Halloween Tropical
Ana Esther
Eu sou uma abóbora. Vou contar para vocês a horrenda saga dos meus ancestrais... isto é, se eu estiver viva para chegar até o final da história. Eu sinto que estou morrendo e se nenhuma alma bondosa vier me salvar, será realmente o fim de tudo. Comigo desaparecerá da face da Terra uma linhagem de mais de dois mil anos de uma família de Abóboras Druidas.
Tudo começou num vilarejo celta na costa oeste da Inglaterra pouco antes do início da Era Cristã.Ethur, Senhor da Caverna Sagrada, um temido Druida, matou um bode para oferecer às divindades como sacrifício como costumava fazer há muitos anos. Contudo, desta vez algo bizarro aconteceu que o estarreceu. O bode agonizante expeliu pela boca algumas sementes de abóbora grudadas feito uma bola gosmenta. O sacerdote sábio tomou aquilo como sendo um sinal enviado por algum espírito de outro mundo desejoso de se comunicar com ele. Certificou-se de que não havia ninguém por ali para ver o que ele faria e, mais do que rapidamente, escondeu aquele achado obscuro.
Ethur valorizava muito as sementes sobrenaturais e manteve-as para si próprio, muito bem escondidas, até que decidiu que já era tempo que ele mesmo as plantasse perto da Caverna Sagrada. No devido tempo, as sementes enviadas pelos espíritos produziram abóboras alaranjadas enormes. Quando elas ficaram maduras, Ethur realizou uns rituais druidas secretos para abençoar os Vegetais Sagrados e depois colheu um deles com avidez. Neste mesmo instante, ele sentiu o sangue esquentar em suas veias, as batidas do coração pulsaram erraticamente em seu peito. Quando ele finalmente conseguiu levar a enorme abóbora até sua casa, fechou-se o melhor que pôde lá dentro. Não poderia haver nenhum risco que ameaçasse aquela façanha prodigiosa.
Em suas pesquisas secretas de poções e até oschamamentospela Grande Deusa da Colheita, Ethur deu o melhor de si para descobrir o mistério por trás daquelas Sementes Sagradas. Agora, sentia-se pronto para invocar os espíritos deles e soltar a sua essência profética...
Para sua maior surpresa, a Abóbora Sagrada falou, ou melhor, ela começou a fazer diversas previsões sobre o futuro que se tornaram extremamente precisas deixando o temido Druida abobado. Com o tempo, ele eventualmente dominou uma forma de extrair profecias úteis da Sagrada Abóbora para sua vantagemprópria. O poder e a influência da liderança do Ethur entre os aldeões superaram as suas mais profundas expectativas e a simples menção do seu nome causava grande reverência por toda a região.
Entretanto, inevitavelmente, Ethur ficou tão velho a ponto de sequer dar bola para as mensagens proféticasda Abóbora Sagrada. Em seu leito de morte, Ethur escolheu a sua mais chegada sacerdotisa druida Morganta, Senhora dos Cristais de Rocha Sagrados, para ser a nova guardiã da Abóbora Sagrada.Assim, o revezamento de tal segredo tornou-se uma tradição entre as sucessivas gerações de sacerdotes e sacerdotisas celtas do local pelos próximos séculos. A longevidade da Abóbora Sagrada permaneceu um mistério que nenhum druida jamais alegou haver decifrado.
Nenhum fato significativo marcou a existência incomum da Abóbora Sagrada através de séculos e suas propriedades mágicas garantirama vários dos seus guardiões bastante opulência. Nada parecia estorvar seus caminhos pela vida... até que a grande marcha dos acontecimentos veio a afetar dramaticamente o curso da história. Lá pela primeira metade do século XVII um revés inesperado mudaria a vida da Abóbora Sagrada para sempre. A sua atual guardiã fora acusada de ser uma bruxa e sentenciada a ser queimada numa fogueira.
Ironicamente, sob tortura, essa guardiã revelou o antigo segredo para o seu torturador, um respeitável líder puritano. Este homem, por sua vez, acabou sendo ele próprio perseguido pela Coroa Britânica por suas rígidas crenças religiosas. As coisas chegaram a tal ponto que ele foi forçado a juntar-se aos navios lotados de colonizadores que recorriam à Massachusetts BayCompany para fugirem para o Novo Mundo para lá se tornarem peregrinos.
Foi assim que a Abóbora Sagrada e o seu guardião puritano começaram vida nova em algum lugar da Nova Inglaterra. Novamente, após os problemas iniciais de acomodação, a Abóbora Sagrada retomou a sua natureza como adivinha. Em diversas ocasiões ela escapou por pouco de ter seus guardiões queimados por bruxaria. O tempo ia passando e a vida parecia ficar cada vez mais barata e mais fácil com o passar dos séculos. Atualmente, o recém-escolhido guardião da Abóbora Sagrada foi o Arthur King, o vocalista de uma banda de rock decadente de Nova Iorque, os PsychicsofHappyDoomsday. O jovem cantor aprendeu rapidamente a arte de falar com a Abóbora Sagrada com a sua mãe mística que morreu logo após haver-lhe revelado o segredo antigo. Todavia, as espantosas previsões sobre o futuro que ele recebia da Abóbora Sagrada seriam atribuídasmais ao montão de maconha na sua mente do que a sua inseparável Abóbora de Estimação. O fato é que ele nem nunca considerou a possibilidade de ganhar dinheiro com aquelas previsões.
Acredite se quiser, essa banda decadente fazia muito sucesso no longínquo Brasil. O seu crescente número de fãs brasileiros os pressionava para irem ao Brasil fazer alguns shows. Sem ter nada a perder, pelo contrário, tendo essa turnêestranha como uma oportunidade dos deuses para liquidar suas crescentes dívidas, eles assinaram o contrato.
Foi aí que os meus tormentos começaram. É óbvio que ele não viajaria sem mim. O Arthur botou a culpa toda nas superstições de Superstar e me incluiu, a sua Abóbora de Estimação, na lista de passageiros. Logo que colocamos o pé no Brasil, eu percebi que corria um grande perigo e contei ao meu guardião. Ele quase nem prestou atenção aos meus avisos, pois estava por demais ocupado em procurar um traficante de drogas confiável. Como nunca fora um estudante brilhante, ele não fazia a menor ideia de onde havia desembarcado. Pensava que estivesse no Rio de Janeiro, que era a única cidade brasileira de que ele já tinha ouvido falar. Acontece que os shows seriam no Estado do Amazonas no norte do país... em plena selva Amazônica!
Foi numa lúgubre noite de sexta-feira, 31 de outubro, que eu me deparei com a minha travessura de Halloweenmais medonha. Devido a sua dificuldade de estabelecer uma boa conversa com os habitantes locais ele foi acabar numa tribo de índios brasileiros. Lá, ele foi recepcionado como um turista, mas os índios confundiram a sua ânsia por drogas achando que ele desejava ter uma experiência de pajelança, um ritual que no final das contas tem a ver com algo parecido com feitiçaria sobrenatural. O Pajé, o invocador, nos levou para o centro de sua oca onde havia um caldeirão num fogo de chão. O Pajé, todo afetado pela presença de algum espirito da floresta, começou a acrescentar toda sorte de ervas à água fervente. Ao lado do caldeirão havia uma cama de madeira onde Arthur deitou-se como fora instruído pelos índios.
Até então, eu havia permanecido em paz dentro da mochila do Arthur, mas logo que eles perceberam que ele havia caído num sono profundo, o Pajé apressou-se para me retirar da mochila. Quando ele me agarrou, sentiu um estremecimento momentâneo. Segurou-me em suas mãos envelhecidas e me fitou embasbacado. Eu tentei me comunicar com ele através das minhas habilidades telepáticas, porém todos os meus esforços foram em vão. Embora eu sentisse que o cara podia pressentir os meus poderes, ele desistiu de mim muito cedo e, para o meu total desespero, simplesmente me atirou no caldeirão o que pode resultar na minha morte precoce.
Neste ponto da minha narrativa, vocês me encontrarão ainda dentro do caldeirão esperando por um resgate sobrenatural! A temperatura aumenta a cada minuto, estou febril e quase desmaiando. Entretanto, o que estou pressentindo? Oh, sim, posso pressentir a chegada de fadas e elfos, sim, por favor, acudam-me!!! Que sortuda eu sou, eles tiveram permissão para aparecer para os índios devido ao pacto sagrado de Halloween com o mundo dosobrenatural. Estupefatos, os índios só olhavam a cena como se petrificados. As fadas e os elfos me retiraram do caldeirão sã e salva.
Como uma forma de compensação aos índios bondosos, e com o meu consentimento sincero, a Rainha das Fadas fez um ritual de revelação das minhas propriedades mágicas para o Pajé. De agora em diante, eu viverei na selva Amazônica com o meu novo guardião e finalmente serei venerada como uma entidade espiritual! Não, nada de mal aconteceu ao Arthur King, com exceção de que ele nunca mais se lembrará de mim. Pena, eu até que gostava dele.
Oh, que Halloween inesquecível para mim. Os espíritos da floresta, ao me salvarem de uma morte terrível, também evitaram que eu revelasse para vocês o meu mais valioso segredo: a minha longevidade. E toda a história jamais contada sobre a antiga linhagem dos meus parentes de Abóboras Druidas. Não, não me forcem, eu não vou contar... Bem, talvez numa outra noite de Halloween!
Agora o texto em inglês...
Halloween at the Tropics
Ana Esther
I’m a pumpkin. I’m about to tell you the horrendous saga of my ancestors… that is, if I’m still alive to reach the end of the story. I feel I’m dying and in case no good soul comes to rescue me, it will be definitely the end of it all. With me will vanish from this world a more than two-thousand-year-old lineage of my Druid Pumpkin family.
It all began at a very small Celtic village by the western shores of Britain just before the coming of the Christian Era. Ethur, Lord of the Holy Cave, a fearful Druid, killed a goat to offer the deities as a sacrifice as he was used to doing for many years. However, this time something bizarre happened that overwhelmed him. The dying goat expelled through its mouth some pumpkin seeds glued into a kind of a slimy ball. The wise priest took it as a token sent by some otherworldly spirit willing to communicate with him. He made sure no one was around to see his next move and more than swiftly hid such obscure finding.
Ethur treasured the supernatural seeds and kept them to himself, very well hidden until he decided it was high time he himself planted them near to the Holy Cave. In due time the spirit-sent seeds produced huge orange pumpkins. When they were ripe, Ethur performed some secret Druid ritual to bless the Holy Vegetables and then picked one covetously. At this very moment, he felt the blood warm in his veins, his heartbeats pounded erratically in his chest. When he finally managed to take the huge pumpkin home, he shut himself as best as he possibly could. No risk could be allowed that jeopardized this prodigious undertaking.
In his secret researches of potions and even the summoning of the Great Goddess of the Harvest, Ethur tried his best to find out the mystery behind those Holy Seeds. Now, he felt ready to conjure up the spirits from them and unleash their prophetic essence…
To his utter amazement, the Holy Pumpkin spoke, or it rather started to make several predictions about the future which proved extremely accurate leaving the fearful Druid dumbfound. In time, he eventually mastered a form of extracting useful prophecies from the Holy Pumpkin much to his own advantage. Ethur’s power and leadership influence among the villagers exceeded his deeper expectations and the mere mention of his name caused great awe in the whole region.
Inevitably though, Ethur grew too old to even care for the Holy Pumpkin’s prophetic sayings. On his deathbed, Ethur chose his closest Druid priestess Morganta, Lady of the Sacred Pebbles, as the new guardian of the Holy Pumpkin. Thus, the relay of such secret has become tradition among the successive generations of the local Celtic priests and priestesses for centuries to come. The Holy Pumpkin’s longevity remained a mystery that no Druid ever claimed to have deciphered.
No significant fact marked the Holy Pumpkin’s unusual existence throughout centuries and its magic properties have made several of its guardians quite opulent. Nothing seemed to trammel its paths in life… until major developments affected dramatically the course of history. By the first half of the XVIIthC an unexpected turn of fortune would change the Holy Pumpkin’s life forever. Its current guardian had been charged with being a witch and sentenced to be burned in the fire.
Ironically, under torture this guardian had revealed the ancient secret to her torturer, a respectable Puritan leader. This man, on his turn, ended up by being himself persecuted by the Crown for his strict religious beliefs. Things came to the point that he felt forced to join the shiploads of colonists who resorted to the Massachusetts Bay Company to flee to the New World to become pilgrims there.
That’s how the Holy Pumpkin and its Puritan guardian started a new life somewhere in New England. Again, after the initial troubles of settling down, the Holy Pumpkin resumed its nature as a fortune teller. For several times it had close escapes of having its guardians burned for witchcraft. Time went by and life seemed to become cheaper by the dozen and easier by the century. Right now, the Holy Pumpkin’s newly-chosen guardian was Arthur King, the vocalist of a decadent hippy rock band in New York, The Psychics of Happy Doomsday. The young singer quickly learned the arts of speaking to the Holy Pumpkin from his mystic mother who died soon after having revealed him the ancient secret. Nevertheless, the astonishing predictions about the future he would get from the Pumpkin would have rather been credited to the loads of hemp in his mind than to his inseparable Pumpkin Pet. The fact is that he never even considered the possibility of making some money with those predictions.
Believe it or not, this decadent band happened to be a great success in distant Brazil. Its increasing number of Brazilian fans pressed them to go over for some concerts. Having nothing to lose, on the contrary, taking this odd Brazilian tour as a God-sent opportunity to pay off their escalading debts they signed the deal.
That’s when my predicaments started. Of course he would not travel without me. Arthur’s blamed it all on Superstar superstition and included me, his Pumpkin Pet, in the list of passengers. As soon as we set foot in Brazil, I realized I was in great danger and let my guardian know it. He paid little attention to my warnings as he was too busy looking for a trusty drug dealer. As he had never been a brilliant student, he just had not the slightest idea as to where he had landed at all. He supposed he was in Rio, which was about the only Brazilian city he had ever heard of. It happens that the concerts would take place in the State of Amazonas in the very North of the country… in the middle of the Amazon forest!
It was on a dreary Friday night, 31st October, that I met with my most appalling Halloween trick.On account of his difficulty with establishing real conversation with the locals he was led to a native Brazilian Indian’s tribe. There he was welcomed as a tourist but the natives misunderstood his urge for drugs and guessed he was willing to experience a pajelança, a ritual which boils down to the supernatural sorcery type. The Pajé, the conjurer, took us both to the centre of his cottage where there was a cauldron on a ground stove. The Pajé, all shaken-up by the presence of some forest sprite, started adding all sorts of herbs to the boiling water. Beside the cauldron there was a wooden bed where Arthur lied down as he had been directed by the natives.
So far, I had been left alone inside Arthur’s backpack, but as soon as they were sure he fell into a deep sleep, the Pajé dashed to pick me out of the backpack. As he grabbed me, he felt a momentary shudder. He held me in his old hands and stared mesmerized at me. I tried to communicate with him through my telepathic skills but all my efforts were in vain. Although I felt that the man could well sense my powers he gave me up way too soon and to my total despair just threw me into the cauldron which may result in my untimely death.
At this point of my narrative, you will find me still inside the cauldron waiting for some preternatural rescue! Temperature rises each minute, I’m feverish and about to faint. Yet, what am I sensing? Oh, yes, I can sense the coming of forest fairies and elves, yes, please, help me!!! How lucky I am, they were allowed to show up to the natives on account of the sacred Halloween pact with the otherworld. Flabbergasted, the natives just watched the scene, as if stunned. The fairies and elves took me out of the cauldron safe and sound.
As a form of compensation to the good natives, and with my heartfelt agreement, the Fairy Queen performed a ritualistic revelation of my magic properties to the Pajé. From now on, I’m going to live in the Amazon Forest with my new guardian and finally I’ll be worshiped as a sacred spiritual entity! No, nothing bad actually happened to Arthur King, except that he won’t ever remember me. Pity, I kind of liked him.
Oh, what an unforgettable Halloween to me. The forest sprites, by saving me from a horrible death, did also prevent me from revealing to you my own most treasured secret: my longevity. And all the untold story about the ancient lineage of my Druid Pumpkin relatives. No! Don’t push me, I won’t tell you… Well, maybe on another Halloween night!
*Escrevi este texto em inglês para poder participar de um desafio num site americano! (Ana Esther)