A estrela perdida

A criança vê um homem alto com um casaco longo, preto e aveludado. Sobre a cabeça um chapéu preto social e discreto; ao seu redor uma fumaça grosseira a se dissipar no ar, que vem de seu cachimbo. O homem de pés compridos e sapatos sociais senta-se contra uma pedra, mas logo prostra-se sobre a areia, e com um esgar sereno, tranquilo e pensativo passa a olhar para o céu envolto do hálito salgado do mar.

O ambiente todo nevoado lhe transmite uma sensação de aconchego e de dor.

– Está tudo bem, senhor?

O homem atordoado se assusta com aquela voz doce, mas inesperada. Friamente, com a tentativa de expulsá-la dali para não lhe incomodar pergunta:

– O que queres e o que fazes a esta hora da noite aqui, menina?

A menina senta-se ao seu lado.

– Eu é que lhe pergunto: o que fazes aqui a esta hora, senhor? Eu sempre venho aqui neste mesmo horário todos os dias.

– E o que vens fazer aqui?

– Venho olhar as estrelas. Você também não as acha bonitas.

Com a imensa vontade de expulsá-la dali, disse:

– Vou chamar o seu pai. Cadê seu pai, menina?

– Está no céu senhor. É uma daquelas estrelinhas.

1º encontro:

O homem de casaco longo e chapéu discreto, ao ouvir aquelas palavras instantaneamente se entristeceu, percebera que a menina estava ali por estar em sua semelhante condição a meditar e mastigar as angústias da vida.

Subitamente a menina desapareceu. O homem achou que ela tinha se entristecido com sua pergunta e com aquela névoa acinzentada, não a viu correr nem a andar em uma direção. No dia seguinte, querendo se desculpar pelo que dissera, voltou à praia. Desta vez apoiou as costas em uma longa pedra que situava-se a um metro de distância do lugar anterior em que estivera.

2º encontro:

Passado algum tempo, vencido pelo cansaço, preparava-se para ir para casa quando chegou a menina.

– Que fazes aqui a está hora, menina?

– Vim olhar as estrelas.

– Onde está sua mãe?

– Ela está recolhendo reciclados para termos o que jantar amanhã. Ela pediu para eu esperar na cabana, mas eu não gosto de ficar lá não.

– Cabana?

– Sim, fica a dois quarteirões daqui. Você vira à direita e segue reto. Fica na terceira esquina. De repente ela começa a cantar:

“Brilha, brilha, estrelinha,

Venha aqui me confortar,

Eu estou lhe esperando,

Vamos juntas brincar.”

O homem de casaco longo e chapéu discreto se sentia cada vez mais entristecido ao se comparar com a menina. Ele que tinha de tudo mas era um reclamão, rabugento e implicante, sentia-se um pobre coitado, se comparado com a menina. Embora ela não tivesse as coisas materiais que ele possuía, via e sentia a essência da felicidade nas simples coisas da vida, admirando a natureza e contagiando o ambiente com uma tênue linha de alegria rutilante e alucinante.

– O que gostaria de ganhar de presente?

Quando eu era criança amava ver o Sítio do Picapau Amarelo. Você poderia dar a fita pra eu assistir?

– Como assim? Você já viu Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato?

A menina titubeando disse:

– Vi pela janela de uma casa.

O homem pôs-se a desconfiar. Achou que alguém lhe queria tramar... Antes de terminar seu raciocínio a menina disse:

– Olhe aquela estrela cadente como… olhe!

Não tinha dado mais tempo de ver a estrela cadente. O homem estava perdido em seus pensamentos, agora confusos e entrecortados.

– Olha lá, senhor, aquela estrela brilhante. A mais brilhante de todas sou eu; aquela ali do lado esquerdo é minha mãe e do lado direito, meu pai.

– Vocês crianças têm a imaginação tão fértil... Cadê sua mãe?

Novamente a menina desapareceu no meio da névoa acinzentada. O homem de casaco longo e chapéu discreto começou a achar que estava insano de vez e passou três dias diretos a se embebedar.

3º encontro:

Passados quinze dias voltou ao mesmo local, e lá vinha a menina saltitando, toda alegre com seus trajes aparentemente apodrecidos. Nos dias anteriores reparara que sempre estava suja de terra, até nos ouvidos.

– Como vai, senhor? Admirando o céu novamente?

– A esta hora não era para estar dormindo, menina?

– Não tenho sono não, senhor. Olhe aqui, isto é uma recordação minha, uma recordação de amiga, um dia irá entendê-la. Espero que brevemente.

Assim ela lhe deu uma boneca simples de pano com os olhos esbugalhados, um sorriso de costura e os fios de cabelo marrom dourado também de pano. Ela lhe deu um beijo e um abraço e saiu saltitando em meio a névoa acinzentada cantando a mesma canção:

“Brilha, brilha estrelinha,

Venha aqui me confortar,

Eu estou lhe esperando,

Vamos juntas brincar.”

Por um instante ele hesitou em jogar a boneca na areia, mas sabendo que isso entristeceria a menina, principalmente se ela encontrasse a boneca jogada em algum lixo – o que não era muito difícil – ele a colocou debaixo do braço e seguiu para sua casa em um bairro rico da cidade.

O homem de casaco longo e chapéu discreto voltava constantemente ao mesmo local. Passara um mês que já não via mais a menina e, mergulhado num sentimento de pavor e angústia ao pensar que algo lhe acontecera, foi até o endereço da cabana que ela lhe dera.

Seguiu o mesmo endereço que ela lhe tinha falado, só que em vez de uma cabana encontrara um casarão com um exuberante jardim na entrada, adornando o contorno do portão cor de cobre. Ficara uns instantes pensando e concluiu que estava realmente louco de vez.

De repente, uma menina mirradinha, de cabelos dourados veio correndo em sua direção:

– Olhe, mamãe, olhe, achei minha boneca.

Em um ímpeto a menina tomou-lhe a boneca das mãos e lhe deu um forte e inesperado abraço.

– Muito obrigada, muito obrigada!

A menina seguiu correndo em direção à mãe, que estava empurrando um carrinho velho enferrujado, cheio de recicláveis dentro. Sem dizer nada, ele deixou a mãe e a menina seguirem seu caminho. Depois de alguns minutos perguntou ao carteiro que ali passava naquele instante:

– Você saberia me dizer quem mora aqui, senhor?

– Ah, pelo que eu saiba a casa está à venda. Desde a morte de uma menina mirradinha e feliz igual àquela que o senhor acabara de entregar a boneca. Sempre que eu vinha aqui entregar as cartas, ela me recebia com tanta alegria, com um sorriso largo no rosto e sempre via ela mais aquela menina que o senhor dera a boneca a brincarem aqui nesse jardim. Agora ela é uma estrelinha. Que Deus a tenha.

Realmente ela era agora uma estrelinha. Assim o homem saiu a caminhar com a lembrança no coração daquela voz fina e doce a cantar:

“Brilha, brilha estrelinha,

Venha aqui me confortar,

Eu estou lhe esperando,

Vamos juntas brincar.”

No dia seguinte procurou a menina a quem dera a boneca. Deu a ela e sua mãe uma casa (a casa da estrelinha). Dentro do quarto da menina (o quarto que pertencera a estrelinha) pusera inúmeras fitas do Sítio do Picapau Amarelo. Como gratidão pelo que a menina lhe ensinara e renovara sua vida, especialmente sua alma.

O homem de casaco longo e chapéu discreto, todas as noites deitado sobre a areia passou a observar aquela linda estrela, que tinha a luz tênue mais rutilante. E encontrou a verdadeira felicidade nas coisas mais simples da vida, as quais antes passavam desapercebidas, mas que agora eram essenciais para sua alma.

G M Menino
Enviado por G M Menino em 02/08/2016
Reeditado em 06/09/2016
Código do texto: T5716266
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