Como o diabo gosta
Sofia escutou o primeiro pio da coruja – o sinal. Olhou com aflição o marido dormindo ao lado. Dormira com os óculos enquanto lia. No quarto iluminado pelo clarão da lua entrando pela janela aberta a sua careca precoce tinha uma tonalidade cinza-pálida. Toda noite lia alguns Salmos antes de dormir – em voz alta para que ela também se comprometesse com a palavra de Deus. Depois dormia, geralmente de óculos, a Bíblia aberta sobre o peito.
Seu marido nem sempre tinha sido uma mosca-morta. Antes de se converter em fanático religioso faziam sexo com regularidade; comiam no restaurante do bairro; aos sábados reuniam-se com os parentes e amigos e assavam uma carne, bebiam cerveja e à noite iam dançar numa casa noturna de forró; o cinema no shopping aos domingos era sagrado – era um casal comum, sem preocupações financeiras, um feliz casal sem filhos. Até que um dia surgiram na casa dois homens de uma seita religiosa estranhíssima, radical, advertindo contra todos os pecados que supostamente ambos carregavam desde a criação do mundo e proibindo-os de praticar as coisas mais inocentes – sexo, por exemplo, segundo os pregadores, era um ato animalesco, sujo, nojento e só tinha aprovação divina se praticado com o intuito de procriar.
As visitas dos homens se tornaram regulares, seu marido passou a frequentar os cultos e a distribuir cestas básicas com os mantimentos da mercearia de propriedade do casal – o dinheiro começou a faltar, mas ele, seu marido, sempre tinha a frase-feita na ponta da língua: Quem dá aos pobres empresta a Deus. O marido levou Sofia, quase na marra, para conhecer o templo, forçou-a a fazer amizade com o líder doutrinário. Logo Sofia integrava o grupo feminino de oração que visitava as prisões.
E foi na prisão que Sofia conheceu Marola. Fascinou-a o jeito como riu ao ouvir as pregações religiosas; deslumbrou-a seus bíceps enormes cobertos de tatuagens de caveiras, serpentes e adagas sangrentas; encantou-a o jeito como lançou os olhos verdes em cima do seu vestido longo fechado no colarinho, a maneira rude como balançou um dedo em seu rosto e disse que embaixo daquele recato todo queimava uma vadia desesperada por carícias. Mostrou-lhe as mãos grandes e simulou apalpadelas em seus seios – suas colegas ficaram horrorizadas, Sofia se sentiu mulher em cada fibra de seu corpo.
Durante a semana Sofia sonhou com os cabelos louro-encardidos, grandes e desalinhados do prisioneiro. Começou a visitá-lo sozinha, olhavam-se nos olhos com desejo tão intenso que quando Sofia voltava para casa percebia a calcinha gosmenta aderindo-se ao vértice das coxas. Quando ele lhe propôs um encontro íntimo na cela, Sofia sentiu que tal coisa era não só natural como inadiável, era a sublimação de suas almas.
Meses sem conta, uma vez por semana, atingiam orgasmos inimagináveis naquele catre infecto da prisão. Conseguiu levar maconha para Marola buscando-a em bocas que ele indicava – trouxinhas devidamente escondidas em inescrutáveis orifícios do corpo. Usando o mesmo recurso, entregou-lhe um celular pré-pago. A conta bancária de Sofia ficou gorda – quase todos os dias a quadrilha de Marola fazia depósitos em seu nome.
Ouviu o pio da coruja pela segunda vez. Marola a esperava próximo da casa num carro roubado. A fuga que custara meses de preparação tinha sido um sucesso. A coruja piou pela última vez – “ao terceiro sinal, venha imediatamente”, ele dissera. Sofia saltou da cama, olhou seu marido dormindo de óculos, a Bíblia em cima do peito. Estava pronta, havia se deitado calçada de tênis, calças jeans e camiseta preta. Pulou a janela aberta e foi ao encontro de sua sina – a vida a partir de então seria como o diabo gosta.