o lugar não estava às escuras, sinal de que já fora visitado naquela noite. Procuramos por eles e nada. Então eles saíram detrás de um piano desconjuntado num dos cantos escuros, e riam, aqueles dois riam como se tivessem um segredo divertido, passavam o litro de bebida um para o outro, davam goles prolongados e riam. Porra, aqueles dois palhaços deviam estar aprontando ali no escurinho atrás do piano, ah deviam! Melissa ficou emputecida, por que eu não sei, mas que tava botando fel pelas ventas isso ela tava mesmo. Quer saber minuciosamente o que ela disse pros dois?

– ...

– Pois bem, ela xingou-os, voltamos para a sala e ficamos bolando planos para matá-los. Mas veja, era só uma brincadeirinha, a gente tinha em comum, desde que nos conhecemos, a leitura de livros policiais e fascínio pelos filmes de mistério, então nós ficamos ali imaginando o crime perfeito até que eles subissem do porão e nos chamassem pra transar. Fomos para a cama e

– ...

– Está bem, se não interessa o que aconteceu na cama, muito bem. Apenas saliento que copulamos tanto que aos poucos fomos sendo nocauteados pelo esforço físico. Acho que fui a última a dormir, lá pelas cinco da madrugada. Acordei por volta das nove da manhã, nua, é claro. Melissa vestia apenas uma camiseta branca e estava deitada em posição fetal aos pés da cama. Zaqueu dormia no chão, vestido com um pijama com estampas de bichinhos fofos, ursinhos, gazelinhas, essas coisas. Brutus não estava no quarto. Acordei todo mundo, ou seja, Zaqueu e Melissa. Zaqueu perguntou as horas, levantou-se do chão e deitou-se na cama sem responder às minhas perguntas a respeito do desaparecimento de Brutus. Melissa, ainda enrolada em si mesma, mandou que eu fosse ao banheiro, talvez ele estivesse lavando o cu

– ...

– Foi isso o que ela disse: cu. E eu tenho lá culpa da boca suja? Mas por mais incrível que pa-reça, a frase da Melissa me acalmou, realmente o Brutus só podia estar ou no banheiro ou na cozinha fazendo café e eu ali, muito boba, me alarmando à toa. Levantei-me, fui ao banheiro

– ...?

– Não, ele não estava lavando a bunda, ele não estava no banheiro, cara! Bem, aí eu escovei os dentes, tomei uma ducha, enrolei-me numa toalha e fui à cozinha comer alguma coisa. Peguei na geladeira a tigela de cristal contendo o sagu de vinho tinto e quando a destampei para a primeira colherada, o que vi?

– ...

– Isso mesmo, o pinto do Brutus mergulhado na tigela de sobremesa, no momento não parecia um pênis, pensei: o que faz um salsichão na tigela de sagu? Por que o pênis de Brutus, eu vou te contar, é do tamanho

– ...!

– Mas então vi as tatuagens e soube que era o caralho do Brutus. Aí comecei a lamber o cacete e a gritar.

– ...?

– Porra, eu não sei! Maldição, eu não sei por que lambia o pinto e gritava! Não me calei nem quando na cozinha surgiram Zaqueu e Melissa. Parei de lamber o pinto, mas não calei a boca. Acho que estava histérica. É isso, eu estava fora de mim.

– ...?

– É que apertei na mão o pinto melado de sagu com tanta força que ele escapuliu. Melissa se pôs de gatinhas e tentou pegar a coisa. Aí não sei o que me deu, acendeu em meu cérebro um sentimento de posse, gritei: “Como ousa pegar no pinto do meu marido?” E nos engalfinhamos, então o Zaqueu arrancou o fio cumprido da torradeira e nos surrou. A nós duas – não é inacreditável? Aí deixamos o pinto embaixo do fogão e

– ...?

– Não, não especulamos a respeito do mistério envolvendo o pênis do Brutus, apenas nos entreolhamos e fomos procurar o resto do corpo. Percorremos todos os cômodos do chalé, em se-guida descemos ao porão. Brutus estava lá, caído de costas numa lagoa vermelha. Podíamos ver que não havia mais sangue em seu corpo, todo o líquido havia vazado pelo orifício onde antes havia o glorioso pênis tatuado. Vou contar a você por que o pênis de Brutus era tão glorioso

– ...

– Tá certo, eu também acho que uma pausa seria bem bacana.

ZAQUEU

– Rebeca disse isso? Essa história de swing é a maior insanidade que já ouvi na minha vida.

– ...?

– A minha avó se chama Adelina e minha mãe Natália, nada a ver com Íris e Ísis, como bem pode perceber. Os nomes que Brutus tatuou no pau eram de duas namoradas que tivemos no tempo de colégio, elas eram gêmeas idênticas. Só que sacaneavam a gente, uma fingia ser a outra, tá entendendo? Quando eu estava comendo a Ísis, de repente ela revelava que era a Íris. O mesmo acontecia nas transas do Brutus. No fim, a gente nem mais se importava. Quando elas se mudaram para o Rio Grande do Sul – o pai delas tinha terras naquelas plagas – Brutus fez as tatuagens, eu estava junto, vi a coisa acontecer. Eu também ia tatuar meu pênis com os nomes de nossas deusas, mas fiquei com medo, me acovardei, esse negócio de tatuar o pinto faz qualquer maluco se apavorar.

– ...

– Parece mesmo uma ideia de jerico. Mas doutor, você nunca foi adolescente? Garotos têm esses ímpetos esdrúxulos, acham que

– ...

– Pois então vamos aos fatos. Eu sou arquiteto e queria me dedicar à minha verdadeira vocação. Estava infeliz na indústria têxtil Adorno, por isso resolvi vender minha parte da sociedade ao Brutus. Para tanto decidimos nos reunir no chalé, discutir os detalhes do negócio e também beber um pouco, pescar de bote no rio Donzelinhas, ver alguns filmes – eu tinha comprado alguns DVDs de filmes clássicos que havíamos assistido no tempo da adolescência, faroestes com o John Wayne como Álamo

– ...

– Não preciso relacioná-los? Não? Muito bem.

– ...?

– Olha aqui, de fato nossas mulheres não estavam satisfeitas com a reunião.

– ...?

– A Rebeca tem birra da Melissa, pra ser franco, acho que ela tem algum tipo de inveja da minha mulher. Ou do nosso relacionamento.

– ...?

– Meu casamento vai bem, obrigado, ao contrário do que ocorre com o matrimônio de Brutus e Rebeca. Eles, a bem da verdade, estão dando entrada nos papéis de divórcio.

– ...?

– Brutus é muito mulherengo, não pode ver um rabo de saia e pronto, já quer traçar. Ops! Estou falando do Brutus no presente do indicativo...

– ...

– Ah, isso é comum? Mas a partir de agora vou procurar colocá-lo no pretérito, afinal ele mor-eu, e que morte, santo Deus! Uma morte que seria facilmente engendrada por Rebeca, aquela mulher é um terror. Eles dormiam em cama separada já fazia mais de dois anos, mal diziam bom dia ou boa tarde ou boa noite um para o outro.

– ...?

– Quem me contou? O Brutus, quem você acha que seria? Brutus me contava tudo, eu sabia até quando a empregada ficava doente, a gente era unha e carne, ele sabia da minha vida nos seus mínimos detalhes e eu tomava conhecimento até de um eventual ataque de soluço do filhinho deles, a gente se dava melhor que irmãos siameses. Sempre nos demos assim, bem demais, desde sempre. Tínhamos uma afinidade tão profunda que

– ...?

– Porque há o lance dos seguros de vida, Rebeca é a única herdeira. Isso por si só já bastaria para cometer um assassinato. Junte-se à ganância o fato de que ela é uma mentirosa patológica, Rebeca é tão filha da mãe que

– ...

– Está bem, vou me ater aos acontecimentos no chalé. Brutus e Rebeca chegaram ao chalé no começo da noite na camioneta blazer que eles têm, aliás, o casal possui cinco carros, não é um absurdo? Rebeca é a mulher mais gastadeira do mundo, um horror meu Deus, se você for a casa deles, abra o guarda-roupa, aquela monstruosidade que chamam de guarda-roupa, ali vai encontrar peças caríssimas de marcas famosas, vestidos, roupas íntimas, calças femininas, blusas de todo tipo, tudo sem uso, é isso, ela compra pelo prazer de se exibir, só por isso. Não usa a maioria das peças. E os sapatos?! Na sapateira gigante deve haver pelo menos um zilhão de pares de calçado. Dá pra imaginar? Eu gosto de analisar a natureza feminina, quem não gosta? Um homem só é capaz de entender uma mulher se

– ...!

– Não precisa gritar, nossa, que coisa... Bom, eles chegaram ao chalé no comecinho da noite. Nós os recebemos à porta, estávamos todos felizes, nos abraçamos, trocamos beijos nas faces, sentamos nos sofás da sala de estar e bebemos uns drinques para abrir o apetite. Alguns drinques, apenas, é que na cozinha, prontos para ir à mesa, nos esperavam canelones com recheio de cama-rão, massa ao molho com tiras de alcatra e salada de batatas e aspargos – pratos que eu próprio preparei, além do agora famigerado sagu de vinho tinto. Eu e Brutus comemos bem, nos fartamos de verdade, enquanto que as duas mulheres só abriam a boca para lançar farpas de ódio. Aquelas duas não se bicam mesmo, eu não consigo atinar a causa de tanta ojeriza, veja bem, elas até que

– ...!

– Após o jantar eu e Brutus convidamos as garotas para um carteado, um joguinho de buraco ou mesmo um poquerzinho. Elas quiseram? Cada uma falou um palavrão cabeludo, eu e Brutus achamos muita graça, pegamos um litro de conhaque Hennessy e fomos nos sentar à varanda. A noite era fresca e o som do rio embalava as lembranças. Ficamos ali por mais de duas horas, bebericando no gargalo e morrendo de rir das loucuras juvenis, lembramos das vezes em que a-campamos no meio da mata para curtir duas ou três noites, apenas nós dois. Eu cuidava dos apetrechos, da comida, da lavagem de nossas roupas manchadas de clorofila das relvas, Brutus dizia que eu levava jeito de dona de casa, dizia isso de brincadeirinha, é claro.

– ...

– Eu sei. Estou fugindo do assunto. Bom, papo vai, papo vem, Brutus se lembrou de uma faca que eu tinha idêntica à do Rambo, lembra-se do filme Rambo, com o Silvester Stallone? Pois é. Eu disse que a faca deveria estar no porão, dentro da mochila que usava para ir aos acampamen-tos, a mochila verde-militar, ele se lembrava? Brutus se lembrava, então fomos buscá-la. Lá encontramos a Melissa e a Rebeca. O que faziam no porão eu não sei, o Brutus certamente não saberia também. Peguei a mochila pendurada num gancho fixado na parede, abri e fucei no meio de canivetes, rolos de linhas de pescar, essa talha toda que guardamos sem saber por que – e retirei a faca, devidamente embainhada. Tirei a preciosa da bainha. Já nem me lembrava o quanto ela era bonita, o fio estava no ponto, passei o gume no braço, não ficou nem vestígio de pelos.

– ...?

– Que ideia maluca, eu não cortei pênis do Brutus e dei um fim na faca! Aponte-me um moti-vo, só uma razão para eu fazer tamanha desgraceira. Eu não tenho motivos para desejar mal ao meu companheiro de tantas alegrias. Eu amava e amo e sempre amarei Brutus com todo o meu coração. Quer saber, não abro mais a boca. Exijo a presença do meu advogado.

MELISSA

– É claro que tenho ficha na polícia! Já dei uns golpes na praça, já fui ao fundo do poço com esse negócio de drogas

– ...?

– Epa, espera aí, eu era puta mas também trabalhava duro. Eu era stripper na boate Red Velvet, não lembra? Sininho era meu nome de guerra, a aquela fadinha da história de Peter Pan, até mandei fazer uma tatoo dela jogando um punhado de pó de pirlimpimpim para o alto. Você já viu a tatuagem, até elogiou, é uma tatoo na coxa esquerda, do lado de dentro, bem perto da entrada da periquita

– ...

– Como é que é – nunca me viu antes? Nem vem, cara!

– ...

– Seis meses, você está em Cantuária faz apenas seis meses? Tudo bem. Já conheci tantos homens como você que posso estar enganada. Pois então. Havia eu e mais seis garotas, a gente se revezava tirando a roupa em público e depois ia prostituir nos quartos aos fundos do estabelecimento. A gente cobrava caro, só os bons de grana podiam pagar os serviços sexuais. Os tiras tinham regalias, fazer o quê, eles não pagavam e pronto, quem é que ia obrigá-los?

– ...?

– Foi lá no quarto real da Red Velvet que conheci, de fato, o Zaqueu e o Brutus. Sabe aquele... Aquele que tem colchão d’água e espelhos nas paredes e no teto, o quarto mais chique do mundo.

– ...!

– Tá bom, o senhor não sabe. Pra quem nunca pagou nem mulher nem quarto, é costume usar e abusar do bom e do melhor com indiferença.

– ...!

– Tão bom, não serei sarcástica. E também não brinco mais. Todas as despesas eram pagas pelo Zaqueu, ele é quem tinha o dinheiro, recebia mesada do pai, já viu isso, um homem de vinte e cinco anos recebendo mesada? Não trabalhava em porra nenhuma, mas tinha diploma de curso superior, acho que se formou em arquitetura, gostava dessa coisa de paisagismo, sei lá, o fato é que o dinheiro dele bancava as trepadas do amigo, Zaqueu pagava adiantado, sentava numa cadeira e ficava olhando o Brutus foder as meninas. No começo a transa acontecia com a garota que estivesse disponível no momento, depois eu passei a ser a preferida.

– ...?

– É claro que eu achava estranho, mas não perguntava nada, meu negócio era abrir as pernas.

– ...?

– E um cara ficar olhando um amigo traçar uma puta é perversão sexual? Ora, você só pode estar brincando comigo, isso lá é perversão? O Zaqueu mais parecia um menino recebendo lições sexuais de um pai, você nem imagina a quantidade de pais que aparecem com seus filhos adolescentes! Geralmente os filhos são bichinhas que ainda não saíram do armário, eles falham e deixam os velhos furiosos, tenho até pena, com toda certeza esses garotos entram no chicote assim que voltam pra casa. Lembro-me que uma vez

– ...

– Tá. Fatos relevantes. Muito bem. Um dia eu e Brutus estávamos nos acariciando

– ...?

– Não, nada de comprometimentos afetivos, a coisa toda era absolutamente carnal, física mesmo, coisa animal, se é que me compreende; meu trabalho era bem profissional para merecer o pagamento justo, apenas isso. Voltado à vaca magra, nesse dia quando Brutus começou a gozar, a gente ouviu um ruído estranho, não diria estranho tipo assim assustador, era apenas um barulhinho diferente. Paramos de transar e voltamos os olhos para Zaqueu sentadinho na cadeira – e lá estava ele ganindo enquanto se masturbava. Um ganido de cachorrinho querendo mamar – sabe como é? Como era a primeira vez que eu via o Zaqueu se masturbando, achei aquilo extra-vagante, um despropósito...

– ...?

– Olha, não sei por que achei um despropósito

– ...?

– Não uma bizarrice, apenas um despropósito. Zaqueu tinha tanto dinheiro, poderia pegar a stripper que desejasse, qualquer uma delas poderia fazer chupetinha nele, bater uma pra ele, porra, ele tinha dinheiro pra fazer o que quisesse com as minas. E preferia ficar ali, todo babão, batendo punheta e vendo o Brutus me comer. De repente achei aquilo gozado, muito gozado. Então comecei a rir. Brutus saltou da cama me deixando de pernas escancaradas e avançou para o parceiro. Acho que Zaqueu não esperava aquela reação – eu também não – e começou a dar na cara dele de mão aberta, assim, ó, de cheio. Zaqueu apanhou nas fuças até um fio de sangue brotar no canto de sua boca.

– ...?

– O que fiz? Eu não fiz nada, nada de nada, permaneci na cama, pelada e escancarada. O que você acha que eu deveria fazer? Eu estava prestando um serviço sexual para os dois. Para mim, naquele momento, aquelas porradas no Zaqueu passaram a fazer parte do pacote sexual, só isso. Por mim eles podiam até se matar, eu não dava a mínima. O Brutus gritava: “Quem deu licença pra você bater punheta?!” Brutus perguntava e batia. Então Zaqueu caiu com cadeira e tudo e Brutus parou de bater, deitou-se no chão e os dois se abraçaram – eu aproveitei o momento para vazar do quarto, não queria presenciar o que poderia acontecer em seguida. Aí né, depois desse dia da surra, os dois não deram mais as caras; achei que nunca mais veria nenhum deles, imaginei que tivessem brigado não uma briguinha de maricas, mas briga mesmo, de verdade. Seria melhor eu dizer que torcia para que o Zaqueu tivesse mandado o Brutus pra puta que pariu de uma vez por todas, não gostava dele, ele tinha um cacete muito grande, e olha, não é toda mulher que

– ...!

– Continuando. Numa segunda-feira, dia de pouco movimento na Red Velvet, eu estava no palco tirando a roupa e vi Zaqueu sentado numa mesa bem perto do tablado, sozinho e olhando assim meio tipo pidão para o meu rosto. Ninguém olha unicamente para o meu rosto por mais de alguns minutos, meu corpo e apenas meu corpo é o objeto de adoração, por isso estranhei muito aquele comportamento. Após minha apresentação, fui para o quarto, me troquei e voltei para a boate. Sentei à mesa de Zaqueu e jogamos conversa fora por uns quinze minutos, depois ele me convidou para comer alguma coisa no Restaurante Nabuco. Fomos a pé, ele pegou minha mão como se eu fosse sua namorada, eu gostei muito daquela atitude, foi nesse momento que me apaixonei pelo Zaqueu.

– ...?

– Não, cara, não era só interesse, essa coisa toda. Fiquei caidinha, no duro. Sou mais velha que o Zaqueu oito anos e sete meses e já me iludi com os tipos mais esquisitos e ordinários. Já apanhei muito de namorados possessivos, fui escarafunchada na frente e atrás por caralhos de todos os tamanhos e grossuras e até tatuados como o de Brutus. Lembro de um caminhoneiro que tinha a palavra mamãe escrita ao longo do bitelo, dá pra acreditar? Já me esculacharam de todos os modos possíveis, então eu estava cansada daquela vidinha porca. Assim, quando alguém tão especial como o Zaqueu nos oferece uma gota de ternura sem pedir nada em troca, aí cara, não dá outra, a paixão

– ...

– Tá bem, fatos. Durante o jantar Zaqueu me contou que Brutus se casara com uma prima distante

– ...?

– É claro que estou falando da Rebeca, quem mais iria se casar com aquele merda? E o casal tinha se mudado lá pra onde o Judas perdeu as botas sem nem mesmo se despedir. Perguntou o que faria sem a companhia de Brutus, chorou um pouco enquanto jantávamos, estava perdido sem o parceiro, estava tão à deriva que no momento só via a mim como tábua de salvação. Quer saber o que jantamos?

– ...

– Mas eu posso me lembrar perfeitamente, foi o rango mais gostoso que já comi. Pensando bem, o que tornou a noite especial não foi bem o jantar, foi mais o

– ...!

– Terminamos de jantar, saímos de Restaurante Nabuco e fomos para o meu quarto aos fundos da boate e transamos.

– ...

– É isso mesmo, transamos. Zaqueu, agora liberto das garras do Brutus, finalmente poderia comer uma mulher. Provavelmente dava o rabo ao Brutus porque se via obrigado a isso.

– ...

– Concordo, é uma situação inacreditável, absurda. Depois que nos casamos, procuramos um psicólogo para entendermos mais profundamente esse, como é que chama?

– ...

– É. Não vem ao caso. Vai daí que o pai do Zaqueu morreu e como filho único ele herdou a indústria têxtil Adorno. Adorno é o sobrenome do Zaqueu, como já deve saber. Então nos casa-mos, tivemos a Maya, Maya é o nome da nossa filhinha, eu não sabia na ocasião que era o nome de uma deusa hindu, se soubesse não teria colocado, vade retro! Afora isso tudo ia bem, o matrimônio seguia estável... Aí Brutus reapareceu, assumiu um cargo na direção da indústria, depois se tornou sócio – eu ali, engolindo todos os sapos, me afogando na raiva. Então o grandíssimo filho da puta jogou sua última cartada, compraria a parte de Zaqueu na sociedade. E foi assim que nos encontramos no chalé, Brutus muito crente de que Zaqueu levava a papelada para concretizar a venda.

– ...?

– É claro que não havia papéis. Dominação por dominação, eu tinha vários anos de convívio diário com Zaqueu e pleno conhecimento de manipulações, artimanhas e dissimulações conquistadas ao longo de quase vinte anos de prostituição – Brutus jamais me seria um páreo de respeito.

– ...?

– O que aconteceu no chalé foi o seguinte: ficamos nós quatro juntos o tempo todo – jantamos juntos, passeamos pelas imediações do chalé juntos, eu ao lado de Zaqueu, Rebeca acompanhada pelo Brutus. Fomos todos ao porão ver a formidável faca de Zaqueu, idêntica à do Rambo. Também jogamos cartas na sala de estar e bebemos, bebemos muito. Não sei precisamente a que horas fomos dormir...

– ...?

– É sim, cada casal em seu próprio quarto. Eu e Zaqueu acordamos com os gritos insanos da Rebeca, corremos pra cozinha e vimos o pau do Brutus na tigela de cristal cheia de sagu de vinho tinto. Ou na boca de Rebeca. Ela chupava aquela coisa, mergulhava no sagu, gritava, voltava a chupar o pinto com tatuagens homenageando o Zaqueu.

– ...?

– Não sabe mesmo nada sobre as tatoos? Brutus chamava Zaqueu com nomes de deusas quando estavam se relacionando sexualmente. Escolheu tatuar os nomes Ísis e Íris, mas poderia ser Afrodite, Amaterasu, Ariadne, Artemis – só pra ficar na letra A, eu memorizei uma pá de nomes de deusas mitológicas, Zaqueu me ensinou, aliás, nesses anos de convívio Zaqueu me aculturou pra cacete, eu até estou pensando em prestar vestibular pra odontologia, você acha que sou muito velha pra

– ...?

– Como vou saber onde está a faca do Rambo? Não fui eu que cortei o maldito pênis e não sei quem foi, cabe a vocês desvendar o mistério. O mistério do pinto mergulhado na tigela de sagu de vinho tinto.

– ...?

– Por que estou rindo? Não sei. Nervosismo?

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 12/12/2016
Reeditado em 12/12/2016
Código do texto: T5850794
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