A namorada que sonhei

– Arranjei uma substituta – disse T. Francis a Bethânia enquanto ajeitava-lhe o travesseiro embaixo do crânio pelado. Os olhos dela, avermelhados pela dor, cintilaram com mais intensidade. Ele teve a impressão que a garota balbuciava alguma coisa – T. Francis tentou fazer uma leitura labial, em vão. Abriu a janela e um vento suave entrou pelo quarto.

– Hoje a floração atingiu o clímax – ele disse apontando o ipê roxo coberto de flores. Tinha sido por causa daquela árvore específica que T. Francis havia colocado o leito de Bethânia no segundo andar do sobrado. A copa alta e florida ficava perfeitamente enquadrada à janela. T. Francis arrastou a cadeira branca de plástico para junto da cama, sentou-se e fixou os olhos no corpo nu da garota. Sentiu um calafrio percorrer a espinha: Bethânia estava no fim. Teria talvez algumas horas de vida. Fazia exatamente cinco meses que a sequestrara – a princípio Bethânia lutou muito para se livrar das cordas que a prendiam na cama do cativeiro, teimava em não se alimentar, gritava horas seguidas na esperança de que alguém a escutasse, o que seria impossível, já que T. Francis morava sozinho na chácara. Mas chegou uma hora que ele não teve alternativa senão silenciar a garota. Com um arco de pua fez um pequeno furo no cérebro de Bethânia e derramou no orifício algumas colheradas de água fervente. Com o cérebro parcialmente cozido, a garota finalmente sossegou – e T. Francis pôde desfrutar de sua companhia como bem quis, podia penteá-la (até que o cabelo começou a cair e a deixou calva em menos de uma semana) e transar com o corpo tomado pela paralisia – podia desfrutar de todas as posições sexuais que sua imaginação frenética concebia sem ouvir lamentos ou gritos de dor ou gemidos de pânico. Para que o corpo de Bethânia não fenecesse, alimentava-o com sopas nutritivas. Mas tudo tem um fim – disse T. Francis a si mesmo com um suspiro. Era o momento de substituir aquele corpo extremamente fragilizado por outro mais saudável.

T. Francis deixou o quarto, desceu a escada, passou pela sala e saiu para o quintal ajardinado. Passeou pelos canteiros observando suas luxuriantes espécies florais: begônias, petúnias, ajugas, antúrios, lisimaquias, piectrantos, trapoerabas, milindres, alocasias – decidiu-se: iria enterrar o corpo de Bethânia junto aos pés de begônia. Dirigiu-se ao celeiro, pegou uma picareta, uma enxada e uma pá e tratou de abrir a cova – trabalhou com calma, sem muito esforço, a terra sob as begônias estava fofa, macia mesmo, nem precisou da enxada e da picareta, bastava enfiar a pá. Quando o buraco estava numa fundura razoável, buscou o corpo de Bethânia, colocou-o suavemente, com carinho, com sincera delicadeza, dentro da cova e começou a cobri-lo com a terra. Bethânia estava imobilizada, porém viva. Os olhos abertos da garota brilhavam no mais absoluto terror, mas T. Francis não percebeu nenhuma anormalidade – não possuía sensibilidade para tais percepções.

Depois de terminado o serviço fúnebre, T. Francis voltou para o interior da casa, foi ao banheiro, lavou-se, trocou de roupa no quarto, pegou sobre a mesa da cozinha as chaves da camioneta, encaminhou-se para a garagem apegada à residência, entrou na Land Rover Freelander cor de abóbora e deu partida. Eram cinco e meia da tarde. O percurso da chácara até Londrina poderia ser feito em dez minutos se pisasse um pouco mais fundo no acelerador. Mas T. Francis precisava pensar, reformular planos, coordenar investidas – por isso resolveu guiar o veículo lenta e cuidadosamente.

T. Francis conduziu a Land Rover ao estacionamento público da Av. Prof. João Cândido, olhou o relógio de pulso, eram seis e trinta, a noite começava a cair. Caminhou pelo calçadão, entrou numa lanchonete, pediu um copo de leite batido com morangos. Enquanto se alimentava, ficou olhando para o salão de beleza à frente. No dia anterior havia entrado ali para cortar o cabelo e foi atendido pela garota que disse chamar-se Violeta. A primeira coisa que atraiu a atenção de T. Francis foi o sorriso. Era um sorriso especial.

O salão de beleza encerrou o expediente, fechou as portas e Violeta caminhou diretamente para a lanchonete. O coração de T. Francis bateu forte, ficou olhando-a como que hipnotizado, adorando seu corpo pequeno e franzino coberto pelo uniforme branco. Ela tinha o cabelo castanho claro, curto e encaracolado e pezinhos minúsculos enfiados num par de tênis branco. Violeta entrou na lanchonete e passou por T. Francis sem lhe dirigir nem mesmo um olhar de viés, foi sentar-se na banqueta do balcão a uns dois metros de distancia, aos fundos. T. Francis não entendeu aquela surpreendente atitude. Por que ela estava fingindo que não o conhecia? No dia anterior haviam conversado muito, sobre tantas coisas (ela tinha sido particularmente insistente a respeito do boato de que a família de T. Francis era uma das mais ricas do país), por que agora aquela indiferença? O salão de beleza estava sempre lotado de clientes de ambos os sexos, é verdade. Os profissionais cortavam cabelo ou faziam manicure e pedicure em dezenas de pessoas diariamente, Violeta poderia atender alguém, terminar o trabalho, receber o pagamento e de pronto esquecer o freguês. Mas essa fórmula não se aplicava ao caso de ambos. No momento em que trocaram olhares uma luz intensa, quente, maravilhosa, havia se instaurado em seus corações. O cérebro de T. Francis começou a trabalhar freneticamente para encontrar lógica no comportamento de Violeta. Formulou e refutou várias hipóteses e, por fim, chegou à conclusão – aceitável – de que ela estava usando de espertíssima tática de sedução.

Violeta solicitou um hambúrguer e um guaraná ao atendente. T. Francis ficou contrariado com o pedido da moça. Não aprovava aquele tipo de comida e nem era adepto de refrigerantes. Consolou-o a ideia de que teriam muito tempo para se conhecerem melhor. Violeta terminou de comer, bebeu o resto de guaraná da latinha, pediu a conta e saiu. T. Francis demorou um pouquinho mais sentado na banqueta, esperando que ela se distanciasse uns cinquenta metros e só depois começou a segui-la. Quando pressentiu que Violeta entraria no Shopping Royal Plaza, diminuiu a distância entre ambos.

No shopping, àquela hora da noite havia muita gente olhando as lojas, fazendo compras, lanchando ou jantando nas praças de alimentação. T. Francis se sentiu melhor no meio da multidão. Podia ficar perto de Violeta sem que ela desse por sua presença. Ela caminhou em direção à sala do Cine Lumière, comprou bilhete de entrada. T. Francis fez o mesmo, surpreso com o título do filme: Violeta Foi Para o Céu. Como diziam alguns místicos – e T. Francis acreditava nisso piamente – coincidências não existem.

T. Francis sentou-se numa poltrona a três fileiras atrás da moça. Violeta observava, sem dar na vista, os movimentos dele e soltou uma praga baixinho, ou aquele carinha era um tímido digno de pena – mesmo sendo herdeiro de fabulosa fortuna – ou era um babaca de marca maior. Será que o bobão não conseguia captar todas as mensagens que seu corpo e olhares dissimulados estavam enviando? Resolveu tomar rédeas da situação, levantou-se e foi diretamente ao encontro dele. T. Francis, que a tudo observava, riu por dentro: ela estava fazendo exatamente o que ele tinha planejado.

Não viram o filme, por quase duas horas se entregaram às carícias. Quando a película chegou ao fim, estavam tão excitados que saíram às pressas da sala, deixaram o shopping e rumaram para o estacionamento público. Entraram na camioneta Land Rover, Violeta particularmente encantada com o magnífico carrão.

– Você é a namorada que sonhei – disse T. Francis.

– Nossa! Parece até frase de música brega...

– Então vou refazê-la. Você está condenada a viver para sempre ao meu lado.

Violeta riu, deliciada.

– Você jura?

– Juro. Você vai se transformar em flor e perfumar meu jardim para toda a eternidade...

– Nossa! Você é um poeta, meu querido!

– Sou mesmo, não é?

T. Francis deu partida na Land Rover e saíram à rua. Passavam-se das dez da noite. A cidade estava silenciosa, quase sem tráfego.

– Vamos para um motel? – ela perguntou.

– Eu estava pensando em irmos à minha chácara, fica aqui pertinho, chegaremos em dez minutos se eu pisar fundo.

Sorriram um para o outro. Logo chegaram à rodovia e o veículo mergulhou nas entranhas da noite tenebrosa.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 03/09/2016
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