Legado de Sangue - O Princípio
Vale vermelho.
― Assassina! Assassina! – gritou uma jovem e nova moradora de uma região.
Era outono. Num pequeno distrito no norte do estado havia muitas pessoas e animais que figuravam uma comunidade bem amistosa, alegre e tranquila, pelo menos aparentemente. As casas tinham um toque de beleza dificilmente visto pelas redondezas. Havia um lindo rio que circulava pela região e sua água servia de abastecimento para as famílias e fazendas. O nome do lugar era Vale Vermelho. Era chamado assim em razão de um assassinato em massa ocorrido há décadas atrás, mas que publicamente se explicava a razão deste nome pelas belas árvores de folhas vermelhas, nascidas depois do massacre. A coloração era intensa e ficava ainda mais forte no outono. Em relação às mortes passadas, os assassinos jamais foram encontrados. O vale também tinha uma má fama quanto a místicos e feiticeiros. A época era ainda era conservadora e o passado escondia muitos segredos encobertos pela aparente beleza do local.
A estação presente era a favorita de um dos moradores e descendente de um dos fundadores daquele distrito. Vivia ele, seu nome era David.
David era um rapaz amistoso e trabalhador. Cuidava da fazenda de seu velho pai, onde o mesmo vendia os frutos de sua posse para os outros moradores da comunidade. Ele era um jovem solteiro, com boa aparência. Tinha olhos claros e seus cabelos ondulados escorriam até seus ombros. Seus traços físicos davam inveja a qualquer rapaz da comunidade, embora não admitissem. Havia poucas mulheres e a disputa era bem nítida pelo coração de uma delas.
Uma tarde, David estava perto do Rio do vale que ficava bem próximo a suas terras. Ela vira uma moça muito bela caminhando por ali, mas que não parecia viver na comunidade. Ele nunca tinha visto uma moça tão delicada, porém misteriosa. Ela estava trêmula e parecia estar se escondendo.
― Ei, senhorita! Como vai? – gritou David.
― Quem é você? Não me perturbe - disse a jovem moça.
― Você está nas minhas terras. Podia ser mais educada.
― Já estou me retirando. Essas terras imundas me dão coceiras - disse a jovem moça de forma ríspida.
A Moça se chamava Isabel. Pertencia a uma família de curandeiros e místicos. Eles estavam vivendo na comunidade há poucos dias e suas práticas eram restritamente proibidas em qualquer lugar que fossem. Era uma época conservadora e esse tipo de hábito era visto como afronta aos preceitos divinos e crenças da região. O uso de feitiços sempre foi associado a coisas malignas, de alguma entidade ou espécie obscura.
― Ei! Volte aqui! Não se apresentou! – disse David
― Meu nome é Isabel tá bem! Satisfeito? – disse Isabel
― Bom, me chamo David! Você é nova aqui? O que estava fazendo por aqui?
― Obviamente sim, mas não quero perder tempo com você! Já vi que esse povo é conservador e medíocre.
― Sua mão está suja de sangue? Sim, é sangue. Machucou-se?
Após David dizer suas palavras, Isabel caminhou em direção a sua casa, o deixando falando sozinho. Ela estava com suas mãos e vestidos manchados de sangue e David percebeu somente quando ela se virou para ir embora. Era intrigante aquela cena. Isabel era uma jovem formosa, com cabelos castanhos e tinha uma pele muito bonita, mas tinha uma expressão de dor e incômodo.
― Interromperam-me de novo! Maldição! Não tenho muito tempo – disse Isabel inconformada para si mesma.
Isabel era órfã de pai e seus poucos parentes estavam sempre ocupados na recente casa, produzindo seus chás e ervas peculiares. Nunca lhe deram a devida atenção, fazendo-a ser sempre uma pessoa amarga e fria, principalmente sua mãe. Isabel também utilizava alguns artifícios que aprendera com sua família, embora não possuísse a magia em seu sangue. As ervas poderiam proporcionar inúmeros efeitos, mas sem muita orientação, nada conseguia fazer para remediar seu problema, já que ela continha um segredo muito complicado para ser revelado.
Ela tinha dores na barriga, pois amarrava na cintura várias faixas de tecido com o objetivo de esconder sua difícil gravidez. Também usava vestidos largos para ajudar no disfarce. Ela já estava grávida de sete meses e essa mentira estava a amedrontado. Não era permitido que uma mulher na idade dela e sem marido pudesse ter um filho. Ela tentou inúmeras vezes um aborto desde que descobriu a gravidez, mas sempre fora interrompida. Sua última tentativa foi perto de algumas árvores próxima ao rio. Ela sangrava muito, mas o bebê ainda mexia em seu ventre.
― Tenho que fazer mais uma tentativa. As divindades nunca permitirão uma criança nessas condições. Não há feitiços que possam destruir o meu próprio erro. Por que será que essa maldita criança não morre? – questionou-se Isabel.
No próximo mês, numa madrugada qualquer, Isabel estava deitada em sua cama no sótão, sentindo fortes dores em decorrência das faixas que apertavam sua barriga. A dor era terrível e ela teve que tirar as faixas no mesmo instante. Alguns segundos depois, ela molhara toda sua cama. O bebê estava prestes a nascer. Isabel não podia gritar para não acordar sua mãe, Rose, uma mulher ranzinza e muito arrogante. Somente sua mãe estava em casa. Seu tio e prima, que moravam com elas, não apareciam há dias. O tio tinha ido procurar emprego no distrito e demoraria a voltar e sua prima havia ido atrás dele, supostamente, após o dia que ela fora ao rio tentar o aborto.
Isabel enroloua as faixas que há pouco havia retirado de seu corpo e colocou na boca.
― Por que agora? Agora não! – Pensou Isabel sentindo fortes dores.
Isabel deitou em sua cama novamente, amarrou seus pulsos na cabeceira e esperou que o nascimento ocorresse. Ela fazia muita força e o bebê estava prestes a sair. A dor era insuportável. Após alguns segundos, junto à cabeça da criança, saía muito sangue, mas o bebê estava vivo. A prematura criança havia saído enfim e Isabel, muito fraca e nervosa, a olhou com muito ódio. Após alguns segundos, ela pegou uma tesoura que ficava no criado mudo ao lado da cama. Não piscou e nem hesitou.
― Não será essa semente que destruirá meu futuro! – disse Isabel ao enfiar a tesoura no peito da criança.
O nascimento da criança parecia ter gerado mais raiva e rancor para Isabel. O bebê não chegou a dar o primeiro choro. Antes que ela pensasse que seu problema estaria resolvido, outra dor forte surgiu em seu ventre.
― O que será agora? Ai! Meu Deus! – disse Isabel.
Com fortes contrações novamente, Isabel fez força para que algo saísse de dentro dela. Ela não podia imaginar que seu problema não estaria totalmente resolvido. Outro bebê estava para nascer. Fazendo muito esforço para não fazer barulho, a criança começa a nascer deslizando próxima ao sangue e o corpo do outro bebê. Ambos eram muito pequenos. Isabel ficou muito fraca e desmaiou após tanto esforço. A criança não parava de chorar.
Já na manhã seguinte, o bebê ainda estava chorando. Isabel acordou ainda fraca e sem muita consciência. Ela percebeu a princípio que ninguém veio socorrê-la.
― Ai, Deus! Como farei agora? – disse debilitada.
Isabel se levantou da cama muito ensanguentada, deixando o primeiro bebê morto e o outro chorando. Ela caminhou até fora de seu quarto muito abatida, enquanto o sangue escorria no chão. Ao caminhar pelo corredor de sua casa, parecia não haver ninguém. Alguns objetos estavam caídos, revirados. Isabel acreditava que estava alucinando.
― Mãe? Sofia? – chamou com uma voz que quase não emitia som.
O incenso estava aceso e ela sempre ficava incomodada com aquele cheiro, ainda mais no estado em que estava. Ao se aproximar do quarto de sua mãe, ela abriu a porta.
― Mãe... Não... Eu... Não! – disse Isabel antes de cair.
Aquela cena a fez cair no chão e ficar inconsciente instantaneamente. Após um parto difícil, a perda de tanto sangue, uma cena daquelas poderia levar qualquer pessoa à loucura e o desespero. Sua mãe, Rose, estava morta na cama, com facadas no peito e um corte horrível no rosto. Sua expressão parecia pedir ajuda, mesclado ao olhar de dor profunda. Ela estava com um pedaço de vidro das mãos, parecendo ser uma maneira de se defender de algo ou alguém que queria mata-la, o que infelizmente aconteceu.
Nos minutos seguintes, começou a chover lentamente. Isabel estava caída no chão sem consciência e a criança continuava a chorar em seu quarto.