E assim é a vida urbana...

Aos sete anos de idade Brenda ganhou sua primeira câmera filmadora, o equipamento era semiprofissional. Talvez fosse uma câmera cara demais para deixar nas mãos de uma garotinha, mas seus pais acabaram se deslumbrando com a ideia de uma filhinha cineasta e compraram a câmera por impulso.

Brenda passou cinco anos com aquela filmadora. Registrou cada momento de sua infância e gravou vários curtas inocentes e especiais em CD’s virgens, nomeando cada um com títulos poéticos e simbólicos (ao menos na cabeça de uma criança). “A flor do campo” era o curta preferido da mãe de Brenda, consistia em 7 minutos de filmagem, nos quais Brenda brincava no jardim de sua casa: montada em sua bicicleta, jogando bola ou simplesmente correndo alegre. A cada um minuto, a imagem da menina era substituída por uma flor do jardim, que se limitava a ficar presa em sua delicada raiz, balançando um pouco à medida que o vento batia.

O pais de Brenda realmente acreditavam que sua filha tinha futuro no mundo cinematográfico, achavam que seus curtas estavam muito acima da média para uma criança. Por isso, ao completar 13 anos, Brenda ganhou uma câmera profissional muito cara; ganhou também um notebook (não tão caro) que serviria somente para idealizar, produzir e editar seus projetos. A partir daí, a pré-adolescente produziu centenas de filmagens enquanto sonhava com sua futura carreira de cineasta.

Brenda ingressou na faculdade de Cinema e Audiovisual, aos 18 anos de idade, e nesta época ainda usava sua câmera que ganhara aos 13 anos. No seu segundo ano de faculdade, a jovem iniciou um projeto ambicioso: um longa-metragem. Juntamente com alguns amigos de curso, Brenda elaborou uma ideia para a primeira investida séria na sua carreira. O longa tinha um conceito simples, mas atraente. Se tratava de uma visão alegórica e realista da vida urbana: as filmagens iam das festas da alta sociedade até os moradores de ruas; passando por favelas, becos, shoppings e arranha-céus. Não se tratava de uma crítica (como as que se vê por ai) à segregação espacial e às vítimas do capitalismo selvagem. Mas em seu princípio, buscava retratar a sociedade urbana e evidenciar as coisas que vivenciamos sem notar. O projeto inicialmente foi batizado de “E assim é a vida urbana...”.

As filmagens eram feitas, na grande maioria das vezes, sem planejamento. Passeando pelas ruas da cidade, algo espontâneo chamava a atenção de um dos participantes do projeto e ali mesmo surgia uma nova tomada para o longa. Qualquer coisa podia servir: um mendigo barbudo bebendo cachaça, uma mulher empurrando um carrinho de bebê, crianças brincando na rua, trânsito lotado e barulhento.

Brenda, com sua câmera, estava perseguindo um cachorro vira-lata. O cachorro, por sua vez, perseguia qualquer um que olhasse para ele por mais de dois segundos. Aquela cena seguiu-se por uma hora. Brenda estava tão distraída atrás do cão que nem percebeu que escurecera. Não percebeu que estava em um lugar um tanto distante das ruas movimentadas, ou percebeu que estava sendo seguida há quatro quadras. Se ela tivesse olhada para trás com um pouco mais de atenção, teria notado uma figura em seu encalço. Se o cachorro ao menos mudasse seu rumo e fosse em direção à ruas mais movimentadas. Mas o vira-lata não mudou seu trajeto, foi cada vez mais longe em um beco escuro; Brenda não reparou ninguém a perseguindo, estava ocupada demais com seus sonhos de cinema. E assim é a vida urbana.

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Olhou para seu Rolex – 19:00 horas – no horário de verão. Não demoraria muito para escurecer. Ele viu quando a jovem caminhava em direção a um beco com uma câmera na mão, parecia estar sozinha com exceção do cachorro que ela parecia filmar. Ela usava um vestido verde na altura dos joelhos.

O sangue do homem já começara a ferver, suas mãos estavam agitadas no volante de sua Land Rover. Ele deu a partida no carro de luxo e seguiu devagar pela rua até ficar de frente com o beco, dali não poderia seguir de carro (e mesmo se pudesse, não seria nada discreto). Desligou o carro e hesitou por um instante, mal via a garota, ela estava começando a ficar bem distante.

Talvez ele devesse deixar para lá. Estava sozinho e a garota podia saber se defender, não fazia muito tempo desde a última vez que fizera aquilo e a frequência podia acabar chamando atenção. Ele gostaria mesmo de acreditar naquilo, mas no fundo sabia que podia prosseguir sem dificuldades. A garota era magricela, estava distraída, ele tinha quase um metro e noventa. Quanto à possibilidade de chamar atenção, sabia que não teria como ligarem algum caso à ele – e se o fizessem, ele sabia também que isso não o prejudicaria o bastante.

O homem desceu do carro. Estava de sobretudo e carregava nos bolsos internos um vidro de clorofórmio e uma pistola 9mm. Caminhou pelo beco tranquilamente. A garota estava tão concentrada na sua filmagem que ele nem precisou se preocupar em ser discreto quando despejou o clorofórmio em um lenço e seu aproximou dela. A única resistência foram alguns segundos de agitação dos braços e pernas da garota, mas ele teve a impressão de que ela estava mais aborrecida em ter derrubado a sua câmera no chão do que no homem agarrando ela em si. De qualquer forma, logo tudo foi ficando escuro para a jovem cineasta.

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Brenda despertou, mas não conseguiu abrir os olhos. Se sentia, sonolenta, molenga e um pouco enjoada. Podia sentir que estava em um carro em movimento, o banco parecia ser confortável, mas não conseguia esticar os braços para examiná-lo. Demorou alguns instantes para perceber o que era aquilo. Estava vendada, de mãos atadas. Tentou chamar por alguém, mas sua voz soou apenas em sua mente. Tentou gritar e o máximo que conseguiu foi um grunhido curto e abafado.

SEQUESTRO! Foi a palavra que surgiu na mente da jovem. Ela já ouvira casos, garotas que simplesmente sumiam, ninguém sabia o que tinha acontecido com elas. Mas no fundo sabiam. Eram agredidas, forçadas a fazer coisas sujas e terríveis, mantidas aprisionadas até finalmente os agressores se cansarem delas e matá-las em um ato de misericórdia. SOCORRO!!! Agora era isso que martelava na cabeça de Brenda.

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O homem da Land Rover estacionara seu carro em um local bem distante daquele que vira a garota e sua câmera. Seu Rolex mostrava 23:00 horas. No meio do caminho tinha avisado à todos os outros de sua mais nova aquisição. Os outros homens ficaram muito animados, queriam desfrutar naquela noite mesmo. Se encontrariam no lugar de sempre à meia noite, para começarem a diversão que Jonas arranjara.

Enquanto Jonas aguardava o resto do grupo, se encarregou de acomodar a convidada principal da festa em seu devido lugar. A essa hora, a garota já devia estar acordada e inquieta. Ele acendeu um cigarro e abriu a porta do carro.

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A porta do carro se abriu. No momento seguinte alguém retirava a venda. Brenda abriu os olhos, estavam vermelhos pois ela havia chorado no caminho todo imaginando o que aconteceria. Instantes se passaram até que a vista focasse a imagem do homem em sua frente. Era um homem grande, a cabeça começava a apresentar sinais de calvície, tinha um rosto gordo (bem como o resto do corpo) e uma feição cansada – devia ter no mínimo quarenta anos –, sua boca era pequena com lábios finos e nela repousava um cigarro.

O homem encarou ela e sorriu.

– Olá, minha princesa. Por que está chorando? – Ele disse, passando a mão grande e peluda no rosto da jovem. – Meu nome é Jonas, sou seu novo namorado... Bem, ao menos um de seus namorados. Você terá vários esta noite.

O sorriso de Jonas foi ficando cada vez maior e sua boca não parecia mais tão pequena. Ele não parecia cansado agora, tinha uma feição alucinada e acesa de excitação. Os olhos de Brenda ficaram arregalados e lágrimas infindáveis percorreram seu rosto.

Jonas apanhou a garota em seus braços e a retirou do carro, ela começou a soltar ruídos abafados. Ele adorava aquela parte, o desespero da vítima, os gritos afogados, a luta. Por fim, o desespero se transformava em desistência, abandono da razão e até mesmo em abandono da vontade de viver. Esse desespero sem dúvidas foi o que viciou Jonas, mas seria exagero dizer que era a parte mais excitante. Todos sabiam qual era a parte mais excitante.

*****

Brenda estava sendo carregada. Quando viu o grande galpão que se encontrava, pode imaginar as fotos nos jornais com a manchete “garota é encontrada morta em galpão abandonado”. Foi sendo arrastada para a entrada, a porta estava com uma corrente grossa trancada por um cadeado. O homem – Jonas era seu nome – a segurou com um braço e retirou a corrente com o outro. Logo que entraram, ele foi até o interruptor e acendeu apenas uma das fileiras de lâmpadas fluorescentes.

Foi a última fileira que se acendeu, Brenda pode ver que o barracão era enorme e estava praticamente vazio. Conforme Jonas foi levando-a para o fundo, ela pode ver uma mesa baixa de madeira branca. Em cima da mesa, o que pareciam ser vários metros de corda. Na parede, Brenda viu um armário de metal. Jonas finalmente largou a garota na mesa. Ela achou que agora suas amarras seriam afixadas nos pés da mesa, mas o sujeito parou um instante e olhou para ela, ele deu um breve sorriso como quem tem uma ideia e em seguida virou de costa e saiu andando.

Brenda ficou sozinha por alguns minutos, aflita.

*****

Jonas voltou até o carro, deixara a garota sozinha mas ela estava com a mãos e pés amarrados. Ela não poderia fazer nada, nem mesmo gritar – e mesmo se gritasse, era quase impossível que alguém ouvisse, aquilo era apenas uma formalidade e logo a boca da garota seria desatada.

No banco do carona estava o que viera buscar, mas não era algo dele, era algo que pertencia a garota. Pela primeira vez se perguntou, qual seria o nome daquela jovem?

Enquanto retornava ao galpão, Jonas acendeu a luz da câmera filmadora que apanhara. Caminhava lentamente, ele deu zoom e pôde focalizar a garota jogada na mesa. Ele filmou o corpo dela, indo devagar dos pés à cabeça. Uma das alças do vestido verde dela estava caída e o ombro nu bastou. Uma onda de excitação passou por ele, queria poder começar a festa agora mesmo. Mas ele esperaria. Essa era a regra, aquilo só devia ser feito em equipe.

Ele estava agora bem próximo à moça.

– Olá novamente, princesa. O que acha de uma pequena entrevista antes do show principal? – A garota voltou a chorar – Ora, vamos lá. Por que não dá um sorriso para câmera? Oh céus, mas é claro. Como a princesa vai sorrir com essa coisa tampando seus delicados lábios? Deixe-me cuidar disso para você.

Jonas foi a até a garota e gentilmente desamarrou a faixa que estava em sua boca, a garota cuspiu a bola de pano que levava na boca.

– Me solta, por favor! Por favor, eu não quero... – Chorava copiosamente. Ela mal podia formular uma frase. – Socorro!!! Alguém me ajuda!

– Poupe a garganta, meu amor. É inútil, ninguém passa por aqui. Vamos lá, me diga seu nome.

A garota não deu ouvidos, começou a se debater e gritar com força. Se mexeu tanto que Jonas pode ver os pulsos começando a ficar arranhados o suficiente para sangrar onde a corda apertava.

– Shh... Vamos fazer assim, você me conta seu nome e eu afrouxo as amarras. Pode ser? Você vai acabar se machucando feio. Me diga seu nome.

– Bre-Brenda. – Ela apenas sussurrou. Não queria dizer seu nome àquele homem, mas viu ali uma possibilidade de fugir. Sabia que provavelmente isso não aconteceria, mas ela precisava tentar, afinal não tinha mais nada a perder.

– Não entendi. – Jonas disse enquanto filmava o rosto da garota.

– Brenda. Meu nome é Brenda.

– Olá, Brenda. – Ele se aproximou dela e cumpriu o que disse, afrouxou o nó de seus braços e também de suas pernas. – Agora, Brenda, por que não me diz sua idade e o que fazia com essa câmera? Você é alguma cineasta por acaso? Alguém que eu deveria conhecer? Eu sou muito curioso, sabe...

– Me solta, as cordas estão machucando. – Ela disse bem baixo.

– Tá bom, mas fale comigo – Ele sorriu, sabia o que estava acontecendo, e iria deixar que acontecesse.

– Te-tenho 19 anos. – Brenda tentava se acalmar para poder efetivar sua fuga – Estudo cinema...

– Que legal. E está fazendo um filme de cachorros? – Jonas continuava filmando sua entrevista e filmou enquanto se inclinava para desamarrar a moça, primeiro as mãos – Talvez um filme sobre vira-latas, cães abandonados... – Desceu as mãos para desamar as pernas, mas antes deu uma leve apalpada nas coxas magras da jovem.

Brenda precisava sair de lá. Mal ouvia o que o sujeito falava, alguma coisa sobre cachorros? Sim, agora estava lembrando. Ela estava filmando um cachorro andando pelas ruas da cidade. Mas e depois? Não se lembrava de nada além de ter acordado no carro desse estranho. Ela sentiu as mãos dele em sua coxa. Um frio na barriga.

– E-estou fazendo um filme sobre as cidades e... – ela não continuou a frase.

As pernas de Brenda estavam livres, ela se pôs a correr, suas pernas bambearam, ela se sentiu um pouco tonta. Mas continuou a correr. Chorava e gritava enquanto corria. Nunca fora atlética - na escola, odiava educação física e o professor a chamava de molenga – mas já estava perto da saída e uma pequena pontada de esperança começou a florescer. Pensou que fosse uma daquelas situações que passam na televisão de reações extraordinárias em condições extremas, mães que podiam parar carros, pessoas enfrentando animais selvagens para se salvar, Brenda correndo como uma maratonista para fugir de seu sequestrador – o professor de educação física estaria orgulhoso.

Ela finalmente chegou na saída. Porém, estava trancada. Mas é claro que estava trancada. Como ela pode ser tão ingênua? Desesperada, Brenda começou a chutar a porta. Quando Jonas a alcançou, não quis mais ser o Sr. Bonzinho, era quase meia noite. Ele chutou a pernas dela e ela foi ao chão. O soco que ele deu em seu rosto a fez perder a consciência por alguns instantes.

*****

Quando Brenda despertou novamente, estava amarrada à mesa com os braços e pernas esticados. Faltavam dez minutos para meia noite de acordo com o relógio de Jonas.

– Você não quis fazer do jeito fácil, Brenda. – a câmera ainda estava apontada para ela enquanto Jonas falava. – Tudo bem, eu respeito isso. Se quer saber a verdade, eu até gosto mais assim. Deixe-me dizer uma coisa, minha princesa. Você queria um filme? Pois bem, seu filme vai ser sobre prazer, mas vai ser sobre dor também. Se quiser um spoiler, seu filme vai ser sobre você nessa mesa rodeada de mais de dez homens. Seus gritos de dor serão cinematográficos, te renderão prêmios ilustres. O custo será mínimo, o sangue será real, os artistas não receberão cachê e os efeitos especiais serão dispensáveis. – Ele caminhava em volta da mesa enquanto falava seu discurso perverso e parou entre as pernas de Brenda para sua fala final, deu um close no vestido ligeiramente levantado com uma pequena parte da calcinha aparecendo – Esta noite você será nossa estrela, meu bem.

Jonas ouviu buzinas de carros do lado de fora do galpão. Chegara a hora...