O segredo das poderosas
Naquela época eu era um jovem e inexperiente delegado de polícia de Indaiara. Foi durante o verão que o deputado estadual da região apareceu com uma mulher a tiracolo, confinou-a em sua residência de solteirão convicto e não deu satisfação a ninguém – e nenhum de nós ousou ser indelicado. Por causa das lidas políticas na Capital, o nosso representante legislativo só podia visitá-la duas vezes por mês. A concubina era de uma beleza avassaladora, tinha um ar de provocação nos olhos azul-safira, usava os cabelos louros em um rabo-de-cavalo amarrado com uma fita de veludo negro, os lábios eram carmins, polpudos, as unhas longas cintilavam com o esmalte vermelho; era alta para os padrões das indaiarenses, um metro e oitenta no mínimo; constituição forte e os seios pequenos caberiam dentro da concha de uma mão masculina. Chamava-se Ramona.
Dona Marilda, a jovem esposa do nosso septuagenário prefeito, foi a primeira a manter contato com Ramona, disposta a arregimentar mais uma ignorante para o movimento women’s lib. Logo essas visitas se tornaram frequentes, era comum ver as duas sentadas no alpendre, escandalizando os passantes pela quantidade incrível de garrafas de cerveja que esvaziavam.
Não demorou muito para a juíza também se tornar amiga de Ramona. E logo as poderosas de nossa cidade faziam ponto na residência. A dona do Colégio Sagrado Coração de Jesus. A diretora do Hospital São Bento. A perita do IML. E outras tantas do mesmo calibre. Quanto aos homens, nenhum de nós teve peito para fazer uma aproximação – não era apenas por respeito ao deputado, mas me parece que as mulheres haviam feito um invisível, mas impenetrável cerco de proteção em torno da beldade. E o tempo foi passando.
O outono chegou com rajadas de ventos inconcebíveis. A ventania durou o dia inteiro e cessou repentinamente por volta das sete da noite – foi quando ouvimos dois disparos de arma de fogo vindos da residência de Ramona. Mas que diabo estaria acontecendo? – ficamos a nos perguntar, visto que o deputado estava fazendo a sua visita quinzenal. Mandei um policial averiguar, pouco depois ele voltou branco de terror. O deputado dera um tiro no peito de Ramona, em seguida metera um balaço na cabeça. Tolhido pelo inusitado da situação, a única coisa que me ocorreu foi ordenar que o local da tragédia fosse isolado.
Tirou-me da momentânea perplexidade a jovem esposa do prefeito septuagenário. Convocou-me para uma reunião de urgência – e voltei a ficar confuso quando vi que lá no salão nobre da prefeitura só havia mulheres. Estavam mortificadas, arrasadas, aturdidas. A juíza olhou pela vidraça as luzes âmbares dos postes, depois o céu que se cobria com grossas nuvens cor de chumbo. Em seguida trocou um olhar de entendimento com a perita do Instituto Médico Legal. A juíza voltou a sentar-se na grande mesa de reunião e revelou-me um segredo que eu deveria, para o bem da comunidade, continuar protegendo a qualquer custo: Ramona, a bela, era tão amada porque possuía entre as pernas um alentado apêndice que há tempos vinha saciando a fome sexual das poderosas da cidade.
O corpo do deputado foi transladado para sua cidade natal, a cento e oitenta quilômetros de Indaiara, lá os parentes lhe deram um féretro solene, embaralhando a verdade sobre a causa da morte para que sua respeitabilidade de homem público não fosse enodoada mais do que o necessário. Nós, de Indiara, ficamos com o cadáver de Ramona sem saber bem como agir. Primeiro fingimos tentar descobrir algum documento da falecida – pelo menos o RG – e, claro, nada encontramos. Nem mesmo um mísero envelope de carta onde constasse no endereço a existência de alguma pessoa de outra cidade que partilhasse de sua intimidade. Era isso, Ramona não deixara nenhum vestígio de relacionamento afetivo com alguém além dos limites do nosso município. O prefeito decidiu que a criatura deveria ser enterrada como indigente. Mal pronunciou essa palavra terrível foi tão injuriado pela mulherada com influência nas decisões político-administrativas do município que apressadamente se desculpou, não sabia o pobre coitado o quanto Ramona era amada. Lavou as mãos, como Pilatos, e delegou poderes decisórios ao mulheril, satisfeitíssimo por livrar-se do abacaxi. Foi um enterro e tanto, com todas as pompas e circunstâncias dignas de uma celebridade.
O fato é que dois meses após o enterro de Ramona, a esposinha do prefeito foi ao jornalzinho semanal de Indiara e deu entrevista dizendo estar grávida do seu septuagenário marido. Como tal coisa seria possível? indagou o espantado repórter, pois ele mesmo tinha acompanhado com grande apuro jornalístico a delicada cirurgia a que submetera o alcaide em razão de um avançado câncer na próstata – o que, é sabido e notório, deixa o homem infértil. A primeira-dama tinha a resposta na ponta da língua: pedira a intervenção da mártir Ramona aos anjos celestiais e o milagre se dera, o maridão funcionara. O ilustre repórter estava duvidando? Não, o repórter não duvidava – que de bobo não tinha nada, o jornaleco era da família da endinheirada mulher. Fez uma grande matéria de primeira página, o jornal foi distribuído gratuitamente aos transeuntes, pilhas de exemplares foram colocadas nos bares, pensões, vendinhas, quitandas, biroscas, borracharias, oficinas, e estabelecimentos afins para quem quisesse pegar. Bem, a coisa deu certo, o povo, como sempre, acreditou na patuscada. E o conceito de Ramona como milagreira subiu ainda mais quando outras ilustres senhoras começaram a expor ao público a mimosa barriguinha saliente contendo o fruto de fervorosas preces. Até a vereadora Altamira Poseidon, de quarenta e três anos, andou espalhando que andava sentindo tonturas, enjoos diurnos, desejos estranhos – será que a milagrosa Ramona tinha atendido também ao seu pedido desesperado para engravidar-se, ela que era mulher solteira, feminista até a medula, poderia haver recebido tão excelsa graça? Sim, até ela iria conceber, conforme revelaram os exames médicos. Ah, como o mulheril estava feliz! Alvoroçadas, elas construíram sobre o túmulo de Ramona um majestoso mausoléu de granito negro com santuário e tudo, se bem que algumas mais desvairadas queriam mesmo era uma cópia arquitetônica do Taj Mahal. E alguns meses depois nossa cidade, constituída basicamente de descendentes de portugueses, índios e africanos, viu-se inundada de graciosos bebês de cabelinhos claros e olhos azuis – pequerruchos saudáveis, vivazes e fortes, apesar de serem, todos eles, prematuros, como bem atestavam os documentos emitidos pela Dra. Helena, digna diretora do Hospital São Bento, ela própria ostentando o fascinante sorriso de quem iria parir brevemente. Ah, Santa Ramona!
O tempo passou e o conceito de Ramona como milagreira cresceu muito e hoje, durante as comemorações do aniversário de morte da mártir, vêm romeiros de todas as partes. Outro dia mesmo hospedei um casal de suecos que deseja ardentemente ter um filho. É isso. Quando nasce uma criança lourinha em nossa cidade de mestiços, a ressabiada esposa trata logo de explicar que pediu em preces a intervenção da Santa Ramona. O marido, é claro, acredita, e até leva uma vela ao santuário do mausoléu em sinal de fervor e devoção.
Quanto a mim, refestelado na espreguiçadeira, olho daqui da varanda minhas muitas cabeças de cabras e bodes comendo o milho dos cochos, mastigando mandacarus ou roendo os mourões da cerca do meu sítio – o pagamento pelo meu silêncio – e fico a matutar se Ramona tornou-se realmente uma Santa ou se sempre foi a reencarnação de Belzebu, o Príncipe dos Demônios.