A incógnita do diabo

Meu gato preto e branco, possuía uma índole desafiadora, mas aqui diferentemente do gato preto de Poe, os espíritos eram trocados. Peguei-o numa doação, agora se pudesse voltar atrás o deixaria a mercê do destino, já devia ter desconfiado dos seus miados cortantes e grosseiros ao pegá-lo para levar pra casa, ainda ganhei um saco de ração, aquela maldita comerciante já sabia das capetices do bichano.

Mas não é que no começo gostei do bichinho, apesar de macho tinha costumes meio que afeminados, ainda pequenino não usava a areinha se estivesse toda suja ou fedorenta, fazia miadinhos me agarrava as calças e me levava em direção ao pote de areia, logo entendia, rapidamente limpava e com o mesmo ímpeto ele já se aliviava.

Um dia não tinha nada pra comer, sendo assim o gato também não tinha, exceto umas sobras de fubá e arroz. Achei num canto perdido da casa um real, comprei batidão pro bichano, mas quem disse que comeu? Então tentei fazer uma espécie de mingau com o resto de arroz que tinha, mas também não comeu. Ficou uma semana sem comer, enquanto eu comia os restos de fubá.

Quem disse que se alimentava de ração vagabunda? Quase vomitava ao mesmo tempo que comia, a cabecinha redondinha até inclanava-se pra cima e via-se uma bola de ração lhe raspar pela garganta. Enquanto não dormia no centro da minha cama de casal e me empurrava com as patas traseiras, não parava de miar, sufocando me com aquele miado atroz, grosseiro, como se fosse um eco da voz de um demônio que se encontra no fundo de uma caverna.

Passei a tomar calmantes de várias gêneros, mas mesmo assim não conseguia escapar daquelas duas bolas amarelas gigantes e brilhantes, com esgar de ódio e desdém mais parecia uma face humana a me encarar a toda hora do que um gato. Arranhava e furava todo o meu colchão com seus lençóis, a cortina já era um trapo e o sofá, bem este parecia que nem forma sequer mais tinha.

Não bastava lhe cortar as unhas, cresciam a todo o momento. Um dia enfurecido ameacei lhe arrancarem todinha, só que numa espécie de vertigem ou alucinação que tivera, vi garras de tigre brotarem de seus dedos e imediatamente o soltei e fui ao bar tomar uma cachaça. Comecei a não limpar mais seu canteiro higiênico, parece que de pirraça saia cagando por toda a casa especialmente em meu quarto, deixando nas paredes suas marcas de patinhas de bosta e me olhando com aquele olhar de desdém. Fora as noites em claro que ele não me deixava dormir, devido aquele miado alto e grosseiro ao mesmo tempo em que se jogava contra a porta do quarto se não o deixasse entrar e se deitar comigo.

Tentei de tudo, coloquei anúncios no jornal, nos postes do bairro, na internet, ofereci até um ano de ração e uma quantia de dinheiro, mas ninguém quis o gato, pois todos que iam visitá-lo para dar uma olhadinha antes de pegá-lo, não falavam mas se incomodavam com aquele olhar de desdém da criatura. Sem falar que seu hálito era insuportável, parecia que vivia abrindo a boca de propósito a todo momento.

Um dia irritadíssimo subi correndo ao andar de cima e me tranquei no meu quarto, o bichano soltava aquela estrondosa voz, parecendo evocar os males do inferno, não resistia tinha que abrir a porta, antes que algum vizinho chamasse a polícia e lá ia ele se espreguiçar ao centro da cama, lambia todas as patinhas especialmente se eu tentava tocá-lo, na tentativa de fazer um carinho, aí é que ele se banhava em sua baba como ato de repugnância ao cheiro do meu contato. Sem contar os dias que ele saia correndo pela casa, todo curvado parecendo uma lombada com os pelos espichados, como na tentativa de me caçar.

Minha paciência se esgotara, me trancava no quarto e ignorava seus miados de diversas formas possíveis, era foninho, ou som alto, tv ligava, tudo para ignorar o bichano e ter alguns momentos de paz, durante quinze dias ocorreram tais atos até que ele parou de miar com aquele som horrível, grosseiro que parecia evocar os males de outro mundo.

Já não se espreguiçava no centro da cama, não arranhava tudo o que era possível. Ah já estava me esquecendo, também já não tentava me expulsar do sofá com suas patas traseiras; vivemos assim durante um mês, até que um dia com aquelas bolas gigantes amareladas com uma linha extremamente tênue enegrecida, agora toda ocupada por um círculo negro e um leve sorrisso de escárnio, o bichano pôs a me enfrentar.

Corri para o quarto, mas não deu tempo de fechar a porta, ele entrou também e com suas garras de um tamanho anormal preparava-se para o ataque, com os pelos espichados como se tivesse levado choque, o animal intimidava me em direção à janela, tentei sair pela porta mas ele me cercava ao centro. Estupidamente na tentativa de pular da janela ele começou a me agarrar, arranhar. Sentia pedaços de minha pele e minha carne saírem, tudo ardia e jorrava sangue rubríssimo. Na tentativa de expulsá-lo voltei o rosto para traz em direção a botelha de vidro que poderia machucá-lo. Acabara de cometer o maior erro da minha vida, me atacara nos olhos, com anseio de chorar mas dominado pelo ímpeto de sobrevivência, corri sobre o telhado da varanda e cai no jardim, bati a cabeça numa pedra e desmaiei. Horas depois acordei com uma sensação abafada do sol do meio dia, minha pele toda ardia e sentia várias partes arrancadas. Pensei que estivesse desvairado ou sonhando, estava tudo escuro, passei a mão no rosto e abaixo dos olhos gosmas de sangue se fixavam em minha pele. Senti um hálito bafejar em minha cara, movia os braços a todos os lados, mas não conseguia pegar nada. Seguindo seu hálito encontrei a porta da sala pensava comigo mesmo:

-Por que meu Deus? Pelo menos com ele eu era bom, se não fosse eu adotar aquele miserável...

Ao entrar na sala tropecei em um objeto e caí de barriga pra cima, tentei levantar mas fui surpreendido por bruscos movimentos, meu corpo todo tremia. Daqui alguns minutos me encontro paralisado, escuto um miado tão doce. - Estou no céu? Cadê você, cadê você? (agora minha voz soava atroz e grosseira, como se eu fosse o pobre diabo escondido no canto de uma caverna). - Cadê você? Por favor venha cuidar de mim! Segue-se uma cena incompreensível:

Mergulhado na escuridão em pé sem sentir qualquer dimensão, escuto uns passos grosseiros em minha volta cada vez mais se aproximando, e uma leve risada aguda e sarcástica ao mesmo tempo em que um ferro afiado e grosseiro deslizava pelo ar, passava em minhas feridas. Primeiro, raspa uma das ausências de um pedaço do lado esquerdo da cintura, por fim cutuca em todos os meus profundos arranhões, logo em seguida sobe e desce aquele ferro gelado sobre minha nuca, o que acontece em seguida é indescritível:

Minha cabeça sai rolando e em frações de segundos uma sensação de desespero e de angústia pela separação de meu corpo, me leva a pensamentos alucidativos:

- Onde não há luz não há salvação. Cadê você Pandora? Por que não me trazes a esperança? Ela ria. – Maldita!

Sinto uma última ardência em meu corpo principalmente nas feridas, depois de algumas horas escuto aqueles mesmos passos grosseiros, só que agora sinto a botelha de vidro posta sobre meu corpo e uma mão gelada com garras afiadas e compridas fecha os meus olhos, sem que eu possa ao menos ver a criatura.

Nem uma vela para Dario eu tinha. O miado doce foi ficando cada vez mais distante, surdo perdendo a força e a forma, assim como eu já tampouco existia.

G M Menino
Enviado por G M Menino em 04/08/2016
Reeditado em 06/08/2016
Código do texto: T5718514
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