Oito Olhos
Desde que consigo me lembrar, os Müller sempre moraram no fim da rua. Vieram entre as inúmeras famílias de imigrantes alemães e se instalaram na casa mais antiga do bairro, talvez até da cidade.
A casa em questão era o objeto de desejo de minha mãe. Ela cobiçava tanto aquele imóvel que seria capaz de vender sua coleção de vinis _ rara e muito, muito preciosa _ só para tê-lo. Certa vez contou-me que, quando era criança, costumava ficar parada em frente ao portão da casa e passava horas admirando-a. Acho que ela ainda faz isso, mas agora é com pesar.
Para mim a casa não exercia fascínio algum. O que realmente me intrigava era seus moradores. Os Müller eram uma família estranha... Acho que a palavra que melhor os define seja mórbida. Todos eram antissociáveis, soturnos e, se quer saber a minha opinião, um tanto desagradáveis. Quase nunca saíam de casa, que permanecia sempre fechada e, se saíam, trocavam algumas palavras e partiam. A grama estava sempre aparada e a fachada da construção se mantinha conservada graças ao vizinho da frente, o único que entrava e saía da propriedade, além dos donos. Não sabia como eles pagavam por seus serviços ou como se sustentavam, já que ninguém saía para trabalhar.
Além do casal, lá também moravam a mãe do senhor Müller e o filho deles, o único com o qual eu conversava. Não éramos o que podia chamar de grandes amigos, mas nos entendíamos bem. Mateus era reservado, como o restante da família, contudo, ao menos tentava se mostrar simpático e, às vezes, atendia os meus chamados para jogar videogame ou fazer o que ele mais gostava: colecionar insetos.
Mateus era obcecado com isso. Reunia todo o tipo de material sobre insetos e já possuía uma coleção vasta deles boiando no formol em recipientes de vidro. Se lhe dessem trela, ele ficaria papeando sobre isso o dia todo, o que podia ser bem irritante.
A gente nunca imagina que o nosso vizinho possa ser um pedófilo, um assassino em série ou que o nosso amigo possa esconder um segredo terrível. Eu também não imaginava que a casa dos Müller ficaria em ruínas, nem que eles tivessem de se mandar escondidos. É, a gente nunca imagina.
Minha irmã faria sete anos no final de semana. Nossa casa parecia uma zona de guerra com amostras de decoração, convites sendo preenchidos e a voz estridente de minha irmãzinha, Eliane, ditando inúmeras ordens e mudando de ideia em seguida.
_ Quem você quer convidar, Ricardo? _ minha mãe perguntou a mim _ Acho que alguns dos seus amigos deveriam vir.
_ Por que ele tem de convidar? _ perguntou Eliane, indignada _ A festa é minha!
_ Não seja egoísta, amor _ disse minha mãe, _ seu irmão vai se sentir deslocado sem alguns meninos da idade dele.
_ E quem se importa?
Eu não estava a fim de convidar ninguém e ia deixar isso bem claro quando meu pai desviou os olhos da TV por um segundo.
_ Por que não convida aquele menino? O moleque dos Müller.
Minha mãe olhou-me com um sorriso satisfeito e, juro por Deus, achei que ela tinha pensado nisso o tempo todo, só aguardara outra pessoa sugerir. E como eu imaginara, o motivo principal era a casa.
_ Acho uma ótima ideia _ disse ela, toda animada. _ O menino só tem contato com você, ele precisa interagir com outras crianças. Ei! Por que não vamos agora mesmo convidá-lo?
_ Não, mãe. Se alguém vai convidá-lo, sou eu, e vou sozinho. Já não sou mais uma criancinha.
_ Nem pensar. Imagine se eu ia perder uma oportunidade de ver a casa deles! Agora, pegue um dos convites e...
_ Sem chance, mãe, esses convites são pra criança _ falei enquanto pegava um e tentava não rir com o desenho de ursinhos em um carrossel.
_ Então tá. Vamos só falar com os pais dele.
Minha mãe será uma eterna adolescente. Usa camisetas de bandas de rock e acha que vai viver para sempre. Por isso, naquela época, já era acostumado com os olhares espantados que as pessoas lançavam a ela. O mesmo tipo de olhar que a senhora Müller lhe lançou ao atender a campainha.
_ Oi, Anita _ cumprimentou minha mãe. _ Como vai?
_ Bem, obrigada... Daiane, é isso?
A senhora Müller era uma mulher alta, pálida e, como já era hábito da família, costumava retorcer as mãos e estalar os dedos nervosamente, enquanto se esquivava de perguntas.
_ É isso mesmo. Bem, o que eu queria dizer é que minha filha vai ter uma festa de aniversário e ficaríamos contentes se o Mateus pudesse comparecer.
_ Ahn... Eu vou falar com ele, ver o que ele acha.
_ Seria muito legal se ele fosse, não é, filho?
_ Seria _ eu disse sinceramente.
_ Tudo bem _ a senhora Müller falou, fechando a porta, _ eu direi a ele para ir...
_ Espere!
O grito de minha mãe paralisou a dona da casa e me assustou de verdade.
_ Eu gostaria de lhe pedir um favor, Anita. Estou reunindo o maior número de informações possíveis sobre casas antigas da nossa cidade. É para minha minhas aulas. E se você me permitisse, eu adoraria ver o interior da sua casa...
Revirei os olhos mal acreditando nas bobagens que saíam da boca daquela mulher. Ela era professora realmente, entretanto, a veracidade parava por aí, porque minha mãe lecionava música. E eu tinha certeza de que Les Paul não tinha qualquer ligação com casas antigas.
_ Sinto muito _ interrompeu a senhora Müller, enquanto eu agradecia a ela mentalmente. _ Eu estou muito ocupada. Lavando roupa. Então vai ter que ficar para outro dia.
Ela fechou a porta rapidamente e eu quase ri da expressão cômica de minha mãe. A verdade é que não queria entrar naquela casa. Ela me parecia apavorante, mal-assombrada. E diziam que a avó do Mateus não regulava há um bom tempo.
_ Acho que o tal dia de entrar nesta casa nunca vai chegar _ comentou minha mãe.
É claro que estava errada.
A festa já acontecia há horas e minha irmã, cujo cérebro maligno estava por trás de todas as brincadeiras que faziam as outras crianças chorarem, exigia que o bolo fosse servido naquele instante.
_ Acho que já está na hora mesmo _ disse minha mãe para alegria geral.
Como de praxe, fui um dos últimos a ganhar bolo, mas fiz questão de que Mateus ganhasse um pedaço antes de mim. Ele parecia um tanto deslocado e quase não falava. Só ficou mais à vontade quando subimos ao meu quarto para jogar videogame. Era assim que estávamos quando meu primo chegou.
_ Oi, Diego, entre _ disse no momento em que ele abriu a porta e espiou o que fazíamos.
Diego encarou Mateus e seus olhos pareceram duplicar de tamanho, como se visse uma espécie exótica.
_ Cara! Você parece um vampiro!
Meu primo não é do tipo que se controla para falar, o que já ocasionou cenas memoráveis com direito a sopapos e ameaças de processo por parte de alguns pais indignados.
_ Todo branquelo desse jeito! Até parece que você não come há dias!
_ Cale a boca, Diego.
_ Tudo bem _ disse Mateus, _ mas, se eu fosse um vampiro, te mataria agora mesmo.
Não entendi por que o Diego riu, para mim, ele parecia falar sério.
_ O que vocês estão jogando? _ Diego disse e sentou na minha cama para observar a tela melhor.
_ God of War III.
_ Ah! Eu sou muito bom nesse jogo, já aprendi tudo...
Deixei de ouvir e passei a me concentrar no jogo. Eu não era grande coisa e Diego fazia questão de me lembrar deste fato. Então me zanguei e entreguei o console na mão dele.
_ Se é tão bom, faça melhor.
Entre risadas e frustrações, os momentos que passamos jogando foram ótimos e o dia poderia ter terminado no mesmo clima se não ocorresse um fato que foi desagradável e perturbador. Naquele momento, Mateus e eu jogávamos, ao passo que Diego mexia nas minhas coisas sem minha permissão.
_ Ei, Ricardo, você não costuma limpar seu quarto? _ perguntou ele num tom de repulsa _ Tem aranhas aqui, cara.
Pelo som que ouvi, Diego deve ter tentado dar uma pisada nas tais aranhas. Como não conseguiu de primeira, saiu caçando uma, tentando pisar de qualquer maneira. O barulho atrapalhou tanto que deixamos de jogar apenas para acompanhar sua empreitada e, quando finalmente conseguiu pisar nela, dois arquejos foram ouvidos perfeitamente: o de vitória de Diego e o de dor de Mateus.
Rapidamente olhei para meu colega de jogo e me assustei com a cena. Mateus estava mais pálido do que de costume e seus olhos estavam tão abertos que eu podia me ver neles. Sabia que ele era louco por insetos, mas não entendi sua reação. Já o presenciara matar inúmeros deles para aumentar sua coleção, então ele não deveria ficar chocado com algo que fazia sem remorso. Eu só podia supor que ele adorava tanto aranhas que procurava poupá-las sempre que podia. Pensando bem, não me recordava de ter aranhas em sua coleção.
¬ _ Você está bem, cara? _ perguntei.
_ Eu devo ter comido muito bolo _ disse e disparou para o banheiro.
Segui-o enquanto Diego ficava perguntando o que estava acontecendo. Não respondi e ele veio em seguida. Podíamos ouvir Mateus vomitando sofregamente e só depois de muito tempo ele saiu. Não aparentava estar melhor do que antes, portanto, sugeri que eu o acompanhasse de volta para casa.
_ Posso ir junto? _ indagou Diego.
_ Não.
_ Ah, qual é? Eu não vou incomodar...
Não lhe deixei continuar. Avisei a minha mãe de que estava levando o Mateus para casa e ela me pediu para esperar um momento. Ao voltar da cozinha, trazia um recipiente de plástico com bolo.
_ Entregue à Anita _ ela me ordenou.
O caminho não era longo, mas eu olhava para Mateus o tempo todo. Queria me certificar de que o garoto não desmaiaria. Pálido daquela maneira, ele se assemelhava a anêmicos, e isso me preocupava de verdade.
_ Aquilo foi por causa da aranha? _ perguntei.
_ Eu não sei. Talvez. Aquela cena me deu nojo. E medo. Sei lá o porquê, é só uma sensação. Estou bem melhor agora.
Não dissemos mais nada e, após entregar o pote para a senhora Müller, acenei em despedida.
Meu primo decidiu que dormiria na minha casa naquela noite. Para minha felicidade, Diego resolveu deixar em paz meus gibis e não criticar alguns brinquedos que eu mantinha por afeição a eles. Ao invés de me chatear, ele só queria ficar jogando, coisa que fizemos por horas até ele se entediar e me permitir jogar sozinho.
Em certo momento, Diego olhou pela janela e deve ter visto os fundos da casa dos Müller porque perguntou: _ É lá que mora aquele seu amigo esquisito?
_ Não tenho nenhum amigo chamado Esquisito. Mas se fala do Mateus, é lá que ele mora, sim.
_ Ouvi dizer que eles não deixam as pessoas entrarem na casa. Por que será?
_ Gostam de viver discretamente. E o que você tem com isso?
_ Talvez a casa seja mal-assombrada. Talvez eles guardem um cadáver no sótão e façam rituais com ele. Eu vi isso num filme.
_ Quer saber, cara? Eu vou dormir. Se você quiser, pode continuar jogando ou pensando nessas bobagens que você tira não sei de onde.
Ele não respondeu. Limitou-se a se deitar e ficar olhando o teto. Quando já achava que tinha dormido, eis que ele surgiu com mais uma bobagem.
_ Por que a gente não vai lá?
_ Aonde?
_ Na casa dos Müller. Se aquele esquisito é seu amigo de verdade, então ele vai poder mostrar a casa pra gente. Podemos garantir que ele não vai contar aos pais e imagine só! Vamos poder contar a todo mundo que conseguimos entrar lá.
Eu sentei na cama, acendi a lâmpada do abajur e esperei que ele olhasse para mim. Só então falei:
_ Diego, nem pense em ir àquela casa. Os Müller são muito reservados e não gostam de gente se metendo na vida deles. Se você fizer essa besteira, eu mesmo acabo com você.
Meu primo não respondeu. Eu supus que ele se zangou e resolveu dormir de vez. Sabia que tinha sido muito duro, parecia que eu tentara bancar o pai, mas eu realmente me preocupava que ele pudesse arrumar encrenca por uma vontade incontrolável. Preferia que ele ficasse bravo ao que fizesse bobeira.
A primeira coisa que notei de manhã foi que meu primo já tinha se levantado. As roupas de cama estavam bagunçadas e o pijama estava no chão. Se eu fosse um bom observador, teria notado a ausência dos sapatos dele, os tais que minha tia chamava de “sapatos de passear”. Ele era terminantemente proibido de usar estes sapatos enquanto corresse, jogasse bola ou praticasse qualquer tipo de atividade ao ar livre, por isso usava uns chinelos que trouxera junto. Os chinelos se encontravam lá, os sapatos não. Como eu disse, eu nunca fui bom observador. Se fosse, talvez tivesse notado o desaparecimento dele naquele momento.
Eu acordava tarde todos os dias. Diego acordava ainda mais tarde, portanto, ninguém estranhou o fato de ele não ter descido. Mas a coisa se tornou incômoda quando minha mãe começou a pôr a mesa e eu percebi que ainda não tinha visto meu primo.
_ Esse menino não vai acordar nunca? _ perguntou minha mãe, pondo as mãos na cintura _ Está na hora do almoço e nem sinal dele.
_ Mas ele não está lá em cima _ eu disse, confuso. _ Achei que já tivesse se levantado.
Meu pai entrou na cozinha e foi direto à geladeira pegar o suco. Parou com a jarra de plástico na mão ao perceber nossas expressões.
_ O que aconteceu? _ ele olhou ao redor à procura de alguma coisa _ Cadê o Diego?
_ Não sabemos _ respondeu minha mãe. _ O Ricardo diz que ele não está no quarto, mas não o vi descer.
_ Ele é moleque arteiro _ meu pai usava muito essa expressão ao se referir ao meu primo, _ quer correr, fazer bagunça. Deve ter entrado no mato atrás do terreno dos Müller. A criançada vai bastante lá.
_ Já disse pra ele não ir naquele matagal _ disse minha mãe. _ Pode ter cobra, mas ninguém dessa família me ouve. _ Disse olhando para mim. _ Alguém tem de chamar aquele menino.
_ Eu vou _ prontifiquei-me.
_ Eu não acabei de dizer que lá é perigoso? _ minha mãe tentava ser uma mãe normal e responsável; um grande esforço para ela. _ Se eu fico preocupada por meu sobrinho se enfiar naquele lugar, imagina como eu ficaria se você fosse.
Meu pai disse que iria, desde que minha mãe prometesse se acalmar. Promessa feita, ele saiu mal-humorado e de estômago vazio. Eu senti vontade de segui-lo, mas, como era um filho obediente (leia-se aprisionado até os dezoito anos), eu fui almoçar quieto e no lugar habitual: no sofá da sala, assistindo TV.
Meu pai voltou sem meu primo, trazendo em seu rosto uma expressão inquieta. Olhou para minha mãe, ambos tensos, e balançou a cabeça em uma negativa. Subitamente me ocorreu uma coisa e, sentindo-me um idiota por não ter lembrado antes, pulei do sofá e comecei a vasculhar qualquer canto da casa onde alguém poderia se esconder.
_ O que está fazendo? _ indagou meu pai.
_ Procurando o Diego. Ontem à noite ele tentou me convencer a ir até a casa dos Müller. Disse que queria ver como era por dentro. Eu o proibi de ir e ele deve ter ficado com raiva. Aposto que está escondido e emburrado, talvez rindo de nós agora.
_ Quer dizer _ começou minha mãe _ que o Diego pode estar escondido aqui em casa ou ter ido aos Müller.
_ Não sei sobre esta última parte _ eu falei. _ Não achei que ele fosse lá realmente.
_ Então vamos ver _ disse meu pai.
Minha mãe quis ir conosco, mas bastou um gesto de meu pai para ela ficar. Fez cara de aborrecida e ele nem se importou. Puxou-me pelo braço e fomos os dois até o casarão dos Müller. Podia sentir meu pai relaxando ao meu lado, certo de que iria encontrar Diego lá. Eu, por minha vez, não tinha tanta certeza assim. Ainda achava que ele se escondia na minha casa.
A senhora Müller atendeu a porta e, bem ao fundo, podia ouvir a voz do seu marido. Ele deveria estar falando com outra pessoa, alguém com dificuldades de audição, pois sua voz reboava alta pela casa.
_ Oi, Anita, desculpe te incomodar, vocês devem estar almoçando, mas estamos preocupados. O meu sobrinho não está em casa e disse ao Ricardo que tinha vontade de vir aqui...
_ Ah, sinto muito _ ela parecia sentir mesmo, _ ele não está aqui. Nem o vi. Se quiser, posso perguntar ao meu marido...
_ Não é necessário. O moleque deve estar escondido aí pela vizinhança. É um pouco complicado lidar com ele, entende?
A senhora Müller aquiesceu, provavelmente visualizando meu primo como uma criança-problema.
_ Se o vir, por favor, avise-nos, Anita.
_ Claro, Rogério, será a primeira coisa que farei.
Fiquei torcendo para que o Mateus aparecesse ali ao acaso, mas nada. Ainda estava bolado com o ataque que ele tivera na noite anterior.
_ Como o Mateus está? _ eu perguntei.
_ Ótimo. Preparei um chá de ervas quando ele reclamou de dor no estômago e, antes de dormir, já estava melhor. Vou avisar ele da sua preocupação.
_ Por favor, senhora Müller, não faça isso. Ou o Mateus vai pensar que eu acho ele um mané.
Meu pai e a mãe de Mateus riram despreocupadamente. Eu me senti um babaca, tipo aquelas crianças que os adultos paparicam e comentam “não é uma graça?”.
Eu puxei o braço do meu pai e o forcei a me acompanhar. Ainda estava corado quando o semblante dele ficou carregado. Eu continuava tranquilo, estava convicto de que o Diego se escondera na nossa casa, mais precisamente entre a máquina de lavar roupa e a parede, local ideal para se esconder. E o desgraçado devia aproveitar os momentos em que ninguém ficava na cozinha para pegar comida.
No entanto, Diego não estava na casa. Em nenhuma parte dela. E conforme o dia avançava, mais tenso o clima ficava. Nossa única esperança era acreditar que ele levava a brincadeira de esconder bem a sério e se enfiara em algum jardim dos vizinhos. Mas até isso foi perdendo o sentido. E a coisa se tornou histérica quando minha tia, Luíza, foi chamada às pressas no meio da noite porque seu filho estava oficialmente desaparecido.
Eu não conseguia comer naquela situação. Toda a vez que tentava fazê-lo, as imagens de Diego, talvez passando fome em algum lugar, tiravam-me todo o apetite. Cheguei a desmaiar e acordei horas depois com minha mãe berrando na minha cara que eu era um filho ingrato. Ela já tinha de aguentar o sumiço do sobrinho, agora precisaria colar no filho para garantir que ele não morresse por inanição. Tentei tranquilizá-la, mas, a verdade, é que eu precisava ser tranquilizado. Comi o que me ofereceram, sem sentir o gosto e, assim como os outros, eu aguardei.
Eu encontrei Diego dois dias depois. A cena ainda é insana, mesmo depois de todo este tempo.
Lembro-me de cada detalhe. O relógio marcava oito e dezessete da manhã. Naqueles dias eu dormia pouco e passaria a dormir menos dali em diante. Lembro-me de estar exausto, triste e principalmente irritado. De alguma forma eu joguei toda a culpa em Diego. Era sua culpa a família inteira estar naquele estado. Ele e sua irresponsabilidade por sair sem avisar, seu egoísmo, sua necessidade crônica de atenção. E bem no fundo, eu tinha de admitir que sentia sua falta.
Naquela noite eu sonhara que Diego e eu corríamos pelo matagal que ficava além de nossas casas. Em um momento, Diego caiu num buraco enorme e desapareceu. Acordei tremendo, mas com a certeza de saber onde procurar.
Eu me dirigi à casa dos Müller. Antes mesmo de chegar ao portão, comecei a chamar o Mateus com toda a força dos meus pulmões. Ele surgiu na janela do andar de cima, seu pai na porta.
_ O que está acontecendo? _ indagou o senhor Müller.
Eu o ignorei e gritei para o Mateus descer. Enquanto o pai dele me olhava como se eu fosse louco, seu filho desceu correndo, eu presumo, e passou por ele quase lhe derrubando.
_ Tudo bem, pai _ disse Mateus, apressado, _ a gente só vai conversar.
_ Tá bom. _ O senhor Müller estava visivelmente tenso. Ainda deu mais uma olhada em nós. _ Entre logo, filho.
Mateus assentiu e olhou para mim com expectativa. Podia ver que ele se sentia desconfortável, abatido. O fato é que meu primo ter desaparecido enquanto queria muito ir à casa dele parecia tê-lo abalado.
_ Vamos procurar o Diego.
Não estava perguntando se ele queria, eu esperava que ele me acompanhasse, ou então eu não conseguiria. Saí sem esperar por ele, torcendo desesperadamente para que me seguisse.
Segui na direção do matagal que havia atrás das casas da minha rua. A trilha começava depois da propriedade dos Müller, assim só tínhamos que contornar a cerca para chegar até o terreno repleto de erva-cidreira. As plantas chegavam à nossa cintura, o que podia esconder uma porção de animais pequenos. Era ali que geralmente vínhamos brincar, escondendo-nos naquele mato todo, cuidando para não enfiar o pé num buraco ou tropeçar nas armadilhas parra animais (esta última devia ser mentira, ao menos, nunca tinha encontrado uma).
Arrisquei uma olhada para trás e a pressão no meu peito aliviou, porque Mateus se encontrava bem ali. A verdade é que eu estava morrendo de pavor de encontrar o Diego. Tantos anos ouvindo histórias de terror acabam deixando você meio doente da cabeça. E na minha só apareciam imagens de meu primo sem membros, ou com olhos trespassados por agulhas, ou qualquer atrocidade assim. Não queria pensar que ele pudesse estar morto. A possibilidade está ali na sua frente, escancarada, mas você se recusa a acreditar, porque só estranhos morrem, pessoas que você ama nunca vão te deixar. E você está tão convencido disso que, quando acontece, você fica desestabilizado.
_ Vamos voltar, Ricardo. Ele não está aqui.
Voltei-me para Mateus, que estava péssimo. Sua palidez estava mais acentuada, algo que eu achava impossível. O garoto parecia querer correr, gritar, fazer algo que o tirasse dali.
_ Vamos embora _ repetiu. _ Estou com uma sensação ruim.
Eu lhe dei as costas e voltei a caminhar. Pude ouvi-lo gemer, mas não lhe dei atenção. Diego poderia estar correndo perigo, então eu tinha de me apressar. Nada me pararia naquele momento.
Eu parei por um instante, tentando organizar as ideias. Lembrei-me do poço inacabado que havia em algum lugar por ali, mas descartei a ideia. Havia sido fechado com grades e parafusos do tamanho dos meus dedos. Olhei em volta, cada vez mais certo de que ele se encontrava por ali. Depois me lembrei do lugar onde uma criança já tinha caído e rezei para ele não ter chegado nem perto dali.
O lugar do qual falo ficava bem mais além daquele matagal. Nem mesmo os adultos iam lá. Embora tivesse quase certeza de que ele tinha ido até o tal lugar, mantinha a esperança de ele ter fugido e ido para bem longe. Tudo seria melhor que aquilo.
Antes da nossa rua receber tratamento de esgoto, todo o dejeto ia parar num arremedo de fossa coletiva, um buraco que ficava fora da trilha. Era fundo, escuro e o fedor podia ser sentido bem antes de encontrá-lo. Tempos depois ele foi desativado, mas uns pequenos traficantes o usaram para esconder sua mercadoria. Sabendo que qualquer um poderia achá-lo, os traficantes começaram a fazer um pequeno túnel que nunca foi terminado. Sua entrada foi ficando entulhada de lixo, dejetos de anos e quilos de drogas abandonadas e, toda vez que chovia, a água acumulada escorria pelo túnel e brotava no lugar onde deveria existir a sua saída. Toda esta água misturada a lama e mato acabaram formando um tipo de pântano, um lamaçal.
Havia histórias, claro, tanto sobre o lamaçal quanto o buraco. A mais famosa era a que meu vizinho, Roberto, protagonizara. Hoje ele tem cerca de trinta anos, mas na época em que caíra no buraco tinha sete. Como era de se esperar, ele ficou traumatizado a ponto de perder a fala por quase um mês. Quando a recobrou, contou que vira uma porção de ratos, todos medonhos, mas havia um em especial que lhe apavorou para o resto da vida. Ele era grande, maior que os outros, e ficava encarando Roberto o tempo todo, como se esperasse pacientemente para abater sua presa. Ele jura que viu o tal rato impedir o avanço dos outros, cortando a frente deles quando tentavam. No fim, ele foi resgatado depois de quatro dias. E os ratos continuaram lá pelo o que se sabe.
Eu não queria que Diego passasse por algo como aquilo. Não só pelo fato de ser meu parente, mas porque, apesar de bancar o idiota às vezes, eu o considerava meu amigo.
Apressei-me para chegar ao buraco, atrás de mim deixava um rastro de erva pisoteada. O buraco continuava aberto, contudo, agora uma pequena cerca de tela com uma placa de aviso cercava o local. Mais do que apreensão, eu sentia uma angústia sufocante. Ouvi os passos de Mateus e olhei para ele, esperando uma confirmação para continuar.
_ Esta parte do terreno é instável, Ricardo. E se você cair nesse buraco? A cerca não é confiável, você sabe.
Eu permaneci ali, simplesmente olhando-o. Desejava desesperadamente que ele me apoiasse, que me incentivasse a prosseguir. Como ele estava inclinado a não fazê-lo, eu me aproximei e olhei para aquela escuridão. Não conseguia ver muito bem, precisei que meus olhos se acostumassem com o escuro e só então visualizei alguns contornos. Mesmo no breu, dava para ver garrafas PET e uma coisa que parecia ser uma boneca.
_ Se ele estivesse aí, a gente ia ouvir...
_ Se ele estiver fraco, não.
Estava tão determinado a encontrá-lo que custei a perceber que ele não estava ali. Então olhei para frente, na direção do lamaçal. Mateus acompanhou meu olhar e deve ter entendido o que eu ia fazer, porque seu rosto deixou transparecer todo o pavor que sentia.
Antes que ele pudesse protestar eu já me encaminhava. O lamaçal ficava uns trinta metros à frente e eu andava exatamente em cima do túnel. Eu não queria ir lá, não queria mesmo, porém, algo me mandava ir.
O terreno não era firme, por isso, eu tinha de avançar devagar, garantindo que não fosse cair naquela água lodosa. E o cheiro era insuportável. Ouvi Mateus tendo engulhos e fiz um esforço para ignorar a náusea. Parei e olhei por toda a superfície. Pneus e até carcaças de animais pequenos boiavam ali.
Queria voltar para casa imediatamente. O Diego que se danasse! Entretanto, a culpa me forçou a olhar de novo e o que vi me atingiu em cheio. No momento em que vi, eu soube que era um sapato.
_ Mateus, tire sua blusa. Vamos amarrar a sua na minha e aí vou tentar entrar na água me segurando nelas.
_ O quê? Ricardo, isso é perigoso...
Parei no ato de tirar minha blusa e o encarei. _Eu preciso que faça isso, Mateus. Preciso que você me ajude, está entendendo? Se eu não tentar... Pode imaginar como eu me sinto?
Imediatamente me arrependi. Ele parecia mais arrasado, mais abalado do que eu. Não compreendia o porquê de tanta tristeza. Diego não era nem seu amigo. Ele é quem deveria estar me confortando, incentivando-me a procurar.
_ Desculpe-me, Ricardo, eu sei que você sofre, mas tenho medo por você. Tenho medo do que você pode encontrar aí.
_ O que acha? Talvez aquela coisa escura ali seja um sapato e pode ser uma coisa que nos ajude a encontrá-lo.
Então ele disse algo que se fixou em minha mente, algo que eu não queria ouvir. _Talvez ele esteja morto.
Queria bater nele, gritar em sua cara que ele não estava morto. Entretanto, antes que eu pudesse esboçar uma reação, Mateus tirou a blusa e fez um gesto, pedindo a minha. Eu tirei em silêncio e entreguei-a a ele que amarrou a manga de uma na outra e me passou uma ponta. Comecei a entrar no lamaçal lentamente e logo a água já chegava à minha cintura. Tentei puxar a coisa que eu acreditava ser um sapato, mas ela não saiu. Parecia estar presa no mato no fundo da água. Com apenas uma mão era bem difícil, mas tentei puxar de novo e desta vez consegui.
O sapato estava pesado porque tinha um pé lá. E uma perna e um corpo inteiro. Reconheci o sapato e a verdade me atingiu com impacto. Agarrei a blusa que segurava com mais força e Mateus me puxou para fora da água. Caí de joelhos na terra lamacenta, sentindo as lágrimas escorrerem abundantemente. Não conseguia falar, mas Mateus sabia. Assim como eu, ele sabia que aquilo tinha sido Diego.
Aquela foi a única vez em que chorei. Não que eu não tenha tentado toda a vez que via alguém chorando na minha casa. É que eu sempre fui capaz de me recuperar rapidamente. Também não via a utilidade de chorar, quero dizer, ele estava morto. E ponto. Não o esqueci, claro. Até porque as pessoas não deixavam. Sei lá, acho que elas pensavam que eu fosse fazer alguma besteira ou algo assim.
O único que conversava comigo de uma maneira normal era o vizinho da frente dos Müller. Ele sempre me chamava até sua casa e, alguns dias depois desse estresse, não foi diferente. Eu podia vê-lo da varanda da frente, acenando e sorrindo, o homem que me tirava do pesadelo de ter que conversar comigo mesmo.
Seu nome era Aristides, mas o chamávamos de Noel, por causa da barba branca e espessa. Tinha riso fácil e uma capacidade de animar um ambiente de uma forma radical. Nunca mais em minha vida conheci alguém como ele. Ainda me emociono quando penso nos seus famosos “causos”, histórias recheadas de sentimentalismo, porém, nunca maçantes.
Ignorando os acontecimentos trágicos que ocorreriam nos próximos dias, eu me sentei numa de suas cadeiras de balanço, ao passo que Noel trazia uma jarra de limonada e dois copos de plástico. Ele sentou-se com um suspiro, encheu um copo para mim e pousou a jarra no chão. Adorei a sensação da limonada gelada descendo pela minha garganta. O dia não estava tão quente, mas uma bebida gelada sempre ajudava.
_ Sinto muito pelo seu primo _ disse pela décima vez naquela semana. Seus olhos estavam úmidos e deprimidos, contudo, ele procurava encobrir com seu bom humor habitual. _ Já descobriram o que aconteceu?
_ Ao que parece ele se afogou.
Eu não me sentia mal conversando aquele tipo de coisa com ele. Se outra pessoa mencionasse o ocorrido, eu desabava. Mas se o seu Noel falasse, soava perfeitamente tranquilo. Era como se ele fosse meu gêmeo cinquenta anos mais velho.
_ Eu perdi um amigo por atropelamento _ disse. _ Demorei muito tempo para superar. Por vezes, achava que ele ia aparecer uma hora dessas e beber uma cerveja comigo. Então me lembrava que ele morreu e ficava deprimido por dias. _ deu um gole demorado em sua bebida. _ Você é bem mais forte do que eu era na sua idade. Isso é bom.
_ Não sei. Eu vejo minha tia chorando, enquanto jogo videogame. Parece errado, parece desrespeitoso.
_ Você só está fazendo uma coisa que todos têm de fazer mais cedo ou mais tarde: seguir em frente. Seu primo está morto, não você. É triste, é absurdo, mas é fato.
Voltei a beber e ele me imitou.
_ Como tem passado o menino Mateus? _ indagou _ Vi ele ontem e achei que parecia doente.
_ A gente não tem se falado muito _ fiz uma pausa, pensando melhor. _ Também tenho notado que ele está mais quieto, mais que o de hábito.
_ Toda a família está assim. Acho que é por causa da mãe do Müller. A senhorinha é mais velha que eu, então você pode imaginar que a saúde dela é frágil.
Eu sempre tive curiosidade sobre os Müller e, ali ao meu lado, encontrava-se o homem que poderia dar fim a esta curiosidade.
_ Seu Noel, o senhor já entrou na casa dos Müller?
_ Não. Mas não é porque os Müller nunca permitiram, apenas porque nunca precisei. Todas as ferramentas ficam no barracão atrás da casa. Sempre peço água pela janela da cozinha e Anita me atende muito amável. São boas pessoas. Só quietos demais.
_ Desculpe se pareço intrometido, mas como é que lhe pagam? Pelo o que eu sei, eles não trabalham.
_ Nem precisam. Parece que a família vem adquirindo uma fortuna ao longo dos anos. Quem me disse isso foi o próprio Müller. Segundo ele, os parentes originários da Alemanha venderam tudo o que tinham por lá e vieram para cá com um bom dinheiro no bolso. Outra coisa que pode confirmar isso é algo que meu pai ouviu do pai dele. Ele me contou que meu avô viu quando os primeiros Müller chegaram. Carregavam caixas de madeira, caixas que pareciam baús.
_ Estavam cheias de dinheiro.
_ Ouro. O velho Müller trocou suas terras por ouro. Acho que sei onde eles guardam toda a fortuna.
Eu arregalei os olhos, sentindo-me todo arrepiado. Inclinei-me em sua direção e ele na minha, como cúmplices planejando um crime.
_ Onde eles guardam?
_ Bom, lembra-se que eu disse que peço água pela janela? Eu aproveito para dar uma boa olhada, sabe, e já reparei na porta que quase passa despercebida naquela cozinha enorme. Acho que é a porta do porão. E ela está cheia de trancas e cadeados, como se guardasse algo. Acredito que o ouro está lá.
_ Então o senhor acha que eles não são muito sociáveis para que ninguém entre lá e roube sua fortuna?
_ É possível _ então ele me olhou com uma expressão bem séria. _ E não tente colocar ideias de jerico nessa sua mente diabólica de onze anos. Acho bom que você não queira entrar lá.
_ Eu nem tentaria. Sinceramente, aquela casa me dá arrepios.
Ele riu e passou a observar a casa mencionada. _ A dor no meu joelho aumentou e amanhã preciso cortar a grama deles e consertar uma janela. Será que você estaria disposto a ajudar um velho na sua labuta? Depois podemos acertar o pagamento.
_ Não precisa. É sério. Eu preciso me distrair, senão fico pensando no Diego e isso é um incômodo. Sinto-me envergonhado de falar assim, mas é o que sinto.
_ Tudo bem. Você só está agoniado com esta situação _ ele encheu nossos copos novamente. _ E obrigado por arrumar tempo para jogar conversa fora com um velho.
_ Eu gosto de vir aqui. É onde me sinto mais confortável. _ Eu tomei tudo de uma só vez e corri até o portão. _ Obrigado pela limonada. Até amanhã.
_ Esteja lá às 7!
Fiz sinal de positivo e corri de volta para minha casa. Sempre me sentia melhor depois de conversar com seu Noel. A coisa já tinha se tornado um hábito e eu estava tão acostumado com essa rotina que, quando acabou subitamente, eu senti uma falta terrível.
Quando cheguei na casa dos Müller _ admito que atrasado, _ seu Noel já estava na ativa. Ele cortava a grama num dos lados da casa usando um aparador e estava tão concentrado no que fazia que não me ouviu chamá-lo. Tive de me aproximar muito para que me avistasse. Ao me ver, indicou o cortador no canto do pátio.
Acenei para ele e liguei o cortador. Como já tinha feito aquilo diversas vezes com meu pai, não encontrei dificuldade. Concentrei-me tanto quanto pude, por isso nem notei a aproximação do senhor Müller. Ele bateu no meu ombro e só então o vi.
_ Não sabia que o Noel tinha arrumado um ajudante _ comentou.
_ Eu não tinha nada pra fazer mesmo.
_ Hum... _ele parecia pensar seriamente _ Procure não chegar perto das janelas do porão. Os vidros estão meio soltos e um deles está quebrado. O metal foi torcido e você pode se cortar.
_ Tudo bem, senhor Müller, eu vou tomar cuidado.
Ele ia voltando para dentro no momento em que Mateus ia saindo. Pelo jeito ele me vira de alguma janela, porque veio direto na minha direção com um sorriso empolgado. Eu me arrependi de não ter lhe procurado nos últimos dias e prometi a mim mesmo que não repetiria tal coisa.
_ E aí, que tal uma ajudinha? _ eu perguntei, não esperando que ele levasse a sério.
_ Estava pensando nisso _ ele sumiu, presumo que tenha ido até o barracão, pois voltou trazendo uma vassoura de palha.
Para meu espanto, ele se pôs a varrer a grama cortada, juntando em vários montinhos e depois recolhendo com uma pá e colocando em sacos plásticos. Uma ótima ajuda, porque assim tínhamos cortado e varrido mais da metade do pátio até a hora do almoço.
Achei que íamos ficar para almoçar, mas seu Noel deixou o aparador de lado e foi saindo. Eu o acompanhei entre desapontado e aliviado. Mas, como a fome era enorme, tudo deixou de ter importância. Não sabia a que horas deveria recomeçar o trabalho, então, após terminar minha refeição, voltei à casa dos Müller. Como já era esperado, seu Noel se adiantara e esperava por mim com limonada. Sentamos lado a lado debaixo de uma árvore nos fundos do terreno; não era muito grande, mas sua sombra era ótima.
_ Desculpe se não o ouvi quando chegou hoje de manhã _ disse ele. _ Quando venho cortar a grama, eu desligo meu aparelho auditivo. Os barulhos do cortador me incomodam.
_ Tudo bem.
_ Agora falta pouco _ seu Noel comentou. _ Só aqui na parte de trás e pronto. Está feito.
_ É, mas o senhor ainda tem de consertar a janela.
_ Verdade _ ele olhou para a tal janela com o vidro quebrado. _ Os vidros estão soltos porque o Müller encaixou de qualquer jeito. _ Ele olhou para mim de olhos arregalados, o que significava que lá vinha novidade. _ Parece que alguém tentou entrar na casa há alguns dias. O Joel me contou que desceu ao porão levando a bengala do pai, que é uma bengala bem forte, e, quando acendeu a luz, teve a impressão de ouvir alguém pular a janela. Ele vasculhou o terreno todo, mas não encontrou ninguém.
_ Será que estava atrás do ouro? E como podia saber o que tinha lá?
_ Não sei, menino. Segundo o Joel, a pessoa não levou nada, mas o resultado está aí: uma janela quebrada pra eu consertar. Faz duas semanas que ele me pediu pra fazer, mas a memória já não é tão boa... Acabei de me dar conta _ ele fez uma pausa para organizar as ideias, _ Joel me contou isso no dia seguinte ao acontecido. Lembro-me bem disso, porque vi seu pai revirar a vizinhança em busca do seu primo naquele mesmo dia.
Eu pensei seriamente no que ele disse e nem percebi que deixei cair parte da minha limonada em meus tênis.
_ Quer dizer... a noite em que vi meu primo vivo pela última vez foi a mesma noite em que alguém invadiu a casa dos Müller? _ uma imagem se formava em minha cabeça, embora eu tentasse repeli-la. _ Meu primo queria muito vir a esta casa. E eu acho que ele veio.
Seu Noel e eu nos entreolhamos cheios de dúvida. A imagem ainda estava me incomodando, porém, as coisas que podíamos ter dito ficaram para depois, assim que Mateus apareceu subitamente com sua vassoura a postos.
_ O horário de almoço acabou _ disse, sorrindo. _ Vamos trabalhar ou seremos despedidos.
Eu sorri também e fui até meu cortador. Olhei para seu Noel e ele também já estava pronto para recomeçar. O bom humor voltara e nos acompanhara durante todo o tempo em que continuamos a trabalhar. Por isso, talvez, eu não tenha visto a tarde passar.
Terminamos de recolher a grama e ensacá-la. Passei a mão pela testa e a tirei ensopada de suor. Seu Noel fazia uma limpeza básica nos cortadores de grama, ao passo que Mateus guardava a vassoura e as outras ferramentas no barracão. Eu já me preparava para seguir seu Noel que saía apressado. Então parei no ato.
A avó de Mateus estava na porta. O que eu sabia sobre ela tinha ouvido pelos outros moradores. O que diziam é que ela era uma velha senil e assustadora. Bom, a descrição era fiel. A senhora Müller me olhava com olhos febris e brilhantes e o rosto estava neutro, como se nem tivesse consciência de me ver. Ela estendeu a mão e pude visualizar um fio preto na ponta dos seus dedos.
Senti um desconforto imediato diante daquele olhar vazio e, como se meus pés se movessem por vontade própria, vi-me caminhando até a senhora. Peguei o fio e, para meu horror inexplicável, reconheci-o imediatamente. Era apenas a metade de um cadarço. Uma das pontas estava intacta, mas a outra estava desfiada, como se tivesse sido separada à força de sua metade ausente. Ou pior, e a ideia estava lá, não pude evitar, como se fosse separada por dentes afiados.
Queria desesperadamente ir embora, entretanto, não tinha forças para me mexer. Então a senhora Müller gargalhou subitamente, assustando-me tanto que cheguei a cair de costas. Ela ainda gargalhava quando me levantei o mais rápido que pude e corri. Na minha mão, o cadarço pela metade estava bem apertado. Encontrei o seu Noel esperando por mim de sorriso enorme, mas, ao me ver naquele estado (imagino que devia parecer um fugitivo), seu sorriso desapareceu.
_ Calma, moleque _ ele pôs as mãos nos meus ombros, impedindo-me de continuar correndo. _ O que é que você tem?
Eu puxei o ar e o deixei sair lentamente. Só quando fiquei mais calmo, consegui falar: _O senhor me disse que alguém invadiu a casa dos Müller. Eu sei quem foi _ seu Noel permaneceu sério, aguardando eu prosseguir. _ Meu primo insistiu para que a gente viesse conhecer a casa. Como eu disse não, ele veio sozinho. Saiu enquanto eu dormia e entrou pela janela do porão, por isso o senhor teve de consertá-la _ fiz uma pausa para ele acompanhar meu raciocínio. _ Acho que o senhor Müller mentiu sobre ter ouvido alguém sair do porão. Acho que ele viu meu primo lá. E então o Diego foi encontrado morto alguns dias depois.
_ Está insinuando o que, garoto?
Eu sabia que ele tinha entendido e talvez por isso ele parecesse tão nervoso. Eu mostrei o cadarço, tentei fazê-lo pegar, mas ele deu um passo para trás com terror estampado no rosto.
_ Não sei o que está pretendendo com isso, Ricardo, mas se acha que alguém daquela família foi responsável pela morte do seu primo, sugiro que procure ajuda. Você está seriamente perturbado.
_ Ninguém sabe nada sobre eles. O que é que o senhor sabe?
_ Eu sei que são pessoas boas e honestas. Pessoas que me deram alguma utilidade agora que estou velho. Não quero mais saber dessa história, Ricardo.
Ele se virou e foi se afastando.
_ Este é o pedaço do cadarço do Diego. Sei disso porque minha tia era muito rígida sobre os cuidados com aqueles sapatos. Os tais sapatos que sumiram com ele. _ Eu sabia bem do que falava. A imagem dos sapatos está em minha mente até hoje.
Seu Noel pensou em falar algo, mas desistiu, provavelmente julgando ser inútil. Simplesmente se foi. Sempre vou me arrepender por não ter tentado uma reconciliação, por carregar a culpa de ter deixado a raiva ser maior que a nossa amizade.
Recebemos o telefonema antes de o sol aparecer. Ouvi o telefone tocando e passos apressados descendo a escada. Depois de alguns minutos em silêncio, os passos voltaram a soar, dessa vez do lado de fora do meu quarto. A porta se abriu repentinamente e meu pai entrou lívido e ofegante.
_ Vamos, Ricardo. Temos que ir ao hospital.
_ O que aconteceu?
_ Não há tempo agora, eu explico no caminho.
Meu pai me puxou pelo braço e me empurrou na direção da porta. Em questão de minutos estávamos no seu carro a caminho do hospital.
_ Eu tô de pijama, pai _ reclamei olhando minha camisa e meu calção largo e remendado. _ Podia ter deixado eu trocar de roupa.
_ Não tínhamos tempo. Seu Noel está no hospital. _ Senti um aperto no peito e meu pai continuou: _ Joel Müller encontrou-o no pátio de trás de sua casa. Tinha sangue por todo lado, até na janela do porão. Parece que entrou lá e se machucou gravemente. Depois tentou sair por onde entrou, mas não conseguiu ir muito longe.
_ Por que ele foi até o porão? _ Não consegui imaginar ele atrás da fortuna dos Müller.
_ Ninguém sabe. A filha está com ele agora. Foi ela quem ligou. Estava desesperada, dizia que o estado do pai é grave. Teve duas paradas cardíacas desde que foi socorrido. Ninguém entende como ainda está vivo. Acham que ele só está aguentando porque quer falar com você. Pede isso desesperadamente.
Eu estava apavorado. Mais pelo estado do homem que ia encontrar do que por qualquer outra coisa. Meu coração parecia querer sair do peito no momento em entrei naquele hospital. A filha dele, Ângela, veio nos receber extremamente abatida e isso contagiou meu pai imediatamente. Eu, por outro lado, senti-me pior ainda.
_ Ele chama por você, Ricardo _ ela me disse.
Eu fui permitido a entrar, apenas eu. Olhei para o homem na cama, o homem que parecia muito mais velho e que estava preso a inúmeros tubos e aparelhos, agarrando-se à vida para me dizer alguma coisa importante. Então arrumei coragem e me aproximei da cama.
_ Seu Noel _ toquei sua mão, enquanto tentava não demonstrar meu horror perante os cortes de seu rosto, _ estou aqui.
Ele abriu os olhos com dificuldade. Quando falou, sua voz soou fraca e exausta. Tive de me esforçar para ouvir. O sentido das palavras, porém, foi claro até demais.
_ Ricardo _ podia sentir minha garganta doendo, mas me mantive firme, _ você estava certo. _Eu queria chorar e sabia que dali a pouco não poderia mais conter. _ Eu vi... Eu vi aquilo.
_ O quê? O que o senhor viu?
Ele fechou os olhos por um momento e quando os abriu, parecia em transe. Lembro-me de tudo o que ele disse, palavra por palavra.
Foi para casa irritado com o garoto. Tinha medo de que ele pudesse falar algo contra os Müller e isso acabasse encrencando todo mundo. Inclusive ele, pois fora o responsável por contar ao menino que alguém entrara no porão daquela família. O garoto ainda estava abalado com a morte do primo e precisava culpar alguém.
Tentou se convencer disso, mas à noite, enquanto tentava pegar no sono, a imagem daquele cadarço na mão do menino não o deixava. Temia que ele pudesse estar certo, mas temia mais ainda ter uma possibilidade dessas na mão e não fazer nada a respeito, enquanto uma mãe chorava a morte do filho.
O sono não viria, então Noel levantou-se e foi à casa do outro lado da rua. Parou no portão e espiou ao redor. Depois de se certificar de que ninguém o via, Noel seguiu até os fundos e parou em frente à janela que consertara mais cedo. Examinou-a atentamente, pensando num modo de abri-la sem fazer barulho. Foi até o barracão e pegou o pé-de-cabra que usou para forçar o metal. Empregou toda a força que tinha e obteve sucesso. Uma parte do metal ficou retorcida e ele começou a forçar com a ferramenta, mas uma parte do vidro se partiu e caiu com estrépito no chão do porão. Rapidamente ele ficou alerta, esperando para correr ao ouvir qualquer barulho vindo da casa. Teve a impressão de ouvir algo no porão, mas, se realmente aconteceu, não voltou a se repetir.
Inspirou fundo e puxou a janelinha com o pé-de-cabra. Ela acabou por se soltar de vez e caiu próxima ao seu pé. Pisou no vidro espatifado antes de se içar e passar pelo espaço vazio onde ficava a janela. Acreditava que, se o primo de Ricardo viera mesmo, o menino entrara por ali. Tentou descer com cuidado, mas perdeu o equilíbrio e caiu desajeitado sobre uma pilha de caixas de madeira e algumas garrafas de vidro. Apesar da dor, Noel se levantou rapidamente, pois queria estar escondido caso alguém viesse investigar o barulho. Mas um ruído abafado o fez parar.
Estava perto dele, o que quer que fosse. O barulho que fazia era de passos grandes e pesados. Nada na vida o preparou para aquele momento. Lentamente a coisa se aproximou. Apavorado além do que podia conceber, Noel se viu encarando oito olhos. Quatro deles eram amarelos luminosos e quatro eram pequenos e pretos. Noel viu sua imagem refletida nos grandes e sentiu o hálito daquela coisa lhe atingir em cheio.
De repente sentiu uma dor lancinante na perna direita. Olhou para ela e, mesmo naquela escuridão, pôde ver que havia uma coisa preta e comprida espetada nela. A coisa se afastou levando parte da carne de sua perna. Noel gritou e tentou correr e sentiu que uma coisa igual a primeira lhe atravessava a barriga. Quando foi solto, Noel correu, tentou subir nos caixotes e se içar. Sentiu que a coisa afiada bateu na parede, errando sua cabeça por centímetros. Parte de sua orelha se foi, mas ele conseguiu sair. Não pôde mais ouvi-la, contudo, não desviou os olhos do buraco que já fora uma janela, esperando ver a coisa afiada e negra vindo em sua direção.
Arrastou-se por mais alguns metros antes da dor lhe impedir de continuar. A última coisa que ouviu foi a voz de Joel Müller chamando seu nome.
Os olhos de seu Noel entraram em foco novamente e fixei neles, entre horrorizado e fascinado. Podia imaginar a cena perfeitamente: meu primo sendo devorado por aquela coisa que vivia no porão. Mais do que a dor que a cena me trouxe, eu sentia uma fúria nauseante. Eu queria ir imediatamente lá matar aquela coisa e depois bater em Mateus, principalmente nele, por permitir que uma coisa assim vivesse.
Senti seu Noel apertar minha mão e consegui me controlar para prestar atenção nas suas palavras sussurrantes.
_ Não entre lá _ de sua boca saía sangue, _ não entre...
_ O que tem lá? _ eu agarrei sua roupa com força _ O que é a coisa que matou meu primo?
Então seus olhos ficaram vidrados e o aparelho ao lado da cama passou a emitir um zumbido contínuo. Uma enfermeira apareceu prontamente e eu fui retirado dali por meu pai. Não ouvi uma palavra do que meu pai disse porque a raiva me tornou inalcançável.
Tive de esperar até a noite para agir. Foi quando os Müller _ pai, mãe e filho _ compareceram ao velório de seu Noel. Minha família ficou o tempo inteiro lá, auxiliando Ângela no que ela precisasse. Eu permaneci o tempo todo na varanda onde costumávamos sentar e conversar, enquanto bebíamos sua limonada incomparável. Mateus veio conversar comigo num determinado momento e juro que fiz um esforço tremendo para ser cordial, mas a raiva estava ali e tenho certeza de que fui ríspido algumas vezes.
Já tinha me resolvido. Esperei os Müller adentrarem na modesta casa do seu Noel e dirigi-me até a minha casa. Lá peguei uma lanterna e um machado pequeno. Procurei ir despercebido até o casarão no fim da rua, aquele que sempre me dera medo e no qual eu estava prestes a entrar.
Forcei a maçaneta da porta com o cabo do machado não me importando se poderia chamar a atenção da senhorinha Müller ou de qualquer outra pessoa. Entrei e olhei para o alto da escada, esperando enxergar a idosa como uma vigilante no escuro. Sem demora eu fui até a cozinha. A porta fortemente trancada estava lá mesmo, exatamente como seu Noel dissera. Desci o machado na porta até fazer um buraco grande o bastante para eu passar. Procurei por um interruptor e, como não achei, segui no escuro mesmo. Bastou um passo depois do último degrau da escada para as coisas se complicarem.
Perdi o chão literalmente. Devo ter caído uns quatro metros e só não me machuquei seriamente porque caí no que parecia palha. Levantei-me rapidamente e apontei o facho da lanterna ao redor. Aproximei-me da parede e a toquei. Retirei rapidamente, sentindo minha mão úmida e suja. Aquelas paredes eram de terra. Pelo o que entendia, os Müller cavaram um buraco em seu porão. Um buraco profundo e forrado com palha para garantir o conforto da criatura que mantinham em sua casa. Eu estava louco para quebrar algo, para fazer um estrago enorme em qualquer coisa que caísse na minha mão.
Por isso dei alguns passos e continuei mirando a lanterna à frente. Meus olhos tiveram de se ajustar e quando a imagem ficou nítida, eu arfei. Havia uma coisa peluda e embolada. Pelo barulho que fazia deveria estar dormindo e, se aquilo era mesmo o ronco da coisa, deveria estar sonhando. Eu esperava que seus sonhos fossem ótimos e que ela aproveitasse ao máximo porque eu ia lhe tirar o sono. Definitivamente.
Dei um passo com muita cautela. Queria aproveitar seu sono, utilizá-lo numa vantagem contra ela. No entanto, as luzes acenderam sem qualquer aviso. Uma coisa negra e comprida se estendeu em minha direção e eu me encolhi. Era cheia de articulações e peluda. Meu Deus, aquilo era uma pata de inseto do tamanho de um poste. Quando ela me tocou, eu quase gritei. Ao invés disso, dei um passo para trás e pisei numa coisa que se partiu com estrépito. Olhei para baixo e vi que tinha pisado em um osso velho. Olhei ao redor só para confirmar o que eu já sabia: o buraco estava repleto de carcaças de animais pequenos.
Já pensava em desistir de minha empreitada, planejando voltar com autoridades ou, no mínimo, um excelente caçador, quando veio o pior. A criatura me encarava; todos os oito olhos fixados em mim, fazendo eu me sentir um alvo de fuzilamento. Então, lentamente ela se ergueu, cada pata tornando-a maior e mais feroz. Ela se moveu um pouco mais e um barulho em seus membros inferiores chamou minha atenção. Algumas de suas patas estavam acorrentadas às duas grossas pilastras, por isso, ela era impedida de quebrar algumas paredes e sair passeando pela cidade. Mas isso não lhe tirava o movimento livre pelo porão.
Não sabia do que aquela aranha era capaz, mas já previa seu próximo movimento. A aranha, uma coisa de uns quatro metros, avançou na minha direção e eu joguei minha lanterna, mirando seus olhos, mas acertei o topo de sua cabeça. Nada muito sério. Comecei a jogar todos os restos de animais em que botava a mão, todos não causando grande efeito e eu já estava ficando sem opção. Minhas costas estavam coladas na parede de terra e eu agarrava o cabo do machado de maneira tão apertada que minha mão entorpecera. Só então me lembrei qual o motivo de ter trazido o machado e usei-o. Decepei uma de suas patas e, enquanto a aranha urrava, fazendo os pelos dos meus braços arrepiarem, eu procurei um apoio que pudesse me ajudar a subir. Então recebi um golpe que me jogou contra a parede; o machado voou da minha mão. Levantei com sofreguidão, pois a dor era terrível, e pulei para escapar de mais um golpe. Abaixei-me rapidamente, peguei um osso qualquer e atirei em seus olhos. Dessa vez tive êxito. A aranha berrou e eu usei suas patas para subir em suas costas.
Eu sabia que a possibilidade não existia, porém, torcia para que alguém na casa do outro lado da rua ouvisse aquela coisa. Tinha certeza de que os Müller haviam se precavido quanto a alguém ouvir o “bichinho” que eles criavam no porão, por isso, só podia contar comigo mesmo. Assim, agarrei-me firmemente nos seus pelos grossos e esperei ela sair do buraco. A aranha se sacudiu algumas vezes, mas não me derrubou. Quando ela parou, eu aproveitei para pular. Rapidamente ela se voltou na minha direção e avançou. Eu desviei-me de seus golpes, ao passo que tentava me aproximar da escada. De súbito um golpe me levou ao chão e a aranha tentou me acertar com sua presa. Eu rolei, mas não fui rápido o bastante. Sua presa acertou minha perna, prendendo-a ao chão. Eu tentei me livrar desesperadamente e senti que ela se preparava para o último golpe.
O curioso é que eu não sentia medo pelo o que ia acontecer, sentia medo de não poder contar à minha mãe como era o interior da casa. E isso deve ter me dado algum incentivo, porque comecei a chutar em tudo o que podia com minha perna livre. Um desses chutes acertou a pata decepada e a aranha urrou, como um grito humano, e me liberou do peso do seu corpo. Eu corri da melhor maneira que pude e, após uma recuperação breve, a aranha me perseguiu. Felizmente as correntes a detiveram bem a tempo de eu subir a escada.
Não olhei para trás, minhas pernas tinham vontade própria e me levaram para fora daquela casa sem que eu percebesse. Só quando cheguei à casa do seu Noel é que parei, e somente porque alguém me agarrou.
_ Meu Deus, Ricardo, o que aconteceu com você?
Eu nem me importei em responder. Aliás, tinha certeza de que não conseguiria. Sabia que meu nariz sangrava abundantemente e todo o meu corpo doía. Olhei para a casa dos Müller e pude ver, na janela do andar de cima, a senhorinha Müller séria e assustadora.
_ Ricardo, como você se machucou desse jeito? _ reconheci a voz. Era da minha mãe.
Eu ainda ouviria esta pergunta muitas vezes antes de dormir. Nem me recordo o que respondi, acho que falei qualquer bobagem sobre ter ido ver se havia mesmo sangue na casa dos Müller, mas me apavorei no meio do caminho e desisti. Então fugi correndo, tropecei e bati o rosto na cerca. Não sei se todos engoliram, mas meu pai ficou com expressão de descrença total, porém, teve a consideração de só me interpelar no outro dia.
O fato é que eu não conseguiria dormir e acho que nunca mais vou conseguir, não sem pesadelos inimagináveis. Meu pai deve ter intuído na mesma hora em que me viu todo estropiado, daquele jeito, por isso, não estranhei ele vir me ver assim que amanheceu. Ele deveria saber que eu não dormi.
_ Aquela sua historinha de ontem não me convenceu _ disse. _ Trate de me contar o que foi fazer na casa dos Müller. E não tente mentir. Eu vi você saindo de lá.
Bastou apenas um empurrão e aí toda a história foi despejada. Parava apenas para puxar mais fôlego para continuar falando. Contei tudo, inclusive que eu achava que aquela criatura era a responsável pela morte do Diego e do seu Noel. Meu pai ouviu sem piscar. No final parecia pálido demais e que precisava de uma dose de álcool.
_ Você viu a... _ ele parecia ter dificuldade para articular as palavras _ aranha? Tem certeza do que era? Disse que o porão estava escuro.
_ Eu sei o que vi. E alguém acendeu as luzes. Acho que foi a avó de Mateus.
_ Meu Deus _ ele levantou-se e começou a andar pelo meu quarto desorientado. _Tem ideia do que acaba de me contar?
_ Se o senhor está pensando que aquela coisa é perigosa e que os Müller são culpados por deixá-la em sua casa, então o senhor entendeu minha ideia.
_ O que acha que devemos fazer?
Esta pergunta me pegou totalmente desprevenido. Ao que me compete, eu era o filho e ele o pai. Eu obedecia e ele mandava. E se meu pai, Rogério Souza, um adulto bem resolvido, membro da classe operária e treinado em primeiros socorros, pedia a minha opinião, então a coisa estava feia.
_ Acredito que devemos falar com eles _ aquilo escapou, _ ouvir o lado deles e aí resolver o que todos devemos fazer.
Ele concordou e propôs que fôssemos imediatamente. Ao passar pela sala, minha mãe, que via televisão, abriu a boca para protestar, mas meu pai a ignorou. Eu havia trocado de roupa rapidamente antes de dormir _ ou tentar _ e nem me preocupei em vestir uma coisa apresentável.
Ao passar pelo portão, automaticamente olhei para a casa do seu Noel que continuava movimentada. Reconheci amargamente que isso jamais aconteceu quando ele estava vivo. Mas deixei de lado qualquer pensamento coerente ao pisar na varanda dos Müller. O pavor do que ocorrera em seu porão na noite anterior voltou com toda a força. Agarrei o braço do meu pai, amaldiçoando-me por ser tão bebezão. Eu esperava abrir a porta e encontrar a avó de Mateus trazendo pela coleira a aranha dos meus pesadelos. Contudo, quem atendeu a porta foi o senhor Müller. Estava visivelmente abatido, mas não senti pena.
_ Ah, bom-dia, Rogério _ ele disse, em seguida olhou para mim. _ Oi, Ricardo. Está parecendo bem melhor. Como se sente?
Eu queria agarrá-lo pelo pescoço, causar a maior dor possível. Ao invés disso, mantive minha postura de calmo e respondi: _ Precisamos entrar.
Ele nos olhou de um para outro, pensando como resolveria aquilo. Meu pai, já antecipando uma possível saída, disse as palavras que o colocaram totalmente à nossa disposição.
_ Sabemos sobre a aranha.
Joel Müller pareceu murchar sob nossas vistas. _ Eu sabia _ disse pesaroso. _ Alguém descobriria. Só não imaginei que seria um garoto.
Ele se afastou, permitindo nossa entrada. Indicou o sofá e se retirou. Ao voltar, a esposa o acompanhava, os rostos de ambos exibiam a mesma expressão _ resignação. Mas ainda não era suficiente para mim. Eu queria que Mateus participasse só para lhe dizer o que estava entalado na minha garganta.
_ Mateus está doente _ a senhora Müller disse, notando que eu olhava ao redor aguardando a vinda dele. _Ele não suporta o que aconteceu à aranha.
Deus, senti uma vontade tremenda de gritar. Se houve algum momento na minha vida em que eu quis dar um ataque, com certeza foi aquele. Então senti a mão de meu pai em meu ombro e relaxei.
_ Vá falar com ele _ meu pai sugeriu. _ Eu resolvo as coisas por aqui.
Aquelas palavras me tranquilizaram. Subi a escada sabendo que podia confiar naquele homem. Não sabia onde ficava o quarto do Mateus, então tive de checar todas as portas que encontrei. E nem por um segundo a sensação de que alguma coisa ia sair de trás de uma porta e me atacar deixou de me atormentar.
Não tive a necessidade de procurar muito. Mateus estava bem acessível. A primeira coisa que notei não foi sua debilidade assustadora, mas a coleção de insetos que me mostrara outrora. Sempre me arrepiei perante aqueles vidros e, depois de tudo o que eu passei a animosidade só aumentou.
_ Eu sabia que você viria _ disse com a voz fraca.
Eu me aproximei, controlando-me para não lhe dar um soco. De alguma forma, eu sabia que a culpa não era dele. Foi meu primo quem invadiu sua casa. Mas não mudava o que eu sentia. Frustração e dor. Eu precisava culpar alguém, descarregar todo o meu ódio. E ao mesmo tempo não queria odiá-lo. Não tinha ideia de como me comportar e acho que ele sabia disso porque foi o primeiro a falar.
_ Desculpe. Não sei o que posso dizer para mostrar como eu sinto tanto. Se houver algo que eu possa fazer, diga.
Eu balancei a cabeça, formando claramente um não. _ Eu só quero saber algumas coisas _ ele aquiesceu. _ Como conseguiram aquela coisa?
_ Você sabe o que os... nazistas faziam nos campos de concentração, não sabe? As experiências. Bertha é uma experiência. Minha família não se orgulha. Um parente antigo, meu bisavô ou trisavô, sei lá, conseguiu alguns ovos. Quando veio para o Brasil, trouxe caixas com uma porção deles, ovos enormes, do tamanho de um ovo de avestruz. Ele espalhou boatos sobre ter ouro nas caixas, por isso ninguém nunca desconfiou da Bertha.
_ Deu nome àquela coisa?
_ Entenda que eu gosto dela. É parte da família _ ele devia estar lembrando-se do que acontecera à aranha, pois uma expressão de desolação tomara conta de seu rosto. _ Meu avô comprou uma chocadeira porque, assim como o pai dele, queria ver até aonde isso ia dar. Apenas um ovo vingou. E demorou muito tempo para eclodir. Bertha nasceu anos antes de mim e parece que poderia viver muito mais do que eu. Mas acho que ela está velha e não sei se vai aguentar muito mais. E o ferimento que você provocou nela também não ajuda.
Fiz cara feia, pensando em dizer besteira, entretanto, deixei-o continuar. Eu já sabia o que devíamos fazer, então ele poderia falar, falar, que não mudaria minha ideia.
_ Como sabem que é fêmea?
_ Não sabemos. Não com certeza, mas é só olhar pra ela. Bertha tem uma postura tão maternal. _ Eu discordava, porém, fiquei quieto. _ Se acontecesse algo ruim a ela, eu não conseguiria ficar em paz _ seus olhos brilhantes fixaram-se nos meus e mesmo antes de eu falar ele já sabia. _ Você vai tirar ela de mim. O que vai fazer, Ricardo? Vai denunciar minha família? Vai capturar Bertha e entregar para alguns doutores fatiarem e, depois de acabar com ela, colocarem numa exposição?
_ Vocês têm de ir embora. Vamos dar um jeito na aranha.
Mateus começou a chorar e eu o odiei por me fazer parecer um monstro. Não queria mais ficar ali, então me levantei e desviei o olhar, só assim conseguiria falar.
_ Sinto muito, Mateus. Aquela coisa matou meu primo e o seu Noel. Quando eu encontrei o Diego, pedaços dele estavam faltando. Não posso deixar que ela saia impune _ reuni uma força enorme para dizer as seguintes palavras: _ Não quero ver você nunca mais.
Saí sem lhe lançar um único olhar e me reuni aos adultos no andar de baixo. Eles estavam em silêncio e o clima pesado parecia me sufocar. Meu pai sorriu ao me ver e, quando sentei ao seu lado, ele passou o braço pelos meus ombros.
_ Já se despediu do Mateus? _ ele indagou.
_ Sim, pai.
Meu pai olhou para os Müller e seu sorriso desapareceu. Nunca tinha visto aquele homem daquele jeito e isso me assustou e me agradou.
_ Vocês têm de partir hoje _ disse. _ Hoje à tarde, enquanto todos os vizinhos estiverem no enterro do Noel, vocês vão arrumar suas coisas e ir embora. De preferência, para o outro lado do país. Nós vamos cuidar da aranha.
Rapidamente virei-me para ele e meu pai me deu um olhar intenso. Imaginava que o “cuidado” dele tinha outro significado. Então nos levantamos e saímos sem despedidas, sem tristeza. Acredito que meu pai deve ter vigiado a família o tempo todo, garantindo que eles não tentariam poupar a aranha.
Passei o resto da manhã aguardando a chamada de meu pai. Quando ela veio, eu estava tranquilo. Antes de sair arrumamos alguns apetrechos. Daquela vez seria certeiro, definitivo.
Rumamos para a eterna casa dos Müller. Eles já tinham saído há algumas horas; eu sabia disso porque ouvira o barulho do seu carro passando em frente à minha casa. A porta estava aberta, então aproveitei para dar uma boa olhada. Os móveis estavam todos lá, o que podia significar que eles levaram só roupas e alguns mantimentos. Olhei tudo ao meu redor e pensei, sorrindo, que minha mãe ia ficar puta da vida se soubesse o que a gente ia fazer com sua casa adorada.
_ Vamos, filho, vamos acabar com isso de uma vez.
Descemos ao porão. A aranha se encontrava ainda mais presa do que antes. Ao menos, desta vez, os Müller cooperaram. Além das correntes, mais tiras de um tecido grosso a prendiam pelos tórax e abdômen. Talvez soubesse o que iria lhe acontecer porque seus gritos podiam ser ouvidos por toda a vizinhança. Meu pai abriu o galão de gasolina que trouxera e jogou um pouco em cima da aranha. Então fez um sinal para mim. Eu tirei um pedaço de pano do bolso e o enrolei na ponta de um pedaço de pau. Aí ateei fogo no pano e, após ele queimar intensamente, encostei na aranha.
Subimos a escada e saímos da casa com seus berros ecoando nos ouvidos. Meu pai mantinha a expressão neutra enquanto jogava gasolina na casa. Eu o imitei ao passo que fazia minha parte. Ficamos os dois observando as chamas consumirem o imóvel. Quando tudo já estava tomado pelo fogo, lentamente nos viramos e fomos para casa.
Às vezes dou uma passada lá para ver as ruínas enegrecidas da casa que me assustou e me fascinou tanto. Minha mãe pirou geral, tentou até uma campanha para exigir a reconstrução por parte da prefeitura, mas não deu certo. Quando vou lá, costumo ficar observando o local onde existia o porão, como agora.
Enquanto observo, estou à espera de encontrar alguma coisa que ligue à aranha. Até um ovo, sei lá. Eles acreditavam que ela era fêmea, certo? Mas no fundo, torço para não existir nada. Como nunca mais verei os Müller, também não quero ligações com aranhas. A cada vez que vejo uma, sinto uma vontade quase incontrolável de pisoteá-la. Porém, não faço.
Acho que algo de Mateus ficou comigo. E, graças a Deus, não é uma aranha gigante.