Sob a sombra da dor (parte ll)
A boca da filha no retrato se movia lentamente, dona Geralda retirou os óculos e enxugou as lágrimas, esfregou as lentes contra o tecido da roupa e voltou a se concentrar no semblante de Adelaide. Aquelas palavras estavam em linguagem estranha, não era possível entender. Para o abundante desespero daquela mãe só podia ser sinal de agouro, coisa ruim acontecendo e usando de código ela tentava se comunicar. Em um suspiro profundo aquela mão de rugas expostas sob veias salientes retirou novamente os óculos embaçados e conteve o rio de lágrimas, disse algo silencioso com a mão no peito, olho diretamente no olho da filha e saiu apressada para o quarto. Sobre o velho armário de madeira que servia como guarda-roupas, retirou uma sacola de nylon, suas alças eram coloridas verticalmente e seu corpo também tinha cores, mas expostas na horizontal. Fora comprada no dia da feira de santa Luzia quando atravessaram a madrugada até o sol ficar lá em cima, para chegar ao Riacho dos Coqueiros, a promessa para curar o Dordói do marido que não enxergava há uma semana fora cumprida, mas antes a prece havia sido atendida. De carro ela sabia como chegar à cidade, lembra que olhava para o motorista através da claridade do vidro e via a tranqüilidade como seguia a estrada, era uma reta de não acabar mais, depois virava para esquerda e subia uma ladeira que rumava à direita, passava numa ponte e avistava uma casinha lá longe, ali era possível notar que havia bois pastando, mas era distante da cerca. Dentro da sacola depositou algumas peças de roupas, um bolo de notas que guardava no fundo da mala enrolado em um lenço e o rosário de Nossa Senhora para pedir proteção, jogou um gole de café na garganta e colocou a cara na janela, girou o pescoço em todas as direções e nada de suspeito foi detectado, saiu no terreiro, jogou milho as galinhas, espantou um Gavião que espreitava os pintos e tomou coragem, voltou Lá dentro puxou a sacola e fez o sinal da cruz, amarrou a porta da cozinha no prego do lado de fora e seguiu aquela estrada, antes de abrir a cancela virou-se para trás e olhou tudo aquilo que ficava, doía no peito, os pés de frutas plantados por ela e as plantas de flores a beira da cerca, admirou o Umbuzeiro carregado de pequenos frutos e uma algazarra de Maritacas que voavam em sintonia . Mas só lhe interessava encontrar Adelaide, que ficasse tudo nas paredes chamuscadas da memória fraca, já que talvez fosse o ultima imagem daquele lugar encantado, o marido não aceitaria sem vingança, se voltasse sujeitaria a ira e os caprichos dele, as tapas, os pontas-pé e os cabos de piratas que lhe rendiam galos na cabeça. Pisou forte fazendo buracos na areia fofa, seguia sem rumo, apenas com o nome da cidade na boca e a filha na cabeça, notava que ali passaram cavalos, cachorros e carros, uma marca de pneu recente estava centralizada na estrada. Virou a cabeça para ouvir o que o vento trazia, assuntou por alguns minutos um canto afastado da Siriema e seguiu seu caminho...Continuação