Ébano e Brancaflor

Quando arrastaram o recém-chegado da África para a exposição, seu proprietário não conseguiu conter o sorriso de profundo contentamento. Aquela peça magnífica atordoara a todos os participantes do leilão. Era de um negror intenso que rebrilhava ao sol da tarde como um diamante raríssimo. Devia ter mais de dois metros de altura, braços semelhantes ao tronco do pelourinho, os nervos sob a pele retorciam como serpentes aprisionadas. O leiloeiro viu-se obrigado a subir num banco de madeira e erguer os braços às alturas para alcançar-lhe a boca imensa e, assim, mostrar a todos a magnitude daqueles dentes de brancura perolar, uns dentes fortes, grandes, perfeitos. Chamavam a atenção de maneira especial, no entanto, a caixa torácica imponente, a barriga sinuosa de inconcebíveis nervuras. E as pernas. Longas pernas como as de algum cavalo extraordinário. Ninguém, absolutamente ninguém, analisara os olhos daquele gigante cor de ébano, talvez porque tomassem por obtuso aquela brutal selvajaria que era expelida do espírito através das córneas; talvez porque, acostumados a domar todos os escravos literalmente a poder de ferro e fogo, os possíveis compradores não temessem qualquer espécie de ameaça.

Encostado no tronco duma imbuía, Dom Terêncio Balaão, as mãozinhas cavoucando o fundo dos bolsos, mentalmente fazia complicadas contas aritméticas, enquanto percorria com olhares enviesados e soturnos os seus possíveis rivais – pois estava alucinado pelo escravo gigante. E sua intenção não era submetê-lo ao corte da cana-de-açúcar, a nenhum trabalho braçal. Assim que o vira, a ideia brotara no cérebro como uma mensagem divina: faria daquele gigante – Ébano, esse seria o nome – um fabuloso reprodutor. Havia na fazenda muitas escravas fortes, de boa cepa. Que crias não poderiam parir no cruzamento com tão fantástica criatura! Mas antes dos mirabolantes planos, tinha que adquirir o escravo. E isso era coisa de fazer os cabelos caírem. Não tinha dúvida de que dariam lances espetaculares para a posse do gigante.

Aberto o pregão, Dom Terêncio Balaão viu-se envolvido numa disputa sem tréguas, mas enfim – ao preço das safras de um ano de suas plantações – conseguiu levar a melhor. Baixinho, gordo imenso, aproximou-se de Ébano e os escravos que o acompanhavam naquela viagem sorriram furtivamente: a cabeça do amo dava exatamente à altura do umbigo da nova aquisição. Então Dom Terêncio fez aquilo que lhe vinha atazanando a cabeça – meteu a mãozinha gorducha dentro do calção do escravo e segurou-lhe destemidamente a vara. Recuou a mão, assustado: aquilo era coisa de cavalo! Cavalo? Coisa de jumento! Respirou fundo, pensando na importância de tal instrumento para a procriação, e novamente introduziu a trêmula mãozinha sob o calção do gigante, desta vez para averiguar as proporções do saco escrotal – de que valia a pica ter tamanho descomunal sem um arsenal de sêmen também incomensurável? Mal conseguiu envolver na mãozinha um dos bagos de sua nova propriedade, parecia estar segurando um tórrido caroço de abacate!

Os escravos acumularam os lombos dos burros com as compras efetuadas no arraial; Dom Terêncio Balaão montou na grande mula, segurando a corda que se prendia à coleira de ferro de seu gigante procriador – em fila indiana puseram-se em marcha: Dom Terêncio não cabia em si de satisfação. Visualizava, quase em delírio, a nova raça de escravos que Ébano poderia iniciar fecundando o mulheril. Escravos magníficos, lucros fantásticos – a contabilidade era simples como o escorrer da água no riacho. Risonho, Dom Terêncio Balaão abriu espaço no cérebro para dedicar um minuto de divagação à sua esposa Brancaflor. Um encanto, a sua doce mulherzinha. Lembrou-se da lourice, do encaracolado suave daqueles pêlos púbicos e sentiu na língua, com indescritível prazer, o gosto dos humores íntimos de Brancaflor.

Brancaflor não era, definitivamente, uma mulher feliz. Observava com uma ponta de inveja a jovem Maria, sua mucama, a lhe preparar o banho, enquanto que com seu sotaque arrevesado tagarelava sem parar a respeito da noite que passara com o companheiro na mais completa devassidão. Pediu que a mucama se retirasse do quarto de banho e, nua, ficou mirando-se no espelho do toucador. Os seios permaneciam ainda imponentes – acariciou-os quase com raiva, sentindo invadir-lhe perturbadoras manifestações de desejo. Com o marido Terêncio Balaão, em oito anos de casamento tivera apenas um ato sexual de penetração, isso na noite de núpcias, ela na flor dos treze anos. Nada sentira, senão a dor causada pela ruptura do hímen. Se não sentiu orgasmo, Terêncio tampouco. Ambos suados de tantos e inúteis esforços para chegarem ao gozo, o marido virou-se para o lado e sem nenhuma complacência dissera a frase cruel: você é muito larga, parece uma panela. Se bem que Brancaflor tivesse uma anormalidade relativamente comum, uma deformação na bacia pélvica tornando a elasticidade vaginal muito frouxa, quase nula, a bem da verdade as palavras de Dom Terêncio eram uma desculpa esfarrapada para a própria incompetência. Desde a adolescência jamais conseguira ter ereção completa, nem com as mais fogosas escravas da fazenda que se abriam para ele ao mero som de suas ordens ásperas, nem com as mulheres que o dinheiro poderia comprar quando em excursões com o pai aos bordéis dos vilarejos.

Brancaflor mergulhou nas águas tépidas da banheira e começou a brincar com o corpo, acariciando-se ora com delicadeza extrema, ora com raiva destruidora, até atingir um orgasmo vil, incompleto, vergonhoso. E como sempre acontecia, logo em seguida foi acometida de um chorar copioso e massacrante. Mas era preferível esse orgasmo execrável que a vã tentativa do prazer com o marido Balaão babujando em sua vagina, grunhindo como um porco imundo, aquela cabeçona de boi mocho entre suas belas, alvas e soberbas coxas.

Dom Terêncio Balaão mandou que se construísse um galpão próximo à Casa Grande. Ali Ébano se instalou. Não era alimentado com o abominável angu diário servido aos demais escravos. Sua comida vinha diretamente da cozinha dos amos.

Enfim, quando chegou a primeira noite de cobertura, Dom Terêncio pegou sua cadeira favorita, de balanço, e instalou-se no galpão. A fêmea escolhida era uma menina de 15 anos, mas forte, alta, de ancas imensas e mamas fartas. E foi ali, regozijando-se com a perspectiva de um aumento substancial em suas fileiras de escravos, que Dom Terêncio Balaão viu que o sexo poderia ser instrumento de tortura, e os urros de dores da mocinha eram-lhe como uma música celestial – por um momento lembrou-se que deveria acender uma vela no altar da igrejinha de sua fazenda, agradecendo a Nossa Senhora pela boa sorte de encontrar um animal tão extraordinário quanto o gigantesco Ébano – enquanto isso, da janela da Casa Grande, Brancaflor olhava para o galpão fervendo de inveja doentia da adolescente. Queimava-se por dentro, suava entre as pernas, os seios intumesciam-se de desejos.

E foi assim, todas as noites. Ébano sempre engravidando uma nova mulher, às vistas contábeis de Dom Terêncio, e Brancaflor à janela do casarão, iluminada pelo cravejar intenso das estrelas no firmamento negro, banhada pelos raios da absurda lua sertaneja, sempre a masturbar-se angustiada de solidão, carência afetiva, torturada pela riqueza da imaginação. Às vezes, quando os gritos de algumas escravas não eram de dor, mas de escandaloso prazer, Brancaflor ficava tomada de fúria enlouquecida, amaldiçoava aos berros a mulher desmanchando-se em gozos com o seu homem. Pois era assim que via o escravo Ébano: seu homem.

Ébano emprenhou todas as mulheres férteis da senzala – casadas, adolescentes, viúvas, e teve então o merecido descanso na espera do nascimento dos filhos ou que as meninas escravas tivessem a menarca. Enquanto tal não acontecia, passava os dias zanzando pela fazenda, comendo frutas no imenso pomar, exercitando-se a correr, saltar obstáculos. Tão satisfeito estava Dom Terêncio que o presenteou com um belo cavalo branco. Altivo no dorso do cavalo, Ébano muitas vezes levava as crianças da senzala na garupa para longos passeios. Às vezes mandava que um moleque galopasse com o animal e, a pé, sempre vencia as corridas que organizava – era mais veloz que o cavalo branco. Todavia, ninguém sabia o que se passava dentro da cabeça daquele gigante espetacular que não conseguia dizer uma única palavra em português – quando esbravejava fazia-o num dialeto desconhecido de todos, por certo falado em alguma misteriosa e inóspita região das imensidões africanas.

Um dia Ébano viu o feitor chicoteando um moleque de oito anos que ousara roubar uma goiaba do pomar, incitou o cavalo e numa disparada insana atropelou o agressor, parou o quadrúpede a algumas jardas, manobrou as rédeas, voltou a galope e novamente passou por cima do feitor; repetiu a manobra várias vezes, aleijando-o de forma definitiva. O homem agora se arrastava pela senzala como um jacaré, a espinha quebrada. As crianças jogavam-lhe pedras; os homens, vindos da lavoura, desferiam-lhe alguns pontapés e, depois, iam levar oferendas à choupana do bruxo africano, um ser alquebrado e centenário, que se locomovia com dificuldade e que causava absoluto terror a todos os fazendeiros da região, entre eles Dom Terêncio e, justamente por isso, era deixado em paz, sentado num trono de madeira bruta circundado por imagens toscas dos mais bizarros deuses da enigmática África. Ébano tornou-se herói dos escravos – principalmente após Dom Terêncio nomeá-lo o novo feitor, depois de despejar o antigo da fazenda. Era uma função acumulativa, pois Ébano continuaria como reprodutor. Então os escravos descobriram que a vida ainda poderia reservar algumas migalhas de felicidade; os domingos foram reservados para o descanso semanal com direito a batuques, cantorias e danças tribais; o angu das refeições agora se compunha, entre outras coisas, de miúdos de porcos e gado, mandioca, cará, quiabo, almeirão, serralha e frutas para se comer à vontade; nos fins-de-semana servia-se, ainda, uma gamela de pinga para cada um dos adultos.

A inevitável conjunção carnal entre Ébano e Brancaflor ocorreu na primavera. Brancaflor passeava sozinha pelo pomar à procura de algumas frutas temporãs – uma frágil desculpa, pois vira Ébano vadiando por entre as árvores – e quando se encontraram não foi preciso um gesto, um som, para ambos saberem o que tinha de acontecer. Precavidamente sem as calçolas, Brancaflor encostou-se no tronco de um cajueiro e lentamente foi subindo seu longo vestido, pondo à mostra as brancas, leitosas, admiráveis coxas generosas. Acariciou a penugem loura do ventre e deu um suspiro prolongado, os olhos fechados, a cabeça erguida expondo o alvo pescoço de cisne. Logo sentiu os braços de Ébano envolvê-la. Ergueu-a sem dificuldade alguma do solo e Brancaflor passou suas pernas em torno daqueles musculosos quadris de mármore negro – quase imediatamente sentiu algo quente, monstruoso, ir deslizando para suas entranhas num encaixe perfeito, como a mão na luva, como o pé na meia – era como se sua vagina e o pênis de Ébano fossem peças criadas sob medida pela natureza para a dádiva do gozo. Brancaflor teve orgasmos intensos – a cada estocada da poderosa vara do escravo sentia um quase desfalecer, as mãos enlouquecidas tentavam abarcar o magnífico corpo do amante, então seus alvos braços enlaçaram o pescoço taurino de Ébano e sua boca delicada procurou aqueles lábios selvagens e os sugou com sofreguidão, como se quisesse apoderar-se da energia do gigante para ter forças e continuar desfrutando de tão inconcebível prazer.

Amaram-se ininterruptamente por inacreditáveis duas horas, numa sucessão orgástica imponderável a qualquer ser vivente. Quando Ébano soltou Brancaflor, ela foi ao chão e ali permaneceu deitada no leito de húmus, completamente extenuada, mergulhada numa semi-inconsciência edênica. Sem nada grunhir na sua língua desconhecida, Ébano afastou-se alguns metros e depois se voltou, para receber o sorriso extasiado e agradecido de Brancaflor. Ébano também abriu os lábios imensos, num esgar enigmático.

Quando Dom Terêncio Balaão viajou a negócios, Brancaflor passou a tarde toda numa impaciência que chegava à neurose. Com as entranhas em chamas, tomou sucessivos banhos frios e, por fim, não suportando mais a angústia do desejo, esganiçou por Ébano. A mucama Maria mandou um moleque ir procurá-lo e que o encontrasse, mesmo que fosse às profundas do inferno.

Dom Terêncio ficou duas semanas em viagem – por duas semanas sua cama foi conspurcada pelos amantes, sem hora determinada, sem contagem das vezes diárias. Se Ébano sentia desejos enquanto feitorava os trabalhos, imediatamente largava tudo e dirigia-se à Casa Grande, consciente de que encontraria uma Brancaflor de pernas abertas, seios frementes e lábios ávidos a esperá-lo; se Brancaflor começasse a rolar nos lençóis, o peito explodindo de palpitações, a úmida vagina queimando a solicitar o combustível de sêmen, chamava-o aos brados, uma voz de urgência que atravessava a senzala, o pomar, o engenho de açúcar, os canaviais, ecoava nas lonjuras do horizonte, ia fundir-se no peito de Ébano – instantaneamente ele montava o cavalo branco e em disparada vinha atender aos reclamos da ama.

Assim que Dom Terêncio Balaão chegou da viagem, encontrou uma Brancaflor diferente visto que mais viçosa fisicamente e, no entanto, mergulhada numa melancolia inexplicável. Os muitos presentes que trouxera para a esposa foram recebidos com uma indiferença tão grande que magoou seu espírito, arrefeceu o entusiasmo. À noite, nu, pequeno e imensamente gordo, escarafunchou o sexo da esposa e não ouviu sequer aqueles enganosos, dissimulados gemidos de outrora, esparramou-se no meio das pernas abertas de Brancaflor se perguntando o que teria acontecido. Recolheu nos recônditos da boca a sua pobre, inútil, ineficiente língua saburrosa, e saiu do quarto, nu. Passou pela cozinha, pegou o cachimbo, acendeu-o com a brasa de uma acha que mantinha o fogo do fogão avivado, foi sentar-se na soleira da porta de entrada. Fumou por uns quarenta minutos, e quando a humilhação já não cabia mais dentro da caixa torácica, resolveu transferi-la para um dos escravos. Jogou o cachimbo no chão e determinado rumou para a choupana de um casal de meia-idade, sem filhos, a mulher poupada da prenha pelo gigante em virtude de uma horrível doença que lhe devorava uma das coxas. Arrancou os dois do trapiche, levou-os para o galpão – queria ver o marido implorar pelo amor de todos os deuses africanos que ele, Balaão, tivesse um pouco de piedade. Ficou surpreso de não encontrar Ébano no leito. A escrava, com um sentimento de vingança tão forte que produzia uma baba hidrófoba no canto da boca, disse-lhe, vitoriosa, que vira ainda há pouco o feitor adentrar a Casa Grande pelos fundos, àquela hora estaria nos braços de Brancaflor.

Dom Terêncio Balaão nem por um momento duvidou da revelação da escrava – entendia agora os sintomas de tristeza de Brancaflor, ele, Dom Terêncio Balaão, era um entrave aos amores ilícitos da esposa. Chispou para o casarão na velocidade que lhe permitia o corpo nu de hipopótamo, em maremoto de banhas, brancamente iluminado pelo luar cínico. Entrou no quarto estrepitosamente. Na cama, Ébano montava Brancaflor e numa sincronia perfeita de movimentos, pareciam estar num curral de amansamento de equinos xucros. Ele, o domador; ela, a égua selvagem. O rosto da esposa era uma espantosa máscara de estertores orgásticos. Possesso, Balaão foi até o armário de armas ali mesmo no quarto, pegou o bacamarte, fez fogo, a arma estava descarregada. Investiu sobre o corpo gigantesco de Ébano, golpeando-o a coronhadas nas costas e cabeça – o desgraçado não parecia sentir absolutamente nada, pelo contrário: a cada coronhada mais aumentava o socar frenético daqueles quadris negros e suados, rebrilhando sob a lua cafetina; os corpos dos amantes ondulavam-se tal qual barquinho perdido num oceano açoitado por tempestades tropicais. Quando Brancaflor começou a urrar na explosão dos gozos infinitos, Balaão correu para o armário e municiou o bacamarte. Fez mira na cabeça de Ébano e, prestes a dar com o gatilho, lembrou-se do quanto pagara pela aquisição do escravo, a matemática do prejuízo doeu-lhe na consciência treinada para cálculos de ganhos e perdas. Largou o bacamarte nos pés da cama, sobre o colchão, foi chorar a desventura na sala, sentadinho à vasta mesa, um litro de licor de ameixa à frente do qual bebia diretamente do gargalo. Ficou uma eternidade acalentando sua amargura. Depois de mais de uma hora, Ébano deixou o quarto, passou por Balaão sem lhe dignar ao menos um olhar de menosprezo.

Trôpego, Balão foi ao escritório, apossou-se de pena e escreveu três cartas convidando os fazendeiros – aqueles que disputaram a posse do escravo lance por lance – para que viessem à sua propriedade, estava colocando o gigante Ébano à venda pela melhor oferta. Depois foi acordar um escravo de confiança, rapaz ainda novo, e incumbiu-o de fazer a viagem, imediatamente, levando as cartas. O rapazinho a princípio ficou intimamente furioso com a missão, depois foi dominado pelo acesso de riso, assim que Balão retornou à Casa Grande – era sumamente engraçado aquele toco de gente com gordura sobrando em cada milímetro do corpo, caminhando de cabeça baixa, as duas nádegas com as banhas a sacolejar como se fossem duas porcas prestes a parir.

Na manhã seguinte, enquanto Ébano deixou-se amarrar no pelourinho com um olhar divertido (visualizava os acontecimentos futuros?) os fazendeiros e Dom Terêncio Balaão reuniram-se em torno de uma fabulosa mesa com toalha de linho estendida e coberta de finas iguarias e se enfrentaram feitos cachorros loucos, cada qual disputando pataca a pataca o direito de compra do escravo majestoso. Enquanto isso, consumida pelo desespero, Brancaflor pediu à mucama Maria que a levasse ao bruxo centenário. Entraram na choupana às escondidas; o feiticeiro, imóvel, olhos entrecerrados, ouviu as súplicas da ama, perguntou se era coisa para matar ou aleijar, Brancaflor pesou a pergunta, nem uma coisa nem outra, respondeu, mas algo pior que o aleijão, mais cruel que o simples morrer. Impenetrável, o ancião acendeu um pito de palha grosso como uma haste de cana, bebeu um grande trago de pinga, cuspiu quase tudo em cima de suas imagens sagradas, as lanternas com óleo animal começaram a dançar, enchendo o cômodo sombrio com aziagas sombras negras e vermelhas – um vento forte, como que encanado, começou a soprar, curiosamente só atingindo o bruxo: gemidos, uivos, lamentos, tudo em surdina, começaram a penetrar por cada frincha, cada ranhura, fissura, fresta, racha, vão das paredes. A cobertura de sapé da choupana começou a minar um líquido espesso, cor de âmbar e fétido. Paralisada de medo, Brancaflor a custo atendeu ao pedido da mucama e saíram para o ar puro, imaculado, da tarde límpida, o sol brincando de diamantar as jardineiras floridas da Casa Grande, as folhas dos plátanos, a água das tinas recentemente trocada. Foi sentar-se ao lado do marido.

A transformação de Dom Terêncio foi uma coisa de menos de um minuto. Quando chegava a um acordo com um dos fazendeiros, seu rosto foi se alongando, a nariz achatando, os olhos ficando redondos como o fundo de uma xícara. Os braços e pernas foram diminuindo – uma longa cauda brotou da região do cócix e foi assim, em menos de um minuto, Terêncio Balaão transformou-se num monstruoso e gordo réptil asqueroso que rolou da cadeira e espadanando o comprido rabo e na velocidade característica de tais criaturas atravessou todo o pátio da Casa Grande, deixando em sua trajetória pedaços das ricas vestes, o relógio de bolso com sua pesada corrente de ouro, invadiu o pomar, atravessou-o sumindo das vistas de todos para reaparecer longinquamente, perto dos canaviais, a subir por uma pedra negra de uns três metros de altura. Um dos fazendeiros fez um muxoxo unindo os lábios, “não se pode fazer negócio com um lagarto”, sentenciou. Os demais concordaram. Retiraram os guardanapos dos peitos, declinaram os seus respectivos respeitos para com a excelentíssima senhora Brancaflor Balaão e escafederam-se nos seus cavalos num galope a brida solta.

Brancaflor reuniu os escravos e indagou quais queriam ficar na fazenda, alforriados e recebendo pelos serviços prestados, e quais desejavam procurar outros rumos – muitos, assim, partiram (para retornar depois de alguns meses provando que, à época, mesmo com um papel que lhes conferia a liberdade, ser livre era a coisa mais difícil do mundo). Para os que ficaram, Brancaflor promoveu uma festa que duraria exatos quatorze dias. Houve batuques, fartura de comida e muita cachaça. Reza a lenda que a fazenda Riacho Fundo ficou indelevelmente marcada na história de Pernambuco, a partir do Anno Domini de 1736, por sua inacreditável prosperidade.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 29/09/2016
Código do texto: T5775882
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