A sombra do monstro
Segurei a mão de minha mãe no momento em que agonizava, exaurindo-se lentamente no esforço supremo para reter a vida em seu corpo tomado pelo câncer – então seu rosto congestionado relaxou, o semblante envolveu-se numa aura de paz. Minha mãe viveu pouco tempo saboreando a liberdade, tinha cumprido sentença na penitenciária durante dezoito anos, acusada de assassinar meu pai numa das propriedades rurais da família pelo lado materno. Jamais negou a autoria do crime, no julgamento manteve-se altiva e ficou gravada nos anais jurídicos sua frase definitiva: “Se eu pudesse, mataria o desgraçado mil vezes sem que a faca tremesse em minhas mãos, mas infelizmente não posso contar os motivos, isso só traria mais sofrimentos a todo mundo”. Assim, nunca se soube o porquê do assassínio. Quando minha mãe esfaqueou meu pai, eu era uma garotinha de cinco anos – fui, portanto, criada por meus avós maternos – mas nós duas jamais nos afastamos, eu era levada à sua presença em todos os dias de visita à prisão, éramos tão apegadas que nas despedidas eu esperneava berrando que não queria sair do local, era preciso muita paciência dos meus parentes para acalmar-me. Visitei minha mãe durante dezoito anos. Quando ela deixou a prisão, eu já estava formada em medicina e trabalhava na Santa Casa de Misericórdia – ela veio morar comigo e sua presença na casa foi-me como uma bênção de Deus. Éramos, sim, muito apegadas.
Na manhã do enterro, antes que o caixão fosse fechado, coloquei uma rosa branca entre os seus dedos entrecruzados e murmurei fitando seu rosto sereno: “Precisa contar-me, querida, o seu segredo terrível, não carregue esse peso por toda a eternidade; espero sua visita esta noite, ache um jeito de entrar em contato comigo”. Terminada a cerimônia fúnebre, sai pelas ruas olhando as vitrines à procura de alguma coisa para comprar, qualquer coisa, um alfinete, um ramalhete de flores, um vestido, uma bijuteria, sei lá, algo que me desse prazer, eu estava profundamente mortificada, apática com tanta tristeza. Então senti frio, um frio intenso. Dez horas, o sol estava radiante, um atleta usando tênis, calções e camiseta regata passou por mim suando por todos os poros; um homem à minha frente tinha o paletó jogado às costas e, naquele exato momento, afrouxou o nó da gravata com um profundo suspiro de alívio – e eu tiritando cada vez mais, era como se eu estivesse caminhando pelas geladas estepes da Sibéria, tive mesmo a impressão de ouvir lobos famintos uivando em solidões inóspitas. E quando tentei atravessar a rua, o susto: uma mulher idosa segurou-me pelo braço e aconselhou-me a tomar cuidado com uma ambulância que vinha em desabalada carreira. Voltei para a calçada, instantes depois o veículo passou, chispando. Sorri incrédula: puxa vida, mas não era uma ambulância e sim formidável urso polar fugindo – para onde?
Abandonei as reflexões com um piparote de angústia e entrei numa butique com o firme propósito de adquirir um casaco. A vendedora olhou-me incrédula, eu ali, trêmula de bater os dentes e o termômetro numa das paredes marcando 34 graus à sombra, fez menção de dizer alguma coisa de caráter pessoal, refreou-se a tempo, sorriu profissionalmente e, num gesto de mão pedindo que eu aguardasse um momentinho, foi procurar o gerente. Observei-os enquanto conversavam – a moça voltou e me disse que iria procurar alguns agasalhos no depósito, certamente haveria de se encontrar peças do último inverno, voltou a sorrir-me com sentimento de estranheza e subiu uma escadinha em caracol até o segundo andar. Fiquei por ali olhando as mercadorias, os braços cruzados sobre os seios, até a vendedora retornar sobraçando uma montanha de roupas de frio. Mas então eu estava suando em bicas. Ela encarou-me, espantada, e me aconselhou a procurar um hospital. Concordei com a cabeça, saí da butique sem comprar coisa alguma e, assim do nada, tive a revelação: minha mãe estava tentando se conectar com meus pensamentos. “Hoje à noite, mãe”, eu murmurei, “nos falaremos hoje à noite, tá bom?” Minha mãe pareceu me ouvir, pois me vi tomada de uma grande sensação de paz. Estava tão bem espiritualmente que fui para a Santa Casa e, para o espanto geral, vesti meu jaleco e me entreguei ao trabalho.
Minha mãe entrou em contato comigo ao amanhecer e me contou o segredo terrível através de um sonho. No sonho eu era uma menininha com um vestido cor-de-rosa que corria descalça por uma plantação de milho e brotava-me no corpo um suor sujo, emplastado de excremento de cavalo. Uma exaustão incompreensível pesava-me nas pernas, doíam-me as costas, as orelhas e o couro cabeludo. Eu corria velozmente, a cada instante olhando para trás com um terror absoluto dilatando-me as pupilas.
Deixei o milharal e vi distendendo-se à minha frente um vasto campo arado para o plantio de gergelim. Corri pelo terreno amanhado até que minhas pernas baquearam – caí de joelhos e vi, horrorizada, que me escorria pelas pernas um manancial de sangue. Comecei a cavoucar a terra úmida, sentindo seu cheiro muito peculiar de líquido amniótico e rezando a um Deus feroz que me transformasse em uma semente, uma sementinha que não precisava ser de gergelim, quem sabe um grãozinho de erva daninha, tão pródiga naquelas paragens, mas por clemência me desse o consolo de um abrigo uterino.
Cavouquei quanto? Uns vinte ou trinta centímetros de profundidade? É difícil dizer, talvez a respostas estivesse na extensão dos ferimentos nas mãos provocados pelas pedritas, gravetos e raízes das plantas bravias que recentemente tinham lutado heroicamente contra os tratores. O sangue nas mãos tornou-me mais frenética, mais obsessiva. Cavouquei, cavouquei – tudo em vão. Aquela terra mole começou a se mostrar hostil, terra gosmenta, terra fétida, terra informe como corpos de afogados há dias. E sobre mim, ali ajoelhada, a sombra do medo começou a se tornar cada vez mais espessa e agressiva. Uma sombra medonha, devoradora. Pus-me de pé e reiniciei a carreira, buscando forças apenas nas leis da sobrevivência. Passei por uma plantação de trigo já maturado, seus iridescentes cachos na luminosidade prateada do dia carregado de nuvens grossas, grávidas de tempestade; novo campo preparado para o plantio de soja – e logo após ultrapassá-lo vi-me confrontando com uma muralha de árvores: uma verdadeira selva fervilhando de vida. Ouvia a algazarra de seres invisíveis. Hesitei apenas por um instante, uma partícula de minuto, átimo de segundo, tempo suficiente para compreender que a selva era o meu refúgio, não podia absolutamente temer o desconhecido que se apresentava no emaranhado de cipós metamorfoseados em serpentes – o verdadeiro perigo estava logo atrás de mim, logo ali!
Penetrei na floresta, mãos em guarda livrando minha passagem da densidade dos galhos flexíveis, teias de aranha e obstáculos não táteis: gritos de aves, macacos, grunhidos de bichos sobrenaturais, o fragor das folhagens sendo chicoteadas pelo vento.
Caminhei pela selva tropegamente, respirando resinas arborícolas, enchendo o peito de odores pestilentos vindos do solo – sentia sob a planta dos pés a maciez gelada de folhas pútridas, do húmus vivificante, da fauna rastejante: um número incontável de insetos e vermes esmagava-se às minhas passadas, transformando-se em pegajoso bálsamo às machucaduras que tinha das pontas dos dedos aos tornozelos. Súbito, eis que à minha frente descortinou-se um paredão vertical recoberto por luxuriante vegetação e do seu topo, no centro, despencava uma cachoeira cuja vazão de águas afigurava-me bilhões de hectolitros por segundo. Dei-me conta, só então, que já não havia vestígio de som – tudo era silêncio: nenhum alvoroço perto ou distante de símios, o barulhinho do trincar de um galho tenro, nada, apenas o silêncio pavoroso envolvendo as árvores gigantescas e o fluxo da cachoeira. O céu carregado de nuvens céleres, escuras, às vezes rasgava-se em relâmpagos calados, órfãos dos trovões.
Uma árvore no cimo do penhasco foi atingida por um raio, tombou na cachoeira, rolou agitada água-abaixo – e o silêncio tumular persistia. Um silêncio de tão intenso era estranhamente, incompreensivelmente pegajoso, uma viscosidade de mormaço tão absurda que meu corpo sujo de terra enlameou-se por completo – então corri pelo leito do rio que se formava na barra da cachoeira, um rio raso e límpido, eu via perfeitamente ao fundo as pedras negras, brilhantes, em tamanhos variáveis, todas apresentando arestas ou pontas cortantes. Invadi a cachoeira e aquilo foi como senha para que tudo à minha volta retornasse à sua origem delirante: o mundo desabou num único e apocalíptico estrondo e as águas despencando-me pelo corpo subitamente se transformaram em afiadas espadas, algumas retas, outras recurvas, e começaram a me ferir – até que senti o corpo de minha mãe envolvendo o meu corpinho trêmulo enquanto murmurava em voz de consolo: “Acabou, filhinha, não tenha mais medo, matei o monstro”. E compreendi: minha mãe tinha matado meu pai quando o flagrou me molestando sexualmente – eu havia bloqueado a memória dessa terrível experiência, como mais tarde me explicou um colega formado em psiquiatria.