A lenda de copas

I

Seu nome era Wilhelm. Já fazia dois dias que estava jogando whist no mais antigo cassino da cidade. Apostou a chacára que herdou do pai. E dessa vez ganhou.

Saiu com a letra. Quase caiu quando tentou descer as escadas do segundo andar.

Quando chegou em casa guardou a letra próxima ao peito e, soporizou.

Morava numa casa a duas quadras do outro cassino; recém-inaugurado. Ele soube da notícia através dum ex-colega de repartição. Trabalhou nela um ano atrás e, vivia apenas gastando o legado que seu pai lhe deixou.

Esse ex-colega apertou-lhe a mão e, perguntou-lhe como estava. Coincidiu com um ano precisamente que ninguém o tocava e perguntava-lhe como estavam as coisas.

II

Estando a caminho do cassino, queixou-se como pôde ter ficado tanto tempo sem pensar em si próprio. Quando pôde, enfim, ver o novo ambiente que passaria boa parte de seu tempo, reparou que era um alegre recinto. Essa alegria não sentia desde que perdeu seus pais. Ele estava só no mundo...

Foi oficial de gabinete de repartição. Por dez anos inenterruptos e sem faltas, quando há pouco tempo atrás, de repente, foi convidado por um conhecido já falecido, a ir visitar o novo cassino da cidade. Como não conhecia [ainda] a necessidade impulsiva que viria a dominá-lo em seguida, acabou indo com a maior disposição e alegria desse mundo.

A cada dia que passou em companhia das outras pessoas ali presentes, nesse ano, novos sentimentos lhe brotavam. Notou espantado que o cassino não tinha a vitrine principal negra, como os da maioria. Era transparente como o reflexo dos seus olhos, e também dos da crupiê, que estreando, embaralhava as cartas. Viu uma carta sendo misturada com as demais; era uma dama de copas. Ficou absorto nessa contemplação e, então colocou as mãos nos bolsos da blusa e pensou alheio a tudo aquilo. Depois disso, foi sentar-se no canapé, que a alguns metros estava da mesa de jogo. A crupiê trajava um libré vermelho. Diante disso ficou reflexionando a cabeça inúmeras vezes. Passou três horas vendo-na embaralhar as cartas em conjunto com um sorriso inexpressivo. Dado a hora, teve que voltar para casa. O jantar com certeza estaria aguardando-no na mesa. Teve a ideia de convidar a crupiê para ir com ele, mas esqueceu-se de ter trazido a carteira, e ela passaria a noite no local.

Quando chegou em casa a sopa já tinha se esfriado, entrementes tomou-na assim mesmo.

A empregada já tinha ido dormir em seu quarto. Terminada a janta, começou a ter início de dor de cabeça. Tentou afastá=la com a ideia de algo novo e arriscado. Mas sequer pôde ter um momento de vencedor. Compreendeu que ela era uma dor veterana, de longos tempos. Então resignou-se, ajeitou o melhor que pôde o feixe de cabelos anelados juntos ao travesseiro. Puxou o edredom até o pescoço e, aguardou o próximo dia.

III

Pela manhã acordou como de costume, e arrumou-se para a nova ocupação.

O seu coração batia descompassadamente, quando aproximou-se do cassino.

Na chegada logo viu a crupiê. Era a mesma que tinha visto no dia anterior. Ela tinha virado

a noite.

De súbito teve-lhe uma ideia, mas quando viu-lhe o olhar teve um leve estremecimento, bem parecido ao inexpressivo olhar dela.

Sentiu vontade de vomitar. E a mesma dor da noite passada, que velara junto a ele lhe sobressaltou. Voltou a amainar-se. O desconforto só retrocedeu quando ele pôde sentar-se no canapé, que também estava ocupado por uma idosa.

Durante duas semanas consecutivas, ao chegar ao cassino pela manhã, encontrava a crupiê

que tanto se afeiçoara. E ela saía do cassino logo em seguida. O único revés dele eram nas segundas-feiras, por conta da não abertura do local.

IV

Enquanto abotoava seu colete e, de sua algibeira tirava o relógio para verificar as horas, teve um estremecimento leve e íntimo: por que não pedi-la em casamento? [...]

Chegou na hora de costume, bem cedo. Passou a noite inteira no canapé, indiferente. Menos quando a crupiê preparava-se para sair. [Ele] levantou-se e foi de encontro à ela. Porém, um segurança que observou a cena, o interceptou. Acompanhando-no até a saída. Quando chegavam perto da saída, o vedeta ameaçou-lhe, de que não mais permitiria a entrada de tão estranho cavalheiro que não apostava. Em contrapartida, foi acordado que dali em diante começaria a fazer apostas. Deste modo pôde retornar a sala donde se encontrava. Ao voltar, reparou que ela já havia saído dali. Então, resolveu perguntar a uma funcionária aonde ela estava. Foi-lhe informado que ela já tinha ido embora. Foi procurá-la fora do recinto. Avistou-na na rua. Juntou forças e com um resto de coragem que a vida havia deixado-lhe, rumou ao ponto que a senhora e não mais crupiê, preparava-se para tomar o ônibus para sua casa. Ele, educadamente, interpelou-na. Desenvoltamente começaram, os dois a conversar. Por sorte, ela era simpática. Ele ficou sabendo que [ela] era viúva e, também mãe de dois filhos (pequenos). Contou-lhe também que trabalhava de madrugada para que pudesse sustentar a sua família. Por fim, seu ônibus chegou, e ela (um pouco) aliviada despediu-se [dele] com um tímido sorriso.

Na manhã seguinte ele chegou no horário costumeiro, lembrando-se do fato de que sua permanência no local estaria comprometida caso não apostasse. Então resolvera apostar algo; apostar tudo! E segundo seu pensamento chegou a conclusão de que se ganhasse, ganharia também ela, 'filhos' e um lar renovado. Por isso que no dia anterior, foi a uma casa de câmbio e fez uma letra com os bens que possuía.

Ao iniciar o jogo, ele tinha um trunfo. Era uma dama de copas. Nos lances iniciais começou bem; as duas primeiras apostas ganhou. Mas duas horas de jogo ininterrupto acabou perdendo todo o dinheiro a qual dispunha. Intrepidamente tirou do bolso do colete a letra. Colocou-a na mesa de jogo. Um riso irônico percebeu-se por entre um dos apostadores. Ele olhou mas não conseguiu definir exatamente o que via. Ouviu-se abafadamente um suspiro já não tão indiferente vindo da crupiê, e seu semblante ficou triste. Porém, se refez instantes depois quando teve que organizar as fichas da próxima rodada.

[...]Ele finalmente perdera. A sua dama de copas foi vencida pelo às de paus. Naquele momento sentiu uma estocada em seu coração, chegando-lhe a vibrar em sua garganta como

uma serpe agonizante.

Foi uma infeliz coincidência a que ela presenciou, sendo logo a da ruína dele. Já ele, podia ter morrido ali mesmo de aflição. Ainda mais contemplando o sorriso despeitoso dela. Era como se assinasse a sua derrocada. Sentiu a letra afundar mais um pouco em seu peito. Depois entregou-na à crupiê, que guardou-na num estojo. Levantou-se com a ajuda do destino, saindo dali diante dum destino que desconhecia. Agora estava a beira da falência financeira, como também mortificado. Seus planos ruíam sob seus olhos. Ele perdeu a chance dum novo e genuíno lar. Era como se sua alma fosse apostada para o nada. E para lá sua existência ia, em vão, num lance mal-calculado do jogo do destino.

V

Com um desfecho que já havia traçado, caso algo não ocorresse conforme o esperado, arquitetou na saída do cassino o lugar que ocorreria seu intento. Mas precisava sentir a sensação que mais lhe atrairia. Procurou e escolheu um beco, que ficava a poucos metros do cassino. Enquanto ia para o beco, repassou na memória tudo que viveu naquele breve período

como frequentador do cassino. [Seus] sonhos transformando-se em meras ilusões, a [sua] paixão que desabava num imensurável precipício (para de lá nunca mais retornar...), e a visão dela, que confortava-lhe, mas ao mesmo tempo colocava um ponto final na história, além de dar-lhe coragem para prosseguir com seu intento, e não causar mais problemas a ninguém.

Deu alguns passos, e apenas ela vinham-lhe ao pensamento. Era da força desse pensamento nutrindo-lhe, que nas curtas passadas pôde caminhar até o beco. Encaminhou-se por ele, no entanto estava escuro ao término dele.

[...]Lembrou-se que ela não se despedira dele. Apesar deles serem conhecidos. Isso o determinou a remirar-se para a luz que insinuava-se pela entrada do beco. Aprumou-se. Depois, tirou de seu colete uma pistola. E suicidou-se com dois tiros. Na verdade, foi apenas com um. Este o feriu inicialmente pela lateral da cabeça, indo o projétil parar doutro lado da têmpora. O tiro inicial fez parte de seu teste e, foi dado como experimento, já que não iria dar o término de sua vida a uma arriscada roleta russa. Não teria coragem de morrer se caso o primeiro tiro falhasse. Pagaria um preço psicológico terrível ao seu ver.

[...]Enfim, já estirado ao chão, sua alma, de certo que demorou para encontrar a luz. O canto estava penumbroso. E a poucos passos dali um feixe de luz, e mais um pouco o cassino, que devem ter sido a trajetória que seu espírito trilhou, de volta ao lugar que tanto empougara-lhe nesse — ilusório — período de sua vida. Despendindo-se em definitivo da crupiê que naquele instante trabalhava concentradamente, e suas mãos — estranhamente — trêmulas tocavam nas cartas maquinalmente. De tempos em tempos ela, discretamente, levava elas ao peito para convencer-se do que estava realmente sentindo.

Parecia sentir um leve e sussurrante toque no rosto, entre o intervalo duma partida. Então concentrou-se, afungentando por um instante tal impressão e, retornou novamente ao trabalho.

VI

Pela manhã, acharam um corpo ainda quente, e transportavam-no, quando passando pela calçada, a crupiê novamente preparava-se para tomar o rotineiro ônibus (que deixaria segura em casa), viu o corpo, e reconheceu-no. Arfou. Logo em seguida, pediu uma tênue licença para um dos enfermeiros da ambulância. Passou-lhes. E pôde sentir uma aliviosa sensação ao atravessar aquela funesta cena. Pensou, ao chegar ao ponto, naquele infeliz jogador; 'ele apostou aquilo que lhe era precioso, perdendo aquilo que lhe era seu, e o pouco de lucidez e esperança que restava em seus lindos olhos, como apostou também a sua alma'.

***

São Paulo,

28 de agosto de 2008

* Foi baseado no conto 'A dama de espadas', do escritor russo Pushkin.

Felipe Valle
Enviado por Felipe Valle em 18/07/2016
Reeditado em 18/07/2016
Código do texto: T5701125
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