DOIS LADOS

Estou aqui para contar-lhe uma história. Não vou dizer se é uma narrativa triste ou alegre, porque talvez os meus julgamentos não lhe sejam confiáveis. De inicio, basta que saiba o quanto me dediquei a nossa personagem. Fiz o meu melhor e me orgulho dele, embora não deva elogiá-lo, pois não sou imparcial e não seria correto. Deixarei que você o faça se sentir que deve. Também nesse momento não direi quem sou. Prefiro assim. Influenciaria a sua percepção sobre os fatos essa informação. Bom, vejamos... Essa é a historia de Erasmo.

Erasmo nasceu numa manha de inverno de 1992. Precisamente no dia 9 de agosto. O país estava em festa. A equipe masculina de vôlei conquistava o inédito ouro olímpico. Era o filho único de seus devotos pais, Mariana e João Roberto.

O casal proporcionou ao pequeno bebe um ambiente harmonioso e embora não fossem ricos jamais faltou ao filho o suficiente para uma vida confortável e feliz.

Mariana ainda hoje relembra com nostalgia esse tempo de tantas alegrias. Os primeiros momentos da maternidade, os cachichos loiros do filho, seu sorriso eternamente cativante, a emoção das primeiras palavras. Curiosamente foi lua. Ou melhor, “iua”, palavra pronunciada enquanto apontava o satélite platinado no céu com seu gordo dedinho. Porque não foi “dada” ou “mama” como normalmente as crianças fazem não deixa de ser um mistério. Também era estranho o porque ele não engatinhou, mas logo já ficou de pé e começou a dar os primeiros passinhos. A avó do menino disse que era normal e ai já intuiu que o menino seria uma criança precoce. O tempo provou o quanto estava certa.

De fato o pequeno Erasmo era especial. No sentido de ser diferente porque para os pais todos os filhos são especiais. Havia uma “luz” sobre o menino, algo que o acompanhou por toda a vida. Já com 3 anos e na creche no qual passava meio período para que os pais pudessem trabalhar ele se destacava. A mãe ouviu orgulhosa a cuidadora dizer que seu filho se solidarizava com outras crianças ao vê-las chorar e como forma de consola-las ele oferecia a elas a sua própria chupeta. Era um comportamento atípico para tão tenra idade garantiu as professoras. Melhor assim, era bom que seu filho se sentisse adaptado e tivesse amiguinhos - pensou Mariana.

Aos 4 anos o menino já sabia ler (foi impressionantemente autodidata) e também já sabia rezar todas as preces da missa dominical. Com 8 anos ajudava a mãe nas tarefas domesticas, era responsável, educado, atencioso e tinha muitos amigos na escola. Com 10 anos ele já se aventurava a ler literatura brasileira e tinha boas notas no colégio. No aniversario de 11 anos pediu aos parentes que em vez de comprar presentes usassem o dinheiro para comprar e doar ração para uma ONG que cuida de cães abandonados. Erasmo sempre adorou os animais.

Com 12 anos ele foi campeão da Olimpíada de Redação da biblioteca da cidade. No mesmo ano foi campeão de natação do clube no qual o pai o matriculou , começou a estudar inglês e ainda recebeu uma medalha por mérito na feira de ciências da escola por desenvolver um projeto de construção de casinhas de cachorro feitas com garrafa pet e papelão.

Os pais eram puro orgulho de seu único filho. Com 15 anos Erasmo apresentou a eles a sua primeira namorada, uma menina ruiva que ele conheceu na natação. Com 17 anos tornou-se campeão estadual de natação e passou em terceiro lugar no vestibular para pedagogia numa faculdade publica. Com 22 anos o rapaz já estava formado, tinha um bom emprego, muitos amigos, era noivo de sua segunda namorada (que assim como ele também estudava pedagogia) e tinha planos de financiar um apartamento.

Eu disse que não deveria elogiá-lo, mas parece claro que Erasmo se destacava até ali em diversos aspectos: bom filho, bom amigo, bom profissional, inteligente, esforçado, responsável, talentoso e um líder nato. Enfim, tinha luz própria e teria um futuro brilhante.

Com 23 anos veio a prisão. Ninguém acreditava. Segundo a Policia Federal começaram a investigá-lo dois anos antes a partir de uma denuncia anônima. Ele era acusado de formação de quadrilha e chefiar um esquema internacional de distribuição de imagens de pedofilia infantil. Quando ele foi levado confiscaram diversas imagens e até mesmo vídeos no qual ele participava passando a mão e pedindo que crianças de 3 a 7 anos tirassem a roupa.

Foi um choque para a família e os amigos. Só conheciam o brilho da natureza do rapaz. Não pensavam que toda história pode ter dois lados e que nos jogos do destino nada é tão “preto no branco”, pois o mal pode surgir do bem, assim como o contrario. Eles, ingênuos, sequer desconfiavam que o jovem era manipulado por mim. Devo apresentar-me agora. Sou a Loucura. Estive presente o tempo todo embora não notassem a minha existência.

Lanço a você algumas duvidas: Será que o lado bom de Erasmo estaria ali se eu não estivesse com ele? O brilho intenso não seria uma forma de compensar ou confrontar as sombras que estavam a espreita? Devo elogiar minha criação? E principalmente: Onde esta a loucura em você se todos tem ao menos dois lados?