Bomba relógio
Assim que transpôs a porta, o segurança sobressaltou-se com tão bizarra figura: as botinas amarelas, novas e rangentes, a calça dando pelas canelas, a camisa de brim ordinário, de xadrezinho vermelho e verde fechada no colarinho, o chapéu de palha orlado com mancha escura de suor, já deformado pelo uso – o segurança girou a cabeça para esconder o riso de troça. Danilo de nada se apercebeu – todo seu belo rosto, ainda imberbe, resplandecia de fascinação. Então era isso que chamavam de shopping? Vira muitas vezes na televisão, lá no sítio, mas assim, ao vivo, era uma coisa de louco.
De cara, viu-se em frente de uma vitrine apresentando uma imensidão de artigos de couro, assemelhando-se muito, muito vagamente, aos trajes usados no campo. Riu abertamente do absurdo daqueles chapelões pretos com enfeite prateado no lugar da fita. Que palhaço usaria aquilo? E aquelas botas ornamentadas com tachas, chapinhas nos saltos? Sem se dar conta adentrou a loja. Quanta coisa! Tudo aquilo que a princípio achara ridículo agora era puro encantamento. No meio daquela imensidão de artigos, viu umas botinhas femininas. Pôs-se de cócoras, pegou uma delas e mediu o tamanho com a palma da mão calejada. Uma jovem que tivesse pezinhos assim deveria ser a coisa mais mimosa do mundo. Então sentiu uma fragrância a envolvê-lo mais suave e delicada que a de qualquer flor do campo. Ao procurar a origem do perfume, deu com um corpo feminino ao seu lado. Ergueu-se de supetão, deixando cair a botinha. Olhou o rosto da moça: mais bonito do que o de qualquer artista de televisão. “Deseja alguma coisa?” ela perguntou. E Danilo decepcionou-se com a voz. Não porque tivera astúcia para perceber o desprezo mal disfarçado – o que o incomodou foi o tom de dureza que lhe lembrava o pai, um homem que nunca ria, sempre ríspido como se tivesse ódio eterno no coração. Danilo nada respondeu – virou-se e saiu.
Mãos nos bolsos, ele foi seguindo e só então prestou atenção às pessoas, a maioria adolescente como ele, todo mundo feliz. E todo mundo bonito. Duas mocinhas que vinham em sentido contrário ao passar por ele sorriram-lhe. Danilo não teve consciência da crueldade daqueles sorrisos e os correspondeu. Sabia-se bonito – puxara à mãe, uma nórdica de olhos de safira e pele de pêssego maduro, cujos retratos da juventude mostravam um rosto de Valquíria. Lembrou-se, repentinamente, que a mãe, como o pai, também não sorria e essa amargura a tornara muito, muito feia. Mas o universo de estabelecimentos e novidades e descobertas, ali no shopping, não dava margem para reflexões pessimistas. A cada loja estacava-se, extasiado. Numa de discos, parou embevecido por um longo tempo: fluía uma música erudita – com um meio sorriso de terna saudade recordou-se de que, quando pequeno, ouvia sua mãe cantarolá-la. Veio-lhe um nome à mente e ficou flutuando sem nenhuma raiz nas lembranças: Sibelius. Sua mãe fora uma mulher de muita cultura. O que será que a levara a casar-se com um homem rude do campo? Formulou a pergunta apenas por formular – já fizera isso milhares de vezes.
Um grupo de estudantes aproximou-se e um deles, intencionalmente, esbarrou-lhe deixando cair alguns cadernos. Danilo abaixou-se e os apanhou. O rapazinho não agradeceu a gentileza – entreolharam-se com sorrisinhos cínicos. – Onde é a festa junina? – indagou um garoto de óculos de grau e gargalhada explodiram. A constatação do desprezo o deixou magoado alguns minutos, mas acabou relevando, por jamais ter cultivado qualquer espécie de complexo, principalmente o de inferioridade.
Continuou a andar. Súbito, deu de encontro com a escada rolante. Ficou embasbacado. Observou as pessoas subindo e descendo e não atinou o porquê de elas agirem com tanta naturalidade, até mesmo indiferença. Aquilo era a maravilha das maravilhas. Incontinente, postou-se nos degraus deslizantes. O lento subir dava-lhe uma sensação de quentura no peito. Roda-gigante, disse a si mesmo, desembrulhando na memória certa passagem da infância, ele e seus pais passeando num parque de diversões, uma lembrança tão feliz que frequentemente aquela tarde mágica povoava seus sonhos durante a noite.
O segundo pavimento era tão fantástico quanto o primeiro. Encantou-se com uma loja de instrumentos musicais – um violino exposto na vitrine subitamente abriu-lhe as portas da percepção e aflorou à mente uma imagem que nunca, jamais, ultrapassara a barreira do inconsciente: seu pai tocando instrumento idêntico àquele em esmaecida manhã – um domingo? – e a mãe acompanhando-o com sua belíssima voz de soprano. Danilo àquela época deveria ter no máximo cinco anos e, sentado no solo de terra batida da sala da casa, brincava com um caminhãozinho de madeira. A imagem no cérebro era tão forte, tão reveladora, que entrou no estabelecimento para melhor apreciar o instrumento. Ficou muito tempo a olhar, embevecido, o violino. O mistério que unira seus pais se desfazia: ligava-os a afinidade musical. Tão sensíveis, tão impregnados do sentimento do belo na sua forma mais expressiva, como é que se tornaram seres tão machucados e tristes e brutos?
Devia estar a mais de meia hora namorando o violino quando levou a mão e dedilhou suas cordas, assim, suave, suavemente, doce, docemente. Então uma manopla envolveu-lhe o antebraço e uma voz dura, metálica, penetrou-lhe nos ouvidos: O rapaz que fazer o favor de não mexer em nada? Era uma voz ameaçadoramente educada, mas a mãozorra de torquês foi impelindo-o para fora da loja. Expulso, pela segunda vez expulso. Por conta do quê? Mas não fizera nada, absolutamente nada! Ele mesmo, Danilo, constatara que muitos fregueses tocavam nas peças em exposição, analisavam-nas, chegavam a testar-lhes a resistência. Mas ele, oh, ele não podia! Enquanto caminhava, foi sentindo uma raiva fina revolver-se em seu coração. Já não via encanto no shopping. Subiu escadas, desceu, enveredou-se por labirínticos corredores. Então sentiu fome. Apalpou os bolsos, sentindo a carteira com o dinheiro. Aproximou-se de uma lanchonete repleta de jovens comendo estranhos sanduíches e tomando Coca Cola. Veio-lhe um aperto na boca do estômago, uma dorzinha obscura, desconhecida. Não era por certo a dor da fome – era algo mais intenso, mais enigmático, mais complexo. Em pouco decifrou a causa daquela dorzinha aniquilante: era uma mistura de medo, raiva e timidez. Mesmo assim encostou-se no balcão, ao lado de dois rapazes usando brincos.
– Um pão com mortadela – pediu à bela jovem uniformizada que veio atendê-lo. Ela encarou-o, estupefata.
– Aqui a gente não serve essas coisas não, moço – disse.
Um dos jovens olhou para o outro e comentou: – Que babaca! – Voltou-se para Danilo:
– Não vai pedir uma cachacinha pra acompanhar?
Então outro sentimento, até aquele dia desconhecido, brotou no peito de Danilo – o ódio. Foi uma coisa repentina, como um vulcão vomitando lavas sem dar nenhum aviso prévio. Sentiu a garganta e boca inundarem-se de fel. E seu punho poderoso, acostumado ao laço e ao cabo da enxada, pôs-se a abrir e fechar em movimentos espasmódicos. Fitou o rosto do rapaz, visualizou-o no chão, o sangue a minar pelo nariz esmagado formando manancial no brilhante piso azulejado. Um silêncio pétreo imperou entre as pessoas próximas – aguardavam a possibilidade de um desfecho violento. Danilo sabia que aqueles dois moleques não seriam páreos numa briga – eles também sabiam: estavam pálidos, assustados. Quando os garotos fizeram menção de retirada, Danilo avançou com os punhos em riste e a confusão se estabeleceu. Um dos seguranças só conseguiu conter Danilo quando a luta estava terminada, os jovens desacordados no chão sangrando pela boca e nariz. O problema é que o cara havia sacado o revólver e não sabia bem o que fazer com ele – os seguranças tiveram permissão para o porte de arma fazia algumas semanas, em razão dos assaltos recentes às joalherias do shopping. Mas se o sujeito se atrapalhava com o trezoitão, Danilo sabia manusear muito bem qualquer trabuco, espingarda ou pistola, desde criança costumava caçar com o pai bichos vários – preás, capivaras, cotias –, abatia-os quase sempre com tiros certeiros. E mais: o segurança era franzino, atoleimado, não suportaria um corpo a corpo com Danilo. E não suportou. Danilo nocauteou-o, apoderou-se do revólver e começou a disparar aleatoriamente nas pessoas que corriam esbaforidas. O revólver tinha seis balas – seis corpos tombaram sem vida.