O cio da criatura
Quarta-feira, seis de novembro. No meio da tarde o sol de verão juntou-se ao vento de uma tempestade vindo da direção sul e transformou Juncará, pequenina cidade do norte paranaense, numa massa de densa poeira cintilante. Na rua principal do povoado, a única com asfalto, os comerciantes trataram de recolher com urgência os vestuários expostos à porta das lojas, os bares encheram-se de homens comentando o fenômeno, mulheres refugiaram-se na minúscula igreja católica ou no templo evangélico, cada qual esquecida de suas obrigações, todas apreensivas olhando a atmosfera, rezando, tagarelando medrosamente e com os músculos faciais distendidos de preocupação à lembrança dos lares com filhos sem a protetora asa maternal. À medida que a tempestade se aproximava, o vento fazia-se mais furioso e as nuvens escuras, pesadas, começavam a parir raios e trovões.
Na rodoviária, na verdade um pequeno posto de embarque e desembarque de passageiros raramente com alguma movimentação, o mecânico de automóveis, Bento Noronha, estendeu a mão calosa ao filho Rui Ramiro, de 18 anos, para as despedidas e o viu entrar no ônibus. Mais um jovem que deixava aquela cidadezinha amaldiçoada em busca de alguma oportunidade numa cidade de grande porte – no caso, São Paulo. Tão entusiasmado com a partida, Rui Ramiro havia se esquecido de dar o último beijo de adeus à namoradinha Safira. Abriu a janela do veículo, tocaram as pontas dos dedos. Bento Noronha, como que num impulso ajuntou a mocinha de quinze anos pela cintura e a levantou, possibilitando que o casal se beijasse nas faces. O homem estava suando, não pelo esforço, mas porque a carne rija da garota afetava cada fibra de seu corpo grandalhão e desajeitado. Havia, também, o cheiro. Do corpo de Safira emanava um cheiro inebriante de terra inculta, de flores silvestres intocadas, de filhotes indefesos de animais selvagens – um cheiro de fruta verde. O beijo do casal foi interrompido quando o ônibus começou lentamente a se movimentar, então Bento deixou que o corpo de Safira escorresse para o chão resvalando pelo seu peito peludo abrigando um coração disparado, pela barriga dilatada pela cerveja, deixou que suas mãos rústicas enlaçassem os pequeninos seios ainda em fase de formação, ao mesmo tempo em que cuidou para que ela sentisse as nádegas pequenas e redondas sob a saia xadrez sendo injuriadas por sua masculinidade pulsando dentro das calças. Mesmo após uma aturdida Safira firmar os pés no chão, Bento Noronha não soltou os braços possantes abarcando a cintura fina e trêmula da garotinha tomada pelo terror. E o vento soprava com mais intensidade, e a poeira tingia o mundo de amarelo. Safira lançou olhares desesperados por toda a extensão da rodoviária – não havia nenhum ônibus estacionado, nem passageiro aguardando embarque, a uns quinze metros dali, o homem que vendia passagens fechara a janelinha do cubículo com medo da chuva que começava a rugir pelas cercanias despejando pedras de granizo que, pelo barulho, deviam ser enormes.
– Me solta! – exigiu a adolescente, enfiando suas mãos pequenas entre seu corpo e os braços poderosos, numa tentativa frustrada de libertação. Bento Noronha continuou a segurá-la como se estivesse agarrando um touro à unha, como se fosse uma cobra constritora. De súbito, o homem estremeceu. E Safira sentiu uma umidade quente espraiar ao longo de suas costas – Bento Noronha ejaculava em cima de seu corpo. Safira gritou com todas as forças exprimindo seu asco, terror e indignação, mas seu grito se perdeu nas entranhas da tempestade. Então alguma coisa enorme, escura, surgiu do nada, voando, e ajuntou Bento Noronha pelo pescoço com duas garras brilhantes parecidas com as de uma águia, só que imensas e afiadas como facas de açougueiro. Safira sentiu que os braços do homem se afrouxavam em torno de sua cintura e como que num passe de mágica viu-se livre da respiração nauseabunda em seu pescoço – e o sangue quente e enjoativo sendo expelido pela veia jugular estraçalhada de Bento Noronha banhou sua cabeça e a blusinha de cambraia azul e continuou fazendo um rastro espiralado no meio da densa poeira enquanto o corpo maciço do mecânico se elevava firmemente seguro pelas garras da criatura inacreditável. Pasma, Safira ficou olhando o incrível monstro alado ir se perdendo na amplidão do céu parcialmente tomado pela fúria das intempéries. E a chuva chegou finalmente à rodoviária. O granizo tinha ficado pelos campos, massacrando as plantações de cereais, mas a chuva era abundante, impetuosa, concentrada. E lavou o corpo de Safira do sangue de Bento Noronha no tempo em que ela corria pelas ruas lamacentas de uma Juncará imersa no dilúvio.
Safira vagueou sob a chuva torrencial por muito tempo, cruzou a pequenina cidade de ponta a ponta várias vezes sem se concentrar em nada de relevante, apenas ouvia o som cavo de seus pés pisando o barro e sentia a lama viscosamente gelada entrando pela lona do par de tênis ordinário. Os cabelos que lhe davam nos ombros grudavam-se no couro cabeludo, acumulavam a chuva e faziam de suas costas um regato de águas turbulentas. Parecia estar em transe e, se houvesse outra pessoa se aventurando no meio do aguaceiro que porventura a encarasse, ficaria perplexo com o sorriso quase imperceptível marcando seus lábios finos e descorados. Mais que transe, a expressão facial de Safira revelava êxtase. É que, somente agora, aos 15 anos, o corpo de Safira amadurecia. Escorria quente por entre as suas pernas o sangue menstrual. Nunca entendera porque suas colegas de colégio haviam chegado à menarca aos doze, treze anos – mesmo aos dez anos, como relatava com orgulho besta a menina Claudete – enquanto ela permanecia incólume. E lá no fundo, bem no íntimo, sabia o momento preciso de sua transformação de menina para mulher: fora no exato momento em que constatou a existência real da criatura que a visitava em sonhos desde a infância.
Aos poucos a chuva foi se amainando e a atmosfera carregada de umidade começou a ser dardejada por cintilantes partículas de raios solares. Só então Safira percebeu que sua pele estava eriçada de tanto frio, que o vento que continuava a soprar parecia perfurar suas carnes e alojar-se nos ossos. Cruzou os braços sobre os seios incipientes e tomou a direção de sua residência, um predinho de dois andares no fim da rua Cel. Cintra. Caminhou lentamente, sem vontade de enfrentar a mãe, loura platinada que mantinha um salão de beleza no andar térreo. Torceu para que o salão estivesse vazio, a mãe no andar superior aos amassos com o amante, um caminhoneiro ruivo, grande e forte, sempre de barba por fazer. Não deu sorte. Margot estava sentada numa das poltronas do salão mantendo animada palestras com três outras mulheres, clientes habituais, profissionais no bordel da cafetina Lucrécia. Duas delas acomodavam-se no sofá, a terceira passava batom nos lábios em frente a um dos espelhos. Parada de costas para as duas portas de entrada, envidraçadas e largas, Safira ficou olhando as mulheres transida de constrangimento – elas fitavam especulativamente para as suas pernas banhadas de sangue menstrual. Depois se entreolharam. Todas conheciam os segredos de Safira, graças à boca grande da mãe.
– Margot do céu, até que enfim sua filha tá de paquete! – exclamou uma das prostitutas, dirigindo-se à mãe.
A mãe, paralisada, não conseguia tirar os olhos das pernas ensanguentadas da filha. Compreendia, perplexa, que o dia da partida de Safira havia finalmente chegado. A criatura, figura sinistra dos seus mais terríveis pesadelos, muito em breve estaria chegando para resgatar a noiva-adolescente. Sim, dia fatídico, temido, inexorável, de perder sua filhinha anunciava-se naquele fluxo menstrual. Preparara-se para o momento desde sempre, mas no mais recôndito da alma tinha esperança de que Safira permanecesse impúbere. Agora, todos os resquícios de ilusão se perdiam.
– Uma salva de palmas para a Safira! – ordenou a mesma prostituta. E começaram a ovacionar.
Antes que Safira saísse do aturdimento, a mulher ao espelho colocou a tampa na ponta do batom e guardou o cartucho na bolsa de couro sobre a penteadeira – ao retirar a mão trazia uma embalagem de Modess.
– Toma! – bradou, jogando o pacotinho em sua direção. Safira, mais por reflexo, pegou a embalagem no ar. Em seguida, morta de vergonha, correu para a escada lateral e galgando os degraus de dois em dois foi para a moradia no andar superior.
Taturana, o amante de Margot, de bermuda e camiseta sem mangas, estava na sala sentado no sofá no sentido do comprimento, tinha um pé em cima do assento e, com um grande canivete recurvo, desbastava a unha do dedão do pé, a língua estirada no canto da boca acompanhando o movimento da lâmina, uma mecha de cabelo vermelho, oleosa e suja, caindo sobre um dos olhos verdes. Se havia percebido a entrada de Safira, ignorou-a com sabedoria – tinha medo daquela menina esquisita desde o dia em fora espioná-la pelo buraco da fechadura tomando banho. O que viu, a três palmos do orifício, foi um grande olho amarelo com um risco negro cortando-o verticalmente, um olho como o de uma cobra venenosa. Um olho do tamanho de um pires. Um olho hipnótico, gélido, destilando tanta maldade demoníaca que sentiu os músculos dos braços e pernas se retesarem, a pele do corpo inteiro se eriçar e um zumbido perfurante entrar pelos ouvidos como se fosse estilete. Tombou no chão comprimindo as orelhas, boca arreganhada de dor – e impelido pelo terror conseguiu se arrastar pelo chão como um réptil até a sala, distendeu-se no sofá e tentou controlar o coração explodindo no peito com ímpetos de um baterista de banda de rock. Então se lembrou que dera boas risadas quando Margot, vendo seus olhos cobiçosos sempre pousados no corpo mirrado da filha a circular pela casa, alertara-o de que tomasse cuidado, Safira tinha parte com o demo. Assim aconteceu: desde que fitou o olho amarelo amaldiçoado, nunca mais conseguiu encarar a menina estrambótica.
Safira passou pelo Taturana e foi direto para o banheiro, colocou a embalagem do Modess sobre a pia, tirou a roupa e entrou debaixo do chuveiro de águas tépidas. Naquele exato momento Safira não se concentrava em nada, apenas sentia a água quente rolando pelo corpo, tinha consciência fugaz das próprias mãos esfregando energicamente o corpo adolescente e transbordava de emoção pela certeza, absoluta, de que em breve, talvez naquele mesmo dia, estaria finalmente sendo lançada no turbilhão de seu destino inexorável. Friccionou energicamente o sabonete entre as pernas, como se desejasse atingir a pureza perfeita; esfregou os seios incipientes com tanta energia que estes ficaram avermelhados; ensaboou os cabelos abundantemente, enxaguou-os com meticulosa delicadeza – ficou mais de meia hora com o chuveiro ligado recebendo a torrente de água tépida, depois se enrolou na grande toalha branca e felpuda, calçou o par de sandálias e foi para o seu quarto. Não se lembrou do absorvente sobre a pia.
A primeira coisa que viu, após chavear a porta, foi a grande flor azul colocada na penteadeira, entre os produtos de beleza. Era uma campânula silvestre, o androceu – composto de muitos filetes siamescamente unidos –, grosso, vermelho e longo avançava muito além das bordas das pétalas e sua extremidade recoberta de penugem porejava um líquido espesso de cor leitosa. Safira foi à penteadeira, pegou a flor, cheirou-a – o odor se assemelhava ao que fluía dos corpos da mãe e do amante quando estes se esqueciam do banho logo após a cópula. Num repente imponderado levou o androceu à boca e passou a língua por toda a sua extensão. O líquido a recobri-lo tinha consistência pastosa, era muito doce, mais doce que melaço, cem vezes mais doce que mel. Safira chupou o conjunto de estames com uma voracidade inaudita, mantinha os olhos fechados enquanto suas pernas se abriam espasmodicamente e do vértice de suas coxas escorria um caldo fervente misturado ao sangue menstrual – Safira estava tendo o mais fabuloso dos orgasmos jamais concebido a um ser humano. Sentada e imóvel no tamborete da penteadeira, Safira permaneceu de olhos fechados, os braços descaídos ao longo do corpo e as mãos contraídas até que desapareceu o último resquício do prazer avassalador. Então vestiu uma calcinha sem se importar com o fluxo menstrual, colocou uma calça comprida, uma par de botinhas de cano curto, uma blusa branca de algodão e saiu do quarto, passou pelo amante da mãe a dormir com a boca aberta, desceu a escada, passou pela mãe sentada no sofá do salão de beleza a fitar com olhos vazios algum ponto perdido na parede branca, e ganhou a rua. A chuva recomeçou a cair com intensidade, raios cortavam as nuvens pesadas, trovões roncavam furiosos. Safira foi caminhando pela rua enlameada como se fosse um ser destituído de vontade, um zumbi. Deixou os limites da cidade, percorreu uma estradinha vicinal alagada pisando em ervas daninhas submersas nas águas pluviais, escorregando sem perder o equilíbrio em pedras escondidas – caminhava sem nada sentir. Caminhou muito. Horas. Por fim, parou numa encruzilhada e ficou olhando para um imenso jequitibá com mais de quarenta e cinco metros de altura e tronco medindo quase dois metros de espessura. E viu: ali, junto ao tronco do jequitibá, a criatura. A criatura abriu as asas semelhantes às dos morcegos e nelas Safira foi se aconchegar. Nesse preciso instante, lá no salão de beleza, Margot, mãe de Safira, saiu do seu estado letárgico e, cheia de terror, começou a gritar alucinadamente. E a chuva continuava a cair, furiosamente, em meio aos raios e trovões.