Olho por olho
04/12 – Faz 238 dias que enviei a novela Esqueletos Azuis à editora Hangar. Ignoram solenemente o meu trabalho? Seria a maior canalhice do mundo. Tanto esforço, meses de angústia, suores e lágrimas para escrevê-la – será que o editor é incapaz de ter ao menos um pingo de compaixão? Que me enviasse pelo menos uma cartinha, daquelas estereotipadas, ou mesmo um bilhete metendo o pau – uma coisa assim é bem melhor que esse silêncio sepulcral, essa sombra carregada de menosprezo, esse vazio que tento preencher com outra esperança: há 15 dias mandei para a editora Totem o romance Chá de Mandrágora. Consola-me saber que nessa editora existe profissionalismo de verdade. Se um trabalho não presta, devolvem-no em trinta dias. Tenho vinte e oito anos e há dez anos venho azucrinando os editores da Totem com meus manuscritos. Nunca foram de gentilezas gratuitas, mas com eles jamais fiquei sem respostas. Ninguém me compreende. Nem os editores, nem meu médico, nem minha esposa. E tenho ainda que aguentar as perturbações do Além. Hoje, lá pelas três da manhã, acordo com risos cristalinos ecoando na sala. Cutuquei Semíramis ao meu lado, confinada em seu característico sono de leveza de pluma. “Não enche, estou cansada”, ela resmungou. Devia estar pensando que eu desejava fazer sexo – há mais de dois anos ele murmura tal frase. Não sei como a lucrativa brincadeira de escrever fofocas no jornal sobre pessoas fúteis pode cansar alguém. “Tem alguma coisa dando risadas lá na sala”, expliquei. “Não se preocupe”, ela disse, “são os pernilongos no acasalamento”. Diante da ironia, encolhi-me como feto no útero e tentei pegar no sono. Mas a risada persistia. Levantei-me, por fim, e silenciosamente – para não chamar a atenção de Semíramis e ser vítima de mais sarcasmos – dirigi-me à sala mergulhada na escuridão. E ali, sentadinho no piso a brincar com um par de chinelos, resplandecia um gurizinho de uns três anos. Resplandecida azuladamente, como se de todos os seus poros irradiasse aquele matiz belíssimo. Levei um choque – era Naim, nosso filho falecido há mais de dois anos. Semíramis sempre me culpou pela morte do garotinho, mas como é que eu poderia imaginar que o pirralho iria ter forças para empurrar a pesada cadeira para a sacada do prédio onde então morávamos, no décimo andar, depois galgá-la e debruçar-se na mureta? Não tive culpa da tragédia. Como Semíramis pôde delegar responsabilidade de babá a um escritor concentrado em seu fazer criativo? Sob esse ângulo, ela foi mais culpada que eu. Chamei meu filho pelo nome, baixinho, o coração explodindo dentro do peito. Naim levantou-me os olhos negros, sorriu e como que se evaporou no ar. Ficou ainda por instantes o azulado vazio de sua presença e em seguida na sala reinou a escuridão absoluta. Claro está que nada disse à Semíramis, ela iria ficar irritadíssima e, com a crueldade que lhe é peculiar, dizer-me que eu estava tendo mais uma crise psicótica. Aliás, nem sei por que lhe dirijo a palavra – sempre que abro a boca, lá vem o sargento com duas pedras nas mãos.
05/12 – Aconteceu-me uma coisa singular e assustadora nesta madrugada: expulso da cama por Semíramis com o pretexto de eu estar roncando muito alto, acabara de me acomodar no sofá da sala quando senti uma espécie de enrijecimento do corpo, um formigamento nas mãos e pés, um calorão de caldeira no rosto e, então, minha cabeça começou a zumbir. Parecia ter uma colmeia no lugar dos miolos – se não fosse pelo medo de acordar minha mulher, teria gritado como um possesso. Deu-se, a seguir, que uma voz começou a sussurrar dentro da caixa craniana. Uma voz rascante, empolada, terrível. Não conseguia entender o que estava ouvindo, apenas sentia um medo insano, algo tão intenso que não há palavra capaz de descrevê-lo com fidelidade. Por cinco minutos – ou anos? – fiquei ali, deitado no sofá, paralisado de terror, escutando a voz. Depois voltou o zumbido e quando tudo terminou acabei adormecendo imediatamente, banhado em suor, completamente exausto. Despertei por volta das cinco da manhã, fiz café e vim para aqui, ver o sol nascer. Até as seis e meia, fumei uma carteira de cigarros. Gostaria de beber um copo de uísque, mas o maldito médico proibiu-me. Pouco antes das sete surgiram os pombos columbinos e pousaram nos galhos da arvorezinha defronte da janela do meu quartinho transformado em escritório. Arulhavam caminhando pelos galhos e balançando as cabecinhas de um lado para o outro, como se estivessem procurando uma forquilha para nidificar. Torci desesperadamente para que se desse tal milagre. Investigaram a árvore como locadores analisando uma casa e depois voaram para longe. Fiquei arrasado. Mas tive que lhes dar razão: minha arvorezinha, apesar da pouca idade, está definitivamente condenada. Misteriosa doença está atacando seus galhos, apodrecem, as cascas soltam-se. Nas outras casas da vizinhança há árvores imensas, todas verdejantes, de copas fechadas, dando sombra, abrigo, atraindo insetos para uma bela refeição. Com a ida dos pombos, tomei consciência de minha solidão e fiquei estranhamente constrangido e angustiado. Constrangido porque achei vergonhoso que um ser humano pudesse ser assim tão só, tão carente, tão desprezível – e angustiado porque não via perspectiva de mudanças: eu seria eternamente um homem metido em mim mesmo, obrigando-me a falar com a máquina de escrever, com a lauda em branco, com meus cds de música clássica – houve um tempo em que navegava por sites mórbidos da internet procurando aplacar minha solidão. Tanto o médico como Semíramis acharam que os sites só aprofundavam meus estados psicóticos, então me confiscaram o computador, assim, ditatorialmente. É nisso que dá ser dependente financeiramente dos outros, no meu caso específico, de Semíramis. Não sei por que, mas me lembrei que não sorrio há muito tempo. Vexado como uma madame flagrada roubando as prateleiras do supermercado, ensaiei um sorriso – ficou-me a sensação de um esgar de cão pit bull.
06/12 – O rapazinho dos Correios entregou-me uma carta e eu, trêmulo de emoção, vi que se tratava de correspondência enviada pela editora Hangar. Quis saber se não haveria um envelope maior, contendo a devolução dos originais. Ante a negativa do jovem, voltei para meu quartinho com o cérebro fervilhando de expectativas. Quem sabe não estavam anunciando a aceitação do meu livro? Antes de abri-la, fui à cozinha e tomei um comprimido para acalmar os nervos, retornei ao cômodo e coloquei no aparelho de som a Heróica, de Beethoven. Fiquei mais de meia hora com a carta, ainda fechada, nas mãos, resolvido a extrair da esperança os mais belos sonhos. Finalmente rasguei o envelope e desdobrei o papel e não pude acreditar no que estava escrito: “A respeito da novela Esqueletos Azuis, informamos que não estão previstos em nossa programação títulos sobre esse assunto. Seu material encontra-se à sua disposição em nossa editora”. Fiz um esforço danado para conter as lágrimas, mas fui vencido pela implacável dor assolando minha alma. Chorei silenciosamente, mansamente, tomado, enfim, pelo cansaço e pela convicção de ser um mísero perdedor. E os sujeitos não tiveram nem a decência de me devolver os originais! Estava assim, derrotado e nadando em piedade por mim mesmo, quando as aves columbinas retornaram. Era o mesmo casalzinho, não havia dúvida. Que outro casal de pombos selvagens haveria de nidificar em pleno centro da cidade, na arvorezinha mais decrépita e feia da região? E iriam nidificar, pois em pouco começaram a transportar raminhos e a trabalhar diligentemente, construindo na junção de uma retorcida forquilha. Estavam fazendo o ninho numa altura muito baixa, pensei contente – os pombinhos, afinal, me ofereciam um crédito de irrestrita confiança. Fiquei um tempão a observá-los e, então, tive a ideia de tocar no aparelho de som algumas músicas como prova de que eram bem vindos. Toquei Rimski-Korsakov, mas eles não deram atenção. Não ligaram a mínima também para Schubert e Mozart. Mas gostaram de Vivaldi. Constatei que, de tempo em tempo, imobilizavam-se e entortavam as cabecinhas, atentos. Toquei para eles toda a minha coleção de Vivaldi.
O7/12 – Acordei de madrugada com uma dor de cabeça tão forte que pensei que fosse botar os miolos pelas narinas, além de uma sede miserável – era como se eu estivesse andando por desertos há semanas. Levantei-me, fui à cozinha e tomei um copo de água com uma aspirina. A sede passou, mas não o doloroso e infernal latejar na cabeça, mil agulhas introduziam-se na massa encefálica com um sadismo de torturadores nazistas. Tinha que ocupar a mente com alguma coisa que desviasse o foco dos meus martírios. Lembrei-me que a seleção brasileira de vôlei feminino estaria àquela hora disputando o título mundial da categoria no Japão, jogo que seria transmitido ao vivo pela televisão. No momento de ligar o televisor, um ruído me chamou a atenção. Um barulhinho qualquer, quase insignificante, vindo do meu quartinho. Apurei a audição: era um tec-tec-tec suave, como alguém datilografando em minha máquina de escrever. Ratos? Ora, tal coisa era inconcebível! O tec-tec-tec fazia-se ritmado, pausas pensativas. Como escritor que sou, não tive dificuldade em captar a música das frases sendo escritas. Apavorado, primeiro pensei em acordar Semíramis, mas já sabia, de antemão, que seria ridicularizado. Sentei-me no sofá, tenso, expectante. O barulhinho continuava. Por fim, arranjei coragem no mais recôndito do meu medo e dirigi-me para o quartinho. Acendi a luz e fui inspecionar a máquina. No rolo da Remington, havia marcas frescas, mas estas se misturavam a uma infinidade de outras que ali se acumularam durante quase dois anos de diário datilografar. Impossível detectar alguma mensagem. Muni a máquina de papel, apaguei a luz e voltei para a sala. Em pouco ouvi de novo o martelar das teclas – depois a luz acendeu-se misteriosamente. Rápido, pulei do sofá e fui ver se tinha alguma coisa escrita. Havia. Xega! Assim mesmo, com xis. Não entendi, por mais malabarismos mentais que fizesse, a sua significação. Cansado, entorpecido pelo esforço em decifrar o enigma daquela única palavra, acabei dormindo na cadeira em frente à escrivaninha. Acordei com o sol entrando pela vidraça. Abri a janela e saudei com uma vênia o domingo que surgia tão esplendoroso. Em seguida procurei com os olhos minhas aves columbinas. Já estavam a postos, na faina da nidificação. Olhei por um momento a palavra Xega! e dei de ombros. Foda-se! Afinal, os meus pombos ali estavam, na arvorezinha, construindo o ninho – e no momento era o que importava. O domingo prometia ser magnífico. Gosto dos domingos – é o único dia da semana em que me alimento com real prazer. Semíramis não vai para o jornal escrever sua coluna social e, assim, prepara-me a refeição. Faz uma quantidade incrível de comida, sempre com a intenção de que dure toda a semana – recusa-se a contratar uma cozinheira, não sei por que, dinheiro não lhe falta, e a faxineira só vem aqui duas vezes por semana. Quanto a si, almoça e janta fora. Quando vou esquentar minha refeição nos dias da semana, sempre tenho a impressão de estar às voltas com alimento estragado. Aos domingos, a comida fresca invariavelmente me inspira momentos de genuíno prazer. Depois, tenho direito a dois uísques e uma garrafa de cerveja, contrariando as ordens médicas. Enquanto estava sentado na janela, vendo meus pombos, Semíramis trouxe o copo de uísque e a garrafa de cerveja, colocou-os sobre a escrivaninha e, sem dar um pio, desapareceu. É sempre assim. Deus, como eu gostaria de trocar um dedo de conversa com ela! No entanto, tenho medo. Medo do seu azedume, de sua ironia, de sua língua de víbora, das duas pedras nas mãos. Engoli o uísque, servi-me da cerveja. Coloquei no aparelho de som o Vivaldi para as minhas avezinhas. Era um verdadeiro deleite ter a companhia de tão doces criaturinhas. Lá pelas nove da manhã, Semíramis resolveu lavar o quintal, esse quintal todo cimentado onde, como únicos indícios de vida são a arvorezinha e, há dois dias, os pombos. Para tanto, ela pegou a máquina automática cuja pressão de água sempre imaginei capaz de arrancar paralelepípedos. Pensei em admoestá-la, iria assustar meus passarinhos – mas, como sempre, acovardei-me. O ruído do trambolho era demoníaco. Como minhas avezinhas poderiam ouvir Vivaldi com tamanha barulhada? Um dos pombos alçou voo em busca de mais raminhos. E foi aí que o outro pássaro, certamente irritado com o fragor da máquina de lavar, decidiu fulminar a cabeça de Semíramis com uma liquefeita camada de excrementos. Semíramis virou a pistola do esguicho para o alto e acertou-o em cheio. A avezinha foi lançada há uns quatro metros de altura, caiu dentro do quintal cimentado, estremeceu duas vezes e imobilizou-se por completo. Daqui da janela senti as vistas se escurecerem. Perdi a noção de tudo. Quando me recompus, olhei para o rolo da máquina de escrever e li a frase, bem nítida na brancura do papel: Olho por olho.
Faz mais de duas horas que assassinei Semíramis. Seu corpo jaz sob a arvorezinha, perfurado com cerca de trinta facadas. Semíramis tombou sem um grito, apenas um suspiro escapuliu de sua garganta, a primeira estocada tinha atingindo o coração. E vejo – daqui da janela – que as moscas varejeiras estão alvoroçadas com o sangue coalhado pelo sol. Umas moscas enormes, de um verde rútilo – há pouco, uma delas veio pousar no dorso de minha mão, pude senti-la, arrepiado de prazer, lambendo vorazmente o sangue de minha mulher. Outra ficou presa em minha longa barba prematuramente grisalha. Estou todo ensanguentado. Devo chamar a polícia? Não. Ainda não. Que as moscas – tão belas! – aproveitem bem o banquete de gala...