Efigenia e Salomé - se não há corpo, não há crime.
De certo, fora uma contrariedade tamanha, talvez mais que um aborrecimento, uma amargura profunda, quem o saberá?
O fato é que desfeita a amizade, caminharam as duas em lados opostos ou paralelos, mas sem um ponto em que se unem as retas.
Eram muito parecidas em essência: irascíveis e vingativas. Compartilhavam o veneno do escorpião,signo ascendente e regente.
Dizem que foi Saulo, o mote derradeiro à separação. E o que antes era um constante arranjar de armas, acordo de cavalheiros em tempo de guerra fria, era agora campo minado, sujeito às intempéries traçoeiras.
Depois de flertar com Efigenia e sucumbir aos desejos da carne, já cansado de ser de uma só, Saulo decidiu render - se aos apelos luxuriosos de Salomé. Desfrutou - lhe a cama e todas as artimanhas carnais que o desejo pode imaginar, inebriou-se de Salomé e no deleite desta, tornou - se infiel.
Traía a ambas e a ninguém jurava amar.
Mas, como nada encoberto ficar pode, uma da outra suspeitava e em certezas as dúvidas tornaram - se.
Evidentemente, o que se passou depois, já era esperado: ofensas vis a gestos eloquentes. Agressões morais e físicas. Juras de vinganças, Feitiços e maldições. Não houve páreo para a força que se movia no invisível.
Todavia, ninguém pôde com a vontade de Saulo que a nenhuma escolheu e resolveu- se mesmo lá para as bandas do Sul.
O tempo passou e parecia que a seu modo colocava tudo em seu devido lugar.
Saulo era agora caixeiro viajante e, vez ou outra, pensava em Efigenia, sobretudo, quando a fome e o frio apertavam.
Salomé, tornou - se uma conhecida feiticeira, especialista em ervas e unguentos. Fazia chás e garrafadas , rezava credos e profecias. Dançava ciranda no meio da noite, bebia cachaça e entrava no mar.
Efigenia mudou - se para São Paulo, onde se dedicava à dança do ventre que tinha como ponto alto, o número da cobra; uma jibóia de escamas claras e brilhantes, estima da dançarina que dividia com a jovem espécie fêmea, inclusive o leito.
No final do dia, sentava -se longamente à janela, olhando os passantes da rua, enquanto alimentava sua amiga e confidente silenciosa. Gostava de ouvir o estalido dos ossinhos devorados pela serpente, ou acompanhar a agonia da presa em seu derradeiro sofrimento, o que lhe parecia altamente relaxante.
Dançava duas horas seguidas, carregando nos ombros o peso da boa amiga que, solidariamente, segurava suas necessidades biológicas para o porvir como se sabedora fosse da importância do número do qual era parte.
As amigas de outrora eram agora amantes da solidão. Cada uma de seu jeito e a seu modo tocava a vida embalando o desejo da vingança.
E foi durante uma noite de lua minguante, em meio a uma de suas inúmeras rodas de magias e feitiços, que Salomé viu sair de si uma força tão poderosa que no mesmo instante sentiu que tudo poderia conquistar.
Efigenia caiu de cama e naquele mês não houve dança, nem festa. Só a cobra lhe fazia abrigo. Sozinha e resignada, acompanhava o tic tac do relógio na parede a soar. Com o tempo, rarearam as visitas e as saídas tiveram seu fim. Hibernaram as duas no silêncio dos dias, à espera do outono da vida.
Mas, era primavera e, a despeito de todas expectativas, soaram batidas repetidas à porta.
Era Saulo. Faminto de desejo e fome.
Deu - se o que comer.
Depois de saciar -se até não mais querer, Saulo caiu em um profundo e lisérgico sono, uma mistura de desejo saciado e efeito das gotinhas de uma mistura generosa que Efigenia depositou cuidadosamente em seu último drink. Nem se deu conta quando a cobra surgiu na boca do cesto e deslizou sobre o encosto da cama. Despertara de um jejum rigoroso. Foi envolvendo -o delicadamente, em pouco tempo formou uma espiral em torno do corpo aquecido. Os olhos de Efigenia acompanhavam extasiados a cena que se desenrolava debaixo de seu nariz. A jibóia alcançou o pescoço de Saulo sem, contudo, apertá - lo, ergueu - o, como se quisesse reverenciá - lo antes de come - lo. O corpo amolecido entre os músculos da àspide , assemelhava -se a um boneco de lã, tão entregue e absolutamente inerte aos últimos acontecimentos. De repente, o som de uma tosse ou um espasmo, pos fim ao transe em que Efigenia se encontrava. Assustou - se com a crueza do fim que se anunciava. Poderia salvá - lo, se quisesse.Aproveiteitar o juguete que a serpente fazia do infeliz, embalando- o como a um bebê. A jibóia, treinada, aguardava a autorização para devorar a presa. Como de costume, ela só iniciava o processo após um gesto de sua dona. A moça tomou nas mãos uma taça de vinho e sorveu o líquido lentamente. O olho encapsulado da jibóia fitava - a a miúde. Repetiam um passo de dança, um ritual íntimo que mantinham em segredo. A imagem da traição veio -lhe à mente. O rosto de Salomé e o veneno entregue como óleo perfumado, o que lhe adoeceu o corpo e alma. Mas, foi a lembrança do filho perdido pelo desgosto da traição, o o argumento decisivo. Encarando a cobra ininterruptamente, deu - lhe um toque suave na cauda. Foi o suficiente para que a espiral estreitasse, o que fez o corpo de Saulo reagir, um movimento de defesa inútil. O elo que lhe envolvia o pescoço esganou -lhe, houve um tremor de pernas, que logo cessou, a serpente fez dois giros, tornando a pressão insuportável. Ouviu - se o primeiro estalo, seguido de outros. Ela viu a cobra abrir a bocarra e gradativamente alinhá - la às dimensões da cabeça de Saulo. Nesse instante, Efigenia se retirou do quarto, levando o vinho, sentou -se na varanda, aproveitando os últimos raios do sol.
E,assim, cada um a seu modo, matou a fome que sentia. Saulo, Efigenia e a cobra Serafina.
Efigenia sentia - se curiosamente renovada. Aos poucos do silêncio funério no ocaso das horas, irrompia o som de estalos, bem mais fortes e menos sutis.
Isso parecia altamente relaxante.