Rosa vermelha mortal

Assim, num estalo de dedos, minha vida virou de ponta-cabeça, primeiro perdi minha mulher, dá pra imaginar uma senhora já beirando os sessenta anos escrever um bilhetinho dizendo que encontrou um novo amor, fazer as malas e partir de táxi para um destino incerto e não sabido? Pois foi exatamente assim que aconteceu. Fugiu com um sujeito trinta anos mais novo, conforme me atestou a maledicência dos vizinhos. Trinta anos – dá pra acreditar? Claro que dá, levando-se em conta a preferência dela por homens no vigor da idade, como era o meu caso, há cinco anos. Em cinco anos ela sugou toda minha energia. Vai daí que me tornei na cama um zero à esquerda, um ponto de interrogação no hemisfério do meu corpo onde efetivamente deveria haver um ponto de exclamação para o direito à cama e comida. Em seguida morreram meus três canários, assim de pronto; tratei dos bichinhos de manhã com alpiste, água fresca e almeirão, coloquei as gaiolas na varanda e de tardezinha quando fui levá-los para a lavanderia ao abrigo das intempéries noturnas, estavam esticados e duros na bandeja forrada com as folhas impressas do computador e descartadas do meu primeiro roteiro, eu queria bolar um thriller para oferecer ao primeiro investidor cinematográfico que aparecesse, ou seja, queria abocanhar um boi inteiro, com casco e chifre e tudo o mais – bem, trabalhava havia seis meses na maldita história e tinha empacado na sexta página: naqueles últimos tempos minha impotência não era apenas sexual. Fiquei possesso com a morte das avezinhas e achei que a culpa era da prefeitura, um caminhão tinha passado durante a tarde fazendo fumigação de veneno para o combate ao mosquito da dengue, só podia dar naquela tragédia mesmo, custava ao poder público avisar aos moradores que os animaizinhos de pequeno porte deveriam ficar protegidos da fumacinha diabólica? Cheguei a ligar para o advogado da minha ex perguntando se havia um jeito de eu processar a municipalidade por perdas e danos – fui dissuadido, seria derrota na certa e, depois, eu tinha dinheiro para custear o trabalho advocatício? Ao que sei você está na pindaíba, disse-me o advogadinho, jogando-me na cara que sem o apoio financeiro da mulher fujona eu não passava de uma água salobra teimando em não se evaporar de uma vez. Ainda inconformado, voltei minha ira para o japonês e seu almeirão inchado de produtos químicos, planejei ir à quitanda, pegar o indivíduo pelos colarinhos e encher sua cara de porradas, freei-me a tempo, era isso, eu tinha que ficar eternamente controlando meus ânimos, por qualquer coisinha eu já saía no braço – esta a razão de Verônica fugir na calada da noite dentro de um táxi, ao invés de me expulsar da casa que era sua, ali dentro de meu mesmo só tinha o computador, até as roupas que eu usava foram presentes daquela desnaturada. Acabei plantando os passarinhos junto aos antúrios brancos na jardineira rente ao muro, esperançoso que meu gesto rendesse a frutificação da boa sorte e já sem nenhuma mágoa no coração, os canários foram um mimo de Verônica no meu quadragésimo aniversário, um presente que recebi com desgosto, passarinhos são sinônimo de cuidados, desvelos, amor. Eu lá tinha sensibilidade para essas delicadezas pueris?

Uma semana após Verônica me abandonar, dois homens surgiram na varanda com uma papelada nas mãos ordenando que eu caísse fora da casa levando comigo apenas a roupa do corpo. Argumentei que o computador era meu de fato e de direito, iria levá-lo, ora que diabos! – os homens chamaram um policial postado na calçada, grandão e com cara de odiar o mundo inteiro, a começar pela mãe. Não é que o sujeito veio me encarar com uma mão segurando o cabo do canhão enfiado no coldre? Como bom cabrito, achei de bom alvitre não berrar, dei de ombros, levantei as mãos para cima em gesto de rendição, enfiei-as nos bolsos da calça, desci a escada da varanda, olhei longamente o pessegueiro em flor que eu próprio plantei, ouvi um dos homens me chamar de otário, reconheci que ele tinha razão, afinal eu ficara um tempão sozinho na casa e não tinha vendido nada de nada, nadinha, nem mesmo uma colherinha de prata ou um fruto temporão das árvores do quintal. Fitei os caras tentando fazer um arzinho ameaçador, eles riram, engolindo amargura caí fora da propriedade.

Sem um puto tostão nos bolsos, fui ao bar do Maneco e pedi uma dose de pinga, caso ele não se importasse de pendurar mais aquela continha. Maneco se importava. Mostrou-me a caderneta ensebada com minhas dívidas anotadas, só beberia se pagasse pelo menos a metade dos fiados. Maneco não esperava que eu implorasse pela bebida, eu sabia que jamais seria capaz de tamanha humilhação, por isso sentei-me na banqueta junto ao balcão, Maneco foi lavar alguns copos e ficamos ali, um emburrado com o outro, até que surgiu um freguês que se acomodou ao meu lado, pediu cerveja, bebeu-a sem me oferecer um copo, pagou e saiu. Mais três fregueses entraram no boteco, dois deles beberam cachaça, o outro um fernet – eu não os conhecia, deviam ser pedreiros de uma construção ali por perto tomando um aperitivo para o almoço, esses bebedores certinhos não me interessavam. Mas então chegou o Paulinho Contador querendo um ouvinte para contar que a esposa perversa o trocou pelo Pedrão Farmacêutico. Alcoólatra necessitando de combustível não se importa de alugar os ouvidos como penico, por isso lhe sorri simpaticão que só, ele deu um tapaço em minhas costas, pediu uma cerveja, dois copos e fomos nos sentar à mesa e ali ficamos até por volta das onze da noite, enchendo a cara e injuriando os sagrados laços matrimoniais. Só sei que o Maneco chamou um táxi para levar o Paulinho Contador para casa, já que o freguês podia pagar. Enquanto esperávamos o veículo, ele me convidou para tomarmos a saideira na casa dele. E fomos. O Paulinho morava no andar superior de um sobrado na Avenida Sol Nascente – no térreo ficava o escritório contábil. Só sei que descemos do carro aos tropeções, ele pagou o taxista e tivemos que nos apoiar um no outro para subir a escada que ficava na lateral do edifício. Abrir a porta foi outro dilema que nem vale a pena descrever. Assim que entramos na sala, despenquei no sofá, rindo feito pateta enquanto observava o anfitrião cambalear até a geladeira e retirar um litro de vodca contendo uns três quartos de bebida. Acho que o Paulinho estava quase sóbrio se o seu estado de embriaguez fosse comparado ao meu. Ele se esparramou ao meu lado no sofá, levou o gargalo do litro à boca e sorveu um grande gole. Passou-me o litro, bebi um longo trago. Então o Paulinho levou sua mãozinha delicada no meu pau. Foi como se eu fosse atingido por um balde de água gelada. Sempre me imaginei um cara desprovido de preconceitos, um escritor que sempre apoiou as lutas das minorias, principalmente o ideário gay de respeito às diferenças sexuais. É sim, sempre fui simpático às causas das lésbicas e homossexuais. Mas até então ninguém havia tido o desplante de avançar o sinal comigo. Bem, se eu estivesse sóbrio iria achar o gesto do Paulinho no mínimo engraçado, teria brecado o avanço libidinoso com algumas frases espirituosas, talvez até demonstrasse surpresa, aliás, genuína, de saber que aquele homenzarrão tivesse escolhido justamente aquele momento para sair do armário. Provavelmente iríamos dar gargalhadas numa boa. Mas eu estava bêbado, então fui tomado pela fúria, mas que diabo, aquele desgraçado estava pensando que eu fazia parte de sua laia, que era chegado nessa coisa de homem fungar em meu cangote? Então veja, eu estava bêbado, eu estava furioso, eu estava puto da vida. Esse é meu argumento para explicar porque arrebentei o litro de vodca no coco do homem. A cabeça do Paulinho abriu-se como uma rosa vermelha. Foi nisso que pensei: uma rosa vermelha. E fiquei mais furioso ainda, furioso comigo mesmo. Mas que diabos eu, um cabra macho até a medula, um heterossexual inquestionável, viril, hétero, forte, hétero, rijo, hétero e hétero e hétero tinha que ficar naquele momento pensando em flor vermelha?! Veio-me aos miolos aquela história de que todos os que odeiam bichas não passam, lá no fundo, de florzinhas, frutinhas, enrustidos nojentos. Aquilo me arrepiou a espinha, um arrepio de medo de mim mesmo, de todos os pederastas do mundo, dessa vida nojenta. Paulinho estava encolhido no canto do sofá me olhando como se não me compreendesse, o sangue lhe escorria pelo rosto do ferimento na cabeça. Senti vontade de socorrê-lo, de ajeitar seu corpo em meus braços, aninhar sua cabeça destroçada em meu peito, queria lhe dizer palavras de consolo, palavras ternas, afetivas, santo deus eu queria... O litro de vodca estava em minha mão, ali, quebrado, as arestas pontiagudas brilhando sob a luz muito clara das lâmpadas – fiquei olhando as arestas, a cabeça de Paulinho transformada numa linda, numa bela flor verme... Saltei em cima do cara, lancei-o ao chão, rasguei seu corpo em tiras, o sangue esguichava através das artérias jugulares, das artérias femurais e do coração – que arranquei com as próprias mãos, que triturei nos dentes. Eu estava tão bêbado, tão cansado, tão molhado de sangue que em dado momento estendi-me em cima do corpo de Paulinho, beijei-o na boca, eu estava tão cansado, tão exausto, tão vazio, tão desiludido com a raça humana que só queria dormir, dormir eternamente, dormir para sempre. E dormi tão pesado que só acordei de manhã porque a faxineira da casa estava gritando tão possessa como a sirene de um carro de bombeiros.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 24/11/2016
Código do texto: T5833008
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