Na hora da nossa morte
Por onde vagueia nossa alma no momento da extinção física? Enquanto o padre ministra a extrema-unção, o corpo de João Darbo começa a agitar-se e inunda de suores cáusticos os lençóis do leito de morte. O que estaria acontecendo? Naquele instante João Darbo – inconsciente de ser apenas espírito – caminha por uma estradinha de terra. Às vezes para um momento sob a luz mortiça de algum poste feito de tronco de eucalipto e lança um olhar comprido para as imensidões daquele ermo – distingue tremeluzentes luzinhas de habitações distantes mergulhadas na solidão impenetrável da noite abissal. Bate os pés, um e depois outro, na rua esburacada onde medram aqui e ali tufos de erva-daninha – como se assim fazendo fosse expulsar das pernas aquele peso de chumbo. Como viera parar em tão tenebrosa região? No meio da nebulosidade mental em que se vê somente uma certeza resplandece: tem de continuar andando.
Eis então que, surgindo estranha e silenciosamente do nada, uma moto estaciona junto a si. Uma Sunbean S7 500 cc ano 1951, negra. Como tal relíquia deslizava assim, como cobra, por entre buracos, pedras, terra fofa? Fita o motociclista. Ele veste-se de negro, da bota de cano alto à viseira fumê do capacete. Apesar do insólito de todas as circunstâncias, João Darbo não sente medo – e mesmo a curiosidade que deveria sentir é uma coisa amorfa, sem um determinante específico que possa sacudi-lo daquele cansaço inexplicável, da sensação de vazio: aceita a situação como fato prosaico e consumado. O motorista acelera a magnífica máquina, o barulho rompe o hímen do silêncio noturno. A mão enluvada se solta do guidom e gesticula, chamando-o, de modo brusco e impaciente. Darbo galga a garupa, a moto salta como animal felídeo e começa a correr. Ganha tanta velocidade em segundos que João Darbo tem de enlaçar apertadamente o busto do ser à frente – sentindo nesse contato os contornos macios e vibrantes dos seios. A figura é, pois, do gênero feminino.
O veículo vai rasgando a noite, produzindo um vento feroz e gelado a chicotear-lhe as faces e inundando seus olhos de lágrimas. Respira fundo quando estacionam em frente a uma casa imensa e muito iluminada. A construção em alvenaria possui um alpendre de madeira e é circundada por imenso arvoredo. Não possui uma linha arquitetônica harmoniosa – é toda torta: ali uma ponta parecendo uma torre, acolá um declive abrupto do telhado, mais adiante uma reentrância horizontal como um profundo e imenso funil cuja utilidade lhe é uma incógnita. A porta da frente abre-se e uma velhinha surge – a luz intensa destaca-a entre os batentes como se fosse uma aparição fantasmagórica: usa uma camisola branca manchada de molho de tomate. Numa mão traz um cigarro aceso e na outra um trabalho de agulha. Ajeita os óculos de leitura na ponta do nariz e por cima deles fita os recém-chegados. Suas feições miúdas rejuntam-se num trejeito simiesco, dá uma cusparada para o lado e retorna ao ventre da casa. A porta permanece ofuscantemente escancarada.
Descem da moto. A moça fica ereta, apenas a cabeça inclinada para as mãos ocupadas no retirar das luvas de couro. Em seguida arranca o capacete e uma cachoeira de cabelos de negror luzidio despenca costas abaixo. Sem dar a mínima para Darbo, em passos largos e decididos alcança a porta e desaparece nas entranhas do casarão absurdo. Darbo fica ali, próximo da moto, pateticamente estático, fitando a bocarra iluminada da casa. Começa a sentir frio, um frio estranho, diferente porque emerge das vísceras. Desenrola as mangas da camisa social, abotoando-as aos punhos. Cruza os braços sobre o peito e põe-se a andar de um lado para o outro – o arvoredo uiva no parir das saraivadas de vento. Darbo não tem, em absoluto, a intenção de seguir a garota, mas um desejo devastador cozinha-lhe o raciocínio.
Marcha, por fim, impavidamente, para as luzes esvaindo-se pela porta. Penetra num corredor estreito e sujo – nas laterais veem-se portinholas cerradas protegendo cubículos e destes esguicham grunhidos, suspiros, trepidar de camas, uma ou outra obscenidade, algumas frases ternas, estertores de gozo. Um longo corredor que lembra o prostíbulo em que teve sua primeira relação carnal, há mais de setenta anos. À lembrança do outrora, sente picar-lhe no peito sensações de angústia, medo, vergonha, tudo sobrepujado pela magia do êxtase gozoso. Continua andando, vai desembocar numa sala ampla, muito iluminada e praticamente despojada de móveis – apenas uma mesa ao centro e, junto às paredes, dois sofás, desses bem antigos, em tapeçaria florida e desbotada. Em torno da mesa sentam-se quatro indivíduos. Homens gordos, trajando terno e gravata. Devem estar na faixa dos oitenta ou noventa anos – jogam baralho, fumam e bebem de uma garrafa de Jack Daniel’s. Num dos sofás a velhinha está refestelada, as mãos sardentas de antiguidade movendo-se metodicamente num tricotar pacífico.
Ninguém parece notar a presença de Darbo, plantado à porta de entrada, confuso e infeliz, encarando um a um os rostos dos presentes, um simulacro de sorriso desenxabido nos lábios. Ignorado solenemente, recolhe a desastrada tentativa facial de sociabilidade e, timidamente, vai sentar-se ao lado da anciã, o tronco ereto, os pés sobrepostos, as mãos enfiadas entre as coxas. Então um dos jogadores, estremunhando, lança as cartas sobre a mesa, levanta-se e sai, sem despedir-se. Subitamente Darbo vê-se alvo de todos os olhares.
– Tem dinheiro? – um dos homens pergunta, sorrindo-lhe. Darbo apalpa mecanicamente o bolso da calça, sentindo a carteira. Havia, lembra-se, recebido a aposentadoria naquela manhã. Além de pouco, o dinheiro está comprometido até nos centavos: um pouco para os remédios de uso contínuo da esposa, outro tanto para a comida, pagamentos de água, luz, telefone e a merrequinha final para o único litro de vinho mensal. Um vinho ordinário, zurrapa, que lhe provoca terríveis dores de cabeça, uma azia monumental. E – merda! – bebido às escondidas como se fosse um néctar dos deuses proibido a um ser miserável como ele, protozoário chafurdando na vida sem nexo. Os homens, fitando-o, esperam uma resposta.
– Não caia na tentação! – diz-lhe a velhinha, a voz guinchada, irritante. Essa voz! Darbo olha-a em sua camisola suja de molho de tomate, os óculos na ponta do nariz, os olhos severos. Tem um sobressalto. Porra, é Matilde, sua esposa! Toca novamente o bolso da calça, sentindo a carteira. Há quanto tempo não joga casando dinheiro? Não precisa forçar muito a memória para captar a brutal extensão do tempo passado. Fita gulosamente o maço de Aspásia sobre a mesa: parara de fumar há mais de vinte anos, movido apenas pelas dificuldades financeiras que impediam a sustentação de vício tão prazeroso, mas nunca esqueceu do primeiro cigarro que colocou na boca, um da marca Aspásia. Morde os lábios na agonia do desejo ao fixar-se na garrafa de uísque.
– Não vá! – ordena a velha, pousando o trabalho de tricô no regaço e encarando-o com olhos cintilantes de maldade. Darbo salta do sofá e vai reunir-se aos homens à mesa. Tira da carteira exatamente a quantia reservada aos remédios de Matilde – separa as notas com raiva vitoriosa: liberta-se dos grilhões que o escraviza à esposa, assombroso traste inútil. Com deleite casa as apostas. E começa a ganhar. A cada partida vencida encara a velhinha, cheio de arrogância. Em pouco triplica o salário da aposentadoria. Senhor de si, poderoso como um banqueiro do jogo do bicho, alcança um cigarro no maço – presto, um dos homens acende-o, em atitude subserviente. Serve-se da bebida, uma grande, generosa dose, que emborca de virada. Servem-lhe outro trago – Darbo agradece a gentileza com uma ponta de menosprezo. Continua a ganhar. Reclama do silêncio – nos bordéis onde em eras remotas costumava jogar, sempre havia música. Geralmente boleros. Então começa a minar de lugares recônditos um bolero antigo, do seu tempo de rapazola. Deseja a presença de jovens mulheres e, como que atendendo à sua vontade, surge-lhe ao lado a garota da motocicleta, ainda vestindo-se de negro. Se posta à sua retaguarda – Darbo sente-lhe as mãos longas e suaves deslizando em seu peito, emaranhando-se delicadamente nos pelos grisalhos. O perfume da garota é inebriante, adocicado. Respirando deliciado, Darbo reclina a cabeça, apoiando-a nas almofadas de uns seios repletos de juventude.
– Cuidado! – adverte a bruxa, lá do sofá. Darbo fuzila-a com o olhar: naquele corpo velho e esquelético os seios murchos e sem vida são uma afronta.
– Já ganhou muito, vá se divertir um pouco – diz um dos jogadores. Darbo pega a mão que a jovem lhe estende e começam a bailar ao compasso de Perfídia – cantada pelo Trio Arakitan. As mãos da garota acariciam-lhe as costas, enfiam-se em seus cabelos nevados, fazem massagem no seu pescoço de peru. Os lábios quentes da jovem começam a mordiscar-lhe a orelhas; as frementes narinas de Darbo sentem-lhe o hálito de agrestes flores primaveris – tudo é magia de juventude recuperada. As ancas da moça requebram, comprimem-lhe o baixo-ventre, o sexo acorda depois de longa hibernação – Darbo sente-se tão viril que o saco escrotal, dolorido, implora pela expulsão dos espermatozóides enlouquecidos.
– Se matar a velha, me terá – diz a garota, enfiando-lhe uma língua de estilete na cavidade do ouvido peludo, uma língua úmida, ardente, voraz. Darbo fita a velha, lá no sofá: ela encara-o, pálida, mortalmente assustada. João Darbo olha os companheiros de carteado: estão sorrindo para ele, um sorriso de estímulo. Sob a influência da música, do sexo acordado, do dinheiro que ganhara ainda amontoado sobre a mesa, da sensação de que a vida é muito mais que a fúnebre rotina com Matilde, sente-se um gigante. Para pisar com tacão de ferro na mediocridade, faz-se necessário acabar com a anciã. No átimo em que formula tais pensamentos, a velha resolve fugir. Darbo a vê, vulto desesperado, sumindo pelo corredor.
– Não deixe que ela escape! – grita a moça, empurrando-o. Darbo, ágil como leopardo, sai em busca da presa. Nunca imaginara, contudo, que a velha fosse tão veloz – muito mais veloz que um guepardo. Deixam a casa, embarafustam-se pelo arvoredo. Uma lua imensa surge fugidiamente na noite carregada de nuvens pesadas e vento insano. Ultrapassam o arvoredo, acabam num campo de pastagem – os guepardos sãos os mais velozes do mundo animal, mas se cansam com extrema facilidade: João Darbo vê a mulher se afastando cada vez mais até sair de seu campo de visão. João Darbo caminha pelos campos, João Darbo encontra uma estradinha de terra. João Darbo caminha pela estradinha de terra. Às vezes para um momento sob a luz mortiça de algum poste feito de tronco de eucalipto e lança um olhar comprido para as imensidões daquele ermo – distingue tremeluzentes luzinhas de habitações distantes mergulhadas na solidão impenetrável da noite abissal. Bate os pés, um e depois outro, na rua esburacada onde medram aqui e ali tufos de erva-daninha – como se assim fazendo fosse expulsar das pernas aquele peso de chumbo. Como viera parar em tão tenebrosa região? No meio da nebulosidade mental em que se vê somente uma certeza resplandece: tem de continuar andando.