Espelhos

-Filha, tenho algo para te dizer, e já faz algum tempo que isso está entalado na minha garganta.

-O que é, mãe?

-Eu acho que o seu pai é um lobo.

Foi o que a mãe disse. A filha ficou um tempo olhando para a mãe, sem entender aquilo direito e esperando uma explicação. Sabia que era brincadeira da mãe, mas queria saber o motivo dela.

A mãe nada falou. Estava esperando uma reação da filha, os olhos cheios de medo pareciam tempestades distantes que se aproximavam.

-Quê?- disse a filha, finalmente.

-Seu pai. Você ouviu. Não me faça repetir isso, tenho medo só em ter que falar isso.

A filha não sabia como reagir. Então, decidiu alimentar a brincadeira para ver se, assim, chegaria a alguma resposta.

-Ok. Então quer dizer que ele é um lobisomem?

-Não. Droga. Você não ouve? Ele é um lobo. Se há algo de homem nele, já se foi há muito tempo. Talvez nunca tenha existido.

-Certo... E o que faz a senhora pensar nisso?

A mãe pegou uma caixa de sapato velha e preta que estava embaixo da sua cama. A casa era pequena, não tinha melhores esconderijos. Ou a mãe não era lá muito boa em esconder coisas.

Abriu a caixa. Dentro dela a mãe revelou recortes de jornais que vinha guardando há algum tempo. Mostrou para a filha.

A filha viu que todos eles mostravam pessoas brutalmente assassinadas, corpos partidos e ensanguentados.

-Isso não aconteceu muito longe daqui.- disse a mãe, com voz preocupada. - Aconteceu bem perto de onde seu pai trabalha.

-Isso não responde minha pergunta.

-Foi o seu pai que fez isso. Eu sei. E mais: ele sempre chega em casa lendo uma revista ou algum livro, já faz um tempo. Quem faz isso? É claro que ele está tentando esconder a sua mandíbula ensanguentada pondo um livro na cara. E também está tentando esconder seus olhos de lobo. Eu os vi. Do meu lado. Na cama. Olhos de lobo.

Sua voz estava tremendo. Ela estava tremendo. Seus olhos estavam perdidos em algum pesadelo o qual a filha não conseguiria imaginar.

A filha já não estava mais achando graça. Estava chateada. Não fazia o mínimo sentido. Se não era brincadeira, então a mãe estava ficando louca.

Era possível ficar louca de repente? Por que essa série de assassinatos não poderia estar sendo feita por um maníaco qualquer? Por que ela estava culpando o pai? E, acima de tudo, o que a mãe queria dizer com toda aquela história de lobo?

-Mãe, eu sei que está chateada com o papai desde que você suspeitou de traição. Mas já vimos que não era verdade. Não há motivo para estar brava com ele, muito menos para inventar fantasias para culpá-lo. Então, por favor, me explique...

-Pois é, ele não me traiu. Aquelas marcas vermelhas em seu colarinho não eram manchas de batom. Eram sangue.

-Mãe...

-Ele está me farejando. Agora. Eu posso sentir. Os lobos farejam de muito longe.

-Mãe, para com isso agora!!!

A mãe olhou para a filha com olhos mortos. Estremeceu como a última folha seca de outono que luta para não cair da árvore.

Arregalou os olhos.

-Filha, corre!!!!

* * *

Claro que foi doloroso. Aquele som perseguiria a filha por toda a sua vida e, por que não, após a sua morte também.

O som de punhos cerrados batendo contra um pequeno quadrado de vidro

numa porta grossa de ferro. O som contínuo de um longo choro que faria os cabelos dos mortos se arrepiarem . O som dos fortes gritos que rasgavam a existência, pouco antes de serem abafados pela espessa porta. Mas porta nenhuma poderia conter gritos como aqueles, gritos que pareciam se materializar para fora da boca da mãe e perseguir a filha como se fossem aranhas gigantes.

A filha olhou uma última vez nos olhos possuídos da mãe através do pequeno quadrado de vidro na porta de ferro. A mão do seu pai tocou seu ombro.

-Não podemos fazer mais nada filha. Vamos.-Disse. Sua voz estava um pouco trêmula, foi o que ela percebeu.

A filha chorava muito.

Os dois saíram do hospício, os homens de branco perseguindo-os com seus olhares fantasmagóricos por trás dos óculos redondos, óculos que estavam tão brancos pelo reflexo das luzes do hospício que a filha não conseguia ver seus olhos.

Gritos da mãe para além da porta de ferro.

* * *

Passaram-se dois ou três dias. Ou um mês.

A filha ouvia os gritos da mãe.

Ela estava sozinha em casa. Nunca mais havia ficado sozinha, desde que sua mãe perdera o emprego. Ela estava sempre em casa.

Não estava mais.

Agora a filha lembrava dos tempos em que ficava sozinha quando era criança.

Naquela época, os monstros que moravam dentro do espelho batiam levemente suas unhas contra a superfície de vidro. E chamavam seu nome, bem próximos do espelho, e ao fazerem isso ele ficava embaçado, e a filha não conseguia ver mais nada refletido. Então ela se virava, e às suas costas via...

Nada.

Quando ela limpava o vidro embaçado com a mão, lá estava o monstro, também limpando, do outro lado.

Mas ela sempre encontrava conforto com seu grande cão de estimação, que nunca a abandonava. Sempre que passava por isso, o procurava para abraçá-lo com toda a força.

Ela riria disso se não estivesse tão triste pela mãe.

Era realmente muito interessante deixar de acreditar em algo em que sempre acreditara; algo está lá, sempre esteve, você pode quase tocá-lo, e de repente percebe que tudo era falso. Não acredita mais naquilo. Isso sempre divertia a filha de algum modo. De qualquer maneira, sempre havia a oportunidade de cobrir os espelhos da casa com os lençóis da mãe, que no momento não precisava mais deles. Mas a filha nunca pensou nisso quando era criança.

O pai chega em casa.

-Olá querida.

A filha acenou com a cabeça, sem falar nada.

O pai não estava com um livro cobrindo o rosto dessa vez, como a mãe observara, mas a filha, ainda assim, não conseguia ver os seus olhos.

Ele estava usando óculos escuros.

"Deve estar escondendo as lágrimas.", pensou a filha.

-Querida, eu vou direto dormir hoje. Dia cansativo. E só de pensar na sua mãe, eu...

Ele parou. A filha ouviu um "boa noite" quase inaudível, e acompanhou com os olhos o andar do pai, que arrastava sua tristeza pelo chão como um fantasma arrasta suas correntes. Foi o que ela viu.

"Não", pensou, "ele não parece um lobo."

De repente a filha ouviu um som de vidro quebrando. E vinha do quarto dos pais.

Ela se levantou como um raio, e foi até lá mais rápido ainda.

A porta estava aberta. Ao lado da cama de casal havia o velho espelho de sua mãe, que agora estava quebrado. Os fragmentos se espalhavam pelo chão, e ela via seu reflexo em pedaços.

O pai havia sumido.

* * *

-... e de repente ele havia sumido.- disse a filha à sua mãe.

Ela a estava visitando no hospício depois de passar dias procurando pelo pai. Espalhara avisos de "Sumido" pela internet e pelas ruas. Avisara à polícia, mas nada.

-É bem melhor assim, filha. É bem... melhor. Mas tome cuidado ao... voltar para casa, ele ainda pode estar por aí comendo... pessoas.-Disse a mãe, com uma fala bem lenta. Talvez fosse efeito dos remédios.

"Pobre mãe", pensou ela, "Ela não tem culpa. Ela deve ter sofrido tanto aqui..."

Ela olhava para a mãe. Os seus olhos eram vazios e fundos, como duas lagoas calmas na noite. Sem expressão. E ela estava mais magra.

Para a filha, era como encarar um abismo.

Um pai sumido misteriosamente e uma mãe louca internada no hospício. A filha parou para avaliar a situação. Sua mãe ainda estava ali. Louca, mas estava. Seu pai não estava mais. E chegava a questionar sua própria presença ali, pois se sentia tão fora de qualquer normalidade que pensava não ser mais do que uma sombra. Era muito para ela aguentar.

Mas ela não podia pensar em si mesma. Deveria ser forte para tentar recuperar pelo menos sua mãe.

Então a filha lembrou-se de algo.

-Mamãe... Quando eu estava falando com os policiais, não pude deixar de lembrar dos assassinatos nos recortes de jornais que você me mostrou. Perguntei a eles sobre o assunto, pois estava com medo de que o papai tivesse sido pego por algum maníaco. Mas eles me disseram que... Não houve assassinato algum. Nenhum jornal está falando sobre isso. Os recortes eram falsos, né?

-Ah, minha filhinha lindinha espertinha... eram. Mas eu queria... de alguma forma... mostrar pra você que eu estava... estou... certa. Pois ninguém mais acreditaria em... mim. Por isso menti pra você sobre... os recortes. Achei que você... minha única filha... acreditaria. E poderíamos fugir... juntas. Para longe daquela casa... você nunca gostou dela mesmo... sempre reclamou do... excesso de... espelhos. E assim estaríamos livres do... lobo.

-O papai não é um lobo, mãe. Você pode notar isso se parar para pensar um momento: se ele fosse mesmo um lobo, não acha que ele já teria nos matado?

A mãe ficou um tempo parada olhando o nada. A filha foi paciente. Sentia a luta da mãe para extrair palavras da cabeça como pedras preciosas da rocha.

-Ele não nos... matou... AINDA. Ele nunca... me machucou. Ele só ficava lá, do meu lado... na... cama. Respirando forte como... um animal. Nunca tive coragem de... me virar e... olhar. Mas quando eu olhava para o... espelho... agora quebrado... que ficava do meu lado da cama... eu via. Atrás de mim. Preto. Olhos... amarelos. Ele só olhava. Aqueles... olhos.

A mãe começou a gritar.

-AQUELES OLHOS DELE! OH DEUS, AQUELES OLHOS!

Um homem de branco, que estivera ali o tempo todo, mas a filha não o havia notado, correu em direção à mãe para dar-lhe uma injeção.

A mãe foi parando aos poucos de gritar. E dormiu.

-Acho que a visita deve acabar por aqui, moça.-Disse o homem.

* * *

A filha não sabia o que fazer. Não tinha forças nem para chorar. Já chorara demasiadamente. Chegou em casa e lá ficou, no sofá, abraçando os seus joelhos.

Ela mal havia dormido, preocupada com a mãe. Depois que o pai sumira, a ideia de dormir parecia mais uma lenda, não acreditava mais que isso fosse possível, como os monstros no espelho.

A noite já avançava, estendendo suas garras para os últimos raios de sol e os retirando dele, um a um, como fios de cabelo que são arrancados tão dolorosamente.

A filha ouvia o sol gritar de dor. Ouvia o grito da mãe como aranhas gigantes se aproximando para devorá-la.

Os dois eram um grito só.

De repente ela ouviu aquele som tão antigo, o som que certamente a perseguiria por toda a vida e, por que não, após a sua morte também.

Eram as unhas batendo de leve no espelho.

Ela se sentia de novo com seis anos de idade. Totalmente sozinha. Sentia novamente a necessidade de abraçar seu grande cachorro preto de estimação, pois aquilo sempre a acalmava. Então ela correu para procurá-lo.

Ela ouvia seu nome sendo murmurado por trás dos espelhos.

Os espelhos da casa estavam todos embaçados, e ela não os limparia nunca mais.

Encontrou o cachorro no quarto do pai, e o abraçou como se sua vida dependesse disso, enfiando seu rosto molhado nos pelos negros e macios dele.

Foi quando ela lembrou que não tinha mais cachorro há muito tempo.

O último som que ouviu foi o de todos os espelhos da casa se quebrando.

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 08/11/2016
Reeditado em 08/11/2016
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