O fantasma apaixonado

Naquela manhã de domingo a delegada Palmira foi ao portão pegar a revista semanal e encontrou também na caixa postal um bilhete, escrito em folha de caderno escolar: Minha flor de jasmim, eu tenho te observado com o coração ardendo de desejo, preciso marcar um encontro íntimo com você. Que tal essa noite, por volta das 23 horas? Assinado, Zé Carlinhos. A delegada fixou os olhos na casa em frente à sua, no outro lado da avenida. O jovem Zé Carlos, de short e sem camisa, estava na calçada consertando a motocicleta – quando percebeu que era observado, levantou a chave de fenda, abriu um sorriso e acenou um cumprimento. Palmira releu o bilhete, riu da letra espalhafatosa, incerta, analisou novamente o rapaz. Cabelo à escovinha (estava fazendo o serviço militar no Tiro de Guerra), braços plenamente desenvolvidos, bíceps amplos, pernas musculosas. Era um desaforado, além do mais. Voltou para o interior da casa, olhou-se no grande espelho do quarto – era uma mulher forte, espadaúda, tinha as feições duras de alguém acostumado a arrancar confissões de bandidos à base de porradas. Era também um ser amargurado, vingativo e destemido. Por causa desse temperamento, nunca se casou – à surdina diziam que ela gostava de mulheres. Não era verdade. Palmira nunca sentira a menor atração por pessoas do mesmo sexo. Sentou-se na beira da cama, olhou os pés nada femininos e por um momento achou que o garoto devia estar de gozação. Ficou furiosa ante o pensamento. Precisava de uma desculpa para atravessar a avenida e abordar o garoto, mas teria que ser cautelosa, branda e insinuante. Pôs-se a pensar. Ao lado da casa do rapaz havia um asilo de velhinhos que era mantido pela caridade pública – pegou alguns quilos de carne no freezer, meteu-os numa sacola de supermercado e atravessou a rua. Aproximou-se do jovem.

– Olá, como vai? – disse com um sorriso ressabiado nos lábios.

– Eu vou bem – respondeu ele, de cócoras ao lado da roda dianteira da moto, os olhos para o alto, fixando-a, uns olhos brilhantes, trigueiros, os mais belos olhos que Palmira já tinha visto. – E a senhora, tudo nos trinques?

– Estarei nos trinques hoje à noite – respondeu ela com segundas intenções.

– Que ótimo! – exclamou o garoto. Riu com todos os dentes e voltou-se para a roda do veículo. Ela foi ao asilo, fez sua doação na portaria e ao passar de novo junto ao rapaz, enviou-lhe um olhar de sedução.

Palmira passou o dia na quadra de tênis do clube da polícia, jogou várias partidas com robustos agentes e, ainda assim, seu corpo não sossegou, formigando de excitação. Às sete da noite tomou um banho demorado – sentia tanta falta de um homem que, envergonhada de si mesma, acabou se masturbando.

Às dez e meia da noite, a delegada Palmira afastou as cortinas do quarto e lançou um olhar investigativo ao longo da rua do bairro residencial, o que viu foram as casas fechadas com luzes azuis dos televisores, as árvores encolhidas dentro da noite, envoltas pela iluminação pública – no mais o vazio soturno, nenhuma pessoa nas calçadas. Estendeu-se na cama e ficou esperando. Esperou até as três da manhã, quando dormiu extenuada pela vigília.

Acordou às nove da manhã de segunda-feira com um mau humor do cão. Vestiu-se apressadamente – jamais em toda a sua vida chegara atrasada ao trabalho –, deu um tapaço na gata siamesa que pedia leite, entrou no carro e na delegacia tinha um olhar tão assassino que nenhum dos subalternos ousou cumprimentá-la com um bom dia respeitoso. Sentou-se à escrivaninha e aos berros mandou que dois detetives, uns brutamontes que se encolhiam de medo, fossem à casa do jovem Zé Carlos e o trouxessem à sua presença. Em trinta minutos viu suas ordens cumpridas. O garoto sentou-se à frente da delegada, atônito com a situação. Palmira deu-lhe o bilhete.

– Encontrei isso ontem na minha caixa postal. Quero uma explicação – exigiu ela, os olhos fuzilando de raiva, a boca espumando de rancor.

O rapaz leu o bilhete e ficou muito tempo sem conseguir pronunciar palavras, abismado.

– Eu não escrevi essa coisa, doutora! – eximiu-se o jovem. Refletiu um instante, depois exclamou: – Mas espere aí! Eu sei quem escreveu! Sabe o asilo perto de casa? Lá tem um velhinho assanhado, já vi muitas vezes ele rondar sua casa de madrugada, doutora. Ele também se chama Zé Carlos. É um velhinho encurvado, usa uma boina xadrez.

Palmira mandou buscar o velhinho. Enquanto seus agentes obedeciam à ordem, ela serviu da garrafa térmica um cafezinho para o garoto, conversaram e riram da situação. Falaram da motocicleta, do Tiro de Guerra, do bilhete amoroso. Quando o homenzinho foi apresentado, tinha tanto medo que um fio de baba lhe escorria queixo abaixo. Ele confessou que sim, sentia mesmo atração pela delegada, mas não escrevera o bilhete por uma razão muito simples: era analfabeto. Palmira mandou que telefonassem ao asilo e inquirissem o responsável administrativo a respeito das declarações do ancião. A informação recebida: o sujeitinho era incapaz de desenhar o próprio nome. A essas alturas Palmira já estava de bom humor, deu uma leve reprimenda no sujeitinho e mandou que o levassem de volta ao estabelecimento de assistência social. Voltou-se para o garoto:

– Você agora já pode ir, Zé Carlos.

O garoto retirou-se da sala escondendo com muito cuidado a vontade de rir – tinha mesmo graça aquela velhota tipo sargentão imaginar que ele alguma vez tivesse pensado em transar com ela! A sós com Palmira, o investigador Ambrósio perguntou se podia ler o bilhetinho, talvez tivesse alguma ideia de quem poderia ser o autor. A delegada passou-lhe o papel, o policial sentou-se na cadeira em frente à mesa e ficou estudando a caligrafia do bilhete com o cenho carregado, depois fez uma cara de incredulidade e por fim exclamou:

– Mas isso não tem lógica!

– O que não tem lógica, Ambrósio? – inquiriu ela com voz cheia de autoridade.

– Essa letra, doutora – disse devolvendo o bilhete. – Quem escreveu isso foi o Trovão!

– Impossível!

– Também acho. Não tem lógica, eu repito.

Os dois ficaram se olhando, perplexos. O investigador Trovão tinha sido parceiro de Ambrósio durante mais de quinze anos, era um gigante com uma voz de barítono que parecia abalar as estruturas da delegacia quando abria a boca, valente e audacioso, aliás, foi sua audácia descomedida que o levou à cova na madrugada de um domingo, seis meses atrás, quando invadiu um muquifo de traficantes mesmo sendo o seu dia de folga. Levou cinco tiros fatais no peito.

– Além da letra, você consegue decifrar outros indícios, Ambrósio?

O investigador remexeu-se na cadeira como se estivesse em cima de um assento de pregos.

– Diga logo, Ambrósio!

- São coisas íntimas lá dele, doutora.

– Fodam-se as coisas íntimas, Ambrósio. Desembucha de uma vez!

– Bom... O Trovão quando estava com a gente tomando uns tragos no barzinho, só chamava a senhora de “minha flor de jasmim”. E tinha um sonho muito doido...

– Que sonho é esse, Ambrósio?

O investigador abanou a cabeça, como se fosse muito difícil para ele desmanchar o laço na garganta.

– Diga logo, Ambrósio, que sonho era esse?

– É uma coisa safada... A senhora não vai ficar braba comigo?

– Toma vergonha na cara, Ambrósio!Um homão desse tamanho com medo de contar um sonho?!

– Ele fantasiava que estava transando com a senhora. E que a senhora o chamava de Zé Carlinhos gemendo nos braços dele. O nome verdadeiro do Trovão era José Carlos da Silva, lembra?

– Claro que me lembro! Mas tudo isso não passa de uma série de coincidências nefastas. Era só o que me faltava, um fantasma apaixonado escrevendo bilhetinhos de sedução! Quero que você faça algumas investigações internas, porque alguém deste departamento está pensando que pode tirar sarro na minha cara. Eu quero esse desgraçado aqui, na minha frente, o mais depressa possível. Entendeu bem?!

– Entendi sim. Com sua licença, senhora... – disse Ambrósio, e tratou de levantar-se da cadeira e sumir daquela sala, fechando a porta cautelosamente. Só quando estava no corredor é que percebeu o suor brotando da testa abundantemente enquanto matutava sobre quem é que poderia ser imbecil o suficiente para brincar com a delegada vaca louca.

Já fazia alguns minutos que a delegada Palmira lia e relia o bilhete, tentando decifrar nas entrelinhas uma pista que a levasse ao escrevinhador desaforado, quando um ruído de metais enferrujados vindo do pesado arquivo de folha de flandres, num dos cantos da sala, desviou sua atenção. O que viu foram as gavetas do armário obsoleto, há muito trancado a chave, a trepidar nos encaixes em tentativas de deslocamento. Que diabos seria aquilo? – perguntou-se intrigada. Há bastante tempo os trabalhos de escrita da delegacia eram digitados nos computadores. Naquele arquivo havia apenas as pastas de um passado distante de casos não solucionados, as ocorrências policiais relatadas em livros grossos e já empoeirados, os relatórios dos policiais redigidos à mão... Porra, os relatórios! – exclamou Palmira. O investigador Trovão fora remanescente da época em que o uso de computadores não passava de um sonho – então ali, naqueles arquivos, haveria uma amostra de sua caligrafia, Palmira poderia muito bem comparar as letras. Se tivesse as chaves. Fora transferida para aquele distrito há cerca de dois anos e aquele arquivo ali estava, exatamente como naquele momento, mais fechado que coxas de monjas setuagenárias.

Enquanto olhava fascinada para o arquivo, os ruídos de metais atritando tinham aumentado bastante, a ponto de alguém bater na porta da sala e perguntar se estava tudo bem por lá. Palmira berrou energicamente que o curioso fosse catar coquinhos, não tinha mais o que fazer além de intrometer-se onde não era chamado? Tinha gritado tão alto que, teve certeza, seus subordinados iriam evitar, sensatamente, o trânsito pelo corredor de seu escritório. Assim, Palmira acomodou-se melhor na cadeira para observar com espírito analítico aquele fenômeno extraordinário. Finalmente a gaveta de cima do arquivo abriu-se alguns milímetros e uma página amarelecida deslizou pela abertura, voou graciosamente pela sala e veio pousar sobre a mesa, à frente de Palmira. Havia a parte final da descrição de uma batida policial acontecida dez anos atrás, e ocupava a metade da folha numa letra azul descorada pelo tempo. Na outra metade, havia um texto com tinta preta, forte, nítida, coisa recente. Dizia: Ontem não foi possível te ver, pois não consegui materializar-me num corpo à altura da sua maravilhosa forma física; irei hoje por volta da meia-noite, sem falta; por favor, deixe o portão do quintal e a porta de entrada abertos. Do seu, Zé Carlinhos.

A meia-noite em ponto, a delegada, completamente despida, viu pela janela de seu quarto um vulto esgueirando pela calçada mergulhada nas sombras das árvores, viu-o abrir o portão e deslizar pelo jardim. Trêmula de expectativa – mas com o revólver ao alcance da mão, no caso de ser um ladrãozinho qualquer –, Palmira ouviu a porta da frente ser empurrada, captou o som pesado de botas andando pelo corredor até cessar à porta do quarto. Chegou aos seus ouvidos o barulho de uma respiração forte, selvagem, de animal no cio – o trinco girou com suavidade e Trovão surgiu por inteiro assim que a porta foi escancarada.

– O Zé Carlinhos chegou, minha flor de jasmim! – ele disse naquele vozeirão inconfundível, de abalar paredes. Estava materializado no corpo do jovem vizinho Zé Carlos, inclusive usando a farda verde-oliva do exército.

A delegada Palmira apenas sorriu, deliciada.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 19/09/2016
Reeditado em 19/09/2016
Código do texto: T5765413
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