A ESCRAVA
Pedro Henrique era o filho caçula de sete irmãs, portanto, por ser filho homem, caberia a ele a responsabilidade tocar os negócios da família adiante. O senhor Roberto Reis, pai do Pedro Henrique, herdara do avô uma grande propriedade monocultura de cana de açúcar e um bom número de escravos, o que fazia dele um dos homens mais importantes e ricos da região. Por este motivo, muitos senhores abastados quando souberam do nascimento do herdeiro, ofereceram as filhas pra um futuro casamento, no intuito de ampliar e consolidar os negócios.
O nascimento do Pedro Henrique foi motivo de festa e comemoração, mas a criança rejeitou o peito da mãe e não aceitava leite de vaca. O menino já estava ficando debilitado, quando resolveram buscar na senzala uma escrava parida que acabara de dar a luz a uma menina. O menino aceitou muito bem o leite da escrava e em pouco tempo estava forte e robusto. A escrava tornou-se ama de leite do Pedro Henrique e como recompensa por ter salvado a vida dele, permitiram que a filha da escrava viesse morar com ela na casa grande.
E as crianças foram criadas como irmãos ou mais que irmãos pois eram muito unidas. Eram duas almas num só corpo. O Pedro chamava a pequena escrava de Aurora, por ela ter grandes olhos cor de mel, ele a adorava e a protegia como se ela fosse um tesouro mui valioso. Não permitia que a insultasse por ela ser negra e filha de escrava. Brigava com tudo e com todos que se dirigiam a ela com maltrato ou indiferença. Era nítido que havia algo mais entre aquelas duas crianças. Mas não deram muita importância, pois naquelas redondezas eram comuns os filhos de fazendeiros brincarem com os filhos dos escravos.
Quando completaram doze anos o Pedro Henrique foi mandado para um colégio interno. Aurora permaneceu na casa grande fazendo pequenos trabalhos domésticos. Quando estavam com quinze anos o Pedro retornou. Fora recebido com festa, pois naquela ocasião seria apresentada a sua futura noiva. Mas para o desapontamento da família e convidados, ao ver Aurora, o Pedro correu para abraçá-la sem nenhum constrangimento. E eles se abraçaram, rodaram no salão como se não houvesse ninguém, olhava um para o outro com ternura e afeto que a mais débil das criaturas percebia que a li havia um grande amor. Eles permaneceram abraçados por muito tempo, alheio a tudo, como se aquele abraço recompensasse todo o tempo perdido, que nem perceberam o burburinho dos que estavam ali presentes. Abruptamente o encanto foi quebrado. O senhor Roberto Reis se dirigiu a eles com muita aspereza:
- Você está me envergonhado diante dos meus convidados, mande este escrava para cozinha e venha conhecer a sua futura noiva.
Aurora, constrangida, correu para o interior da casa grande. Ela nunca tinha sido tratada daquela maneira. O jovem ficou estarrecido, pois seu pai nunca tinha sido tão rude com ele. Mas não quis aborrecer e nem desacatar o pai diante dos convidados e educadamente o acompanhou em direção a uma família e lá estava Amélia, uma jovem loira de dezessete anos, filha de um grande fazendeiro. Esta seria a sua futura esposa. Após a festa, Pedro Henrique procurou Aurora, ela estava limpando cozinha chorando compulsivamente, pois até então, ela desconhecia o seu verdadeiro lugar naquela casa. Ele aproximou-se dela, mas faltaram palavras para lhe explicar o obvio. Ambos choravam. Então ele a abraçou forte e pela primeira vez a beijou. Os corpos reagiram e eles ficaram sem entender o que estava acontecendo, pois era uma sensação desconhecida e mais forte que eles. O despertar da sexualidade entre eles era algo que ainda não havia experimentando. Então se apartaram envergonhados e combinaram de se encontrar no dia seguinte no riacho onde brincavam quando criança.
Porém, no dia seguinte, Aurora não compareceu ao encontro. Ele a esperou por quase toda manha, mas ela não apareceu. Desolado e triste, resolveu voltar para casa. Porém, ao passar por uma pequena mata, viu um corpo amarrado numa árvore, ao se aproximar ele teve um surto de loucura, era o corpo de Aurora que jazia nu e acorrentado. Ele gritava como m animal ferido, batia em si com tanta fúria que lhe causava hematomas, bebia o sangue que escorria da boca de Aurora e das lascas das sãs feridas na tentava de trazer para si os últimos vestígios de vida da jovem, mas ela estava morta, ele também estava morto. Ali naquele tronco não era só um corpo corrompido e violado, era a sua própria vida, ali estava a razão da sua existência, a luz dos seus dias, a sua irmã e sua amiga, o seu grande e verdadeiro amor.
Aurora tinha se tornado uma linda mulher, tinha lindos olhos cor de mel, um corpo perfeito, era cobiçada por negros e brancos e invejada por negras e brancas, porém, ainda tinha alma de criança, não sabia o que era maldade ou malícia, pois até a fatídica noite da festa era tratada como m bibelô pelos membros da família. Apesar de não se importarem com a morte de algum escravo, o fato de Pedro Henrique abraçar a jovem escrava no meio da festa, não era motivo para castigá-la com tanto resquício de crueldade. Então, quem a teria matado?
Mas “o tempo é o senhor da razão” e capaz de sanar feridas profundas. E os dezoito anos Pedro Henrique se casou com Amélia, porém não a amava e era negligente como marido. Geralmente deixava a jovem esposa em casa para se aventurar com outras mulheres. Certo dia, Amélia cansada da indiferença do marido, confessou para ele que fora o seu pai que mando açoitar Aurora até a morte. Pedro Henrique não esboçou nenhuma reação, apenas saiu de casa e ninguém nunca mais o viu. Amélia não tinha tino para tocar os negócios, então tudo foi por água abaixo.
Hoje quem passa em frente aquele casarão abandonado não imagina que por traz daquelas ruínas, existia tanta ganância; tanto preconceito;, tanta prepotência; tanta falsidade e tanto ódio descabido e sem precedência. Lamentavelmente, estas mazelas não ficaram sob ruínas, elas são como ervas daninhas e se alastram nos corações inférteis através das gerações. Infelizmente estes herdeiros não percebem que a nódoa fétida não está na cor de pele, mas sim no caráter daqueles que mancharam e nos que ainda mancham a historia de sangue por se acharem superior e por odiarem sem causa.