A trilha
O velho caminhava firme pela trilha que cortava o matagal rasteiro. Na planície ao redor, donde se podia ver até onde se perdia a vista, em todas as direções, apenas vasto ermo. Acima de si, o céu azul com algumas nuvens e o sol que brilhava claro no ar puro. Sequer ao longe se via alguma variação no relevo plano. Nada como montanhas, declives, morros escarpados... Nada. Só a planície, enorme, selvagem. O silêncio era quebrado unicamente pelo som de suas gastas sandálias no solo arenoso da trilha e pelo vento que agitava o mato.
E o velho seguia só. Seu aspecto era o de um homem que carregava anos e anos sobre os ombros, a experiência de tão longeva vida refletida em seus olhos altivamente sábios. Sob o chapelão, longos cabelos e barba, trajes rotos, porém dignos. Em suas costas carregava uma grande mochila cheia de preciosidades sem valor aos que vivem pelas riquezas mundanas. No cinturão, uma pesada espada e, nas mãos, um cajado e um mapa de pergaminho.
Seus passos decididos estacaram-se de súbito. Segurando o chapéu, olhou o sol e calculou as horas. Já era tarde. Sacou do cinturão uma cabaça com água e tomou um gole. Enxugou o suor e consultou o mapa. Estava no caminho certo, e isso aliviou seu coração. Sempre aliviava. A esperança por algo muito melhor na chegada ao seu destino lhe enchia de estranha alegria. Sorriu sozinho e retomou a trilha. Nunca titubeava.
Após algum tempo, sua sombra se alongava mais e mais atrás de si. Parou. À sua frente, um repentino e confuso emaranhado de rotas. Nenhuma placa, nenhum indicativo do caminho. A trilha agora se dividia em várias outras; pelo aspecto, umas mais abandonadas, outras mais utilizadas. Todas traçavam rumos retilíneos para além de onde a vista alcançava, mas no horizonte nada havia de diferente ou que pudesse ser usado como referência. Mais uma vez consultou o mapa.
Enquanto lia, ouviu um farfalhar na vegetação próxima. Virou-se na direção do som, e viu alguém: este estava quieto, imóvel. O velho não fazia a mínima ideia de onde aquele indivíduo viera, pois não ouvira passos próximos de si há muito tempo; tempo sequer imaginado. Os dois ficaram se estudando por alguns instantes, e o velho percebeu que alguma coisa estranha havia naquele ser: seus pés eram idênticos, como se fossem dois pés esquerdos. Estava descalço e andrajoso, seu fedor vinha em lufadas nervosas. Era um homem, mas não parecia. Não parecia ter raciocínio humano ou alma. Não o conhecia, mas lhe parecia familiar. Seu olhar inexpressivo e sem brilho passava tremenda sensação de desesperança; mais pareciam dois poços profundos e vazios.
Os dois se encaravam sem esboçar um único som. Ao primeiro movimento do velho, um movimento qualquer, o homem lançou-se em disparada contra si. Sua corrida desengonçada era vigorosa, mas o velho possuía muita experiência e sagacidade. Não demonstrou medo do indivíduo, e desembainhou rapidamente sua espada. Defendeu o primeiro golpe com o lado cego da arma, e sentiu o peso do punho daquele ser; era muito forte. A expressão fria do inimigo tomou formas bestiais sob a ira do ataque, e continuou golpeando como um martelo o velho, que somente se defendia com o perfil plano e sem fio da espada.
Lutaram por longo tempo sem um desfecho sequer. Na sua profunda sabedoria, o velho sabia que logo escureceria e não poderia ficar naquilo por muito tempo, pois por mais habilidoso e tenaz que fosse, a juventude do rival poderia ser vantajosa a este em longo prazo. Em um rápido movimento, virou a espada, cortando profundamente a pele do braço direito do inimigo, que soltou um grito animalesco de dor. Aproveitando-se disto, o velho endireitou a espada e desferiu-lhe um poderoso golpe no ventre. Este, colocando suas mãos sobre o mortal ferimento que vertia muito sangue por entre seus dedos, ajoelhou-se e caiu de lado na trilha, emitindo pueris sons guturais. Seu sangue, vermelho vivo, parecia ferver a terra que era banhada pelo caldo em que se esvaía sua vida. O velho, no fundo de seu coração, lamentou o ocorrido. Olhando o outro sangrando a seus pés, limpou a espada, pegou suas coisas espalhadas no chão e voltou-se para a trilha. Não teria tempo sequer de dar um enterro digno ao estranho naquele momento; o faria pela manhã.
Relembrando que sua trilha multiplicara em inúmeros ramais e vendo que a lua já brilhava com alguma força conferida pelo sol poente, o velho desistiu de prosseguir naquele dia. Pouco ao longe viu uma árvore frondosa e foi até ela armar acampamento. Estava cansado e precisava de repouso.
...
A lua cheia e as miríades de estrelas iluminavam a imensidão coberta pelo capim rasteiro e brilhoso, movimentado caprichosamente pela leve bruma. O velho dormia sob a árvore ao lado de uma pequena fogueira. Na trilha, o outro ser estava caído sobre uma poça de sangue ressecado. Formigas subiam pela sua boca semiaberta e seca. Mas ainda respirava. Arregalou os olhos num forte suspiro. Cerrou os punhos e sentiu a dor do golpe; quase morrera. Mas não morreria fácil, tal golpe não lhe causaria ferimento fatal: o ser não era homem, mas um demônio. Colocou-se de quatro, retomando a força. Não acreditou que perdera a luta, e enorme ódio apossou-o. Arregalou os olhos, arranhou o chão de terra arenosa suja de sangue enegrecido e urrou. Urrou contra os céus, e debatia-se furiosamente em espasmos confusos e violentos. Parecia um animal manco enlouquecido, gritando a plenos pulmões, jogando terra e mato para o alto, imerso em fúria e soberba. Seus gritos profanos eram indistinguíveis, e perdiam-se pela vastidão. Socava o chão com tremenda força até quase arrebentar os nós dos dedos.
Babando e espumando de ódio, visualizou a fogueira sob a árvore; o homem estava lá. Seu olhar demoníaco partiu de furiosa frustração para a perversa alegria. Uma ideia maldita surgiu em sua mente, e vislumbrou sua chance de vitória. Enfrentando o homem jamais conseguiria, mas havia uma forma mais traiçoeira – como era de seu gosto – de derrotá-lo. Ajoelhou-se, cravou suas unhas compridas na carne peitoral e rasgou-se, gritando desgraçadamente. O vento aumentou e seu corpo desfez-se em fumaça negra com fedor de enxofre, densa como o fundo do mar, pesada como se fosse feita de puro chumbo.
O jato de fumaça subiu e preencheu todo o céu sobre a planície, assumindo a forma de tenebrosa nuvem de tempestade. Esta nuvem trovejava e expelia uma chuva de cinzas sobre o solo, relampejando rubros coriscos. O vento ficou ainda mais forte, e a nuvem transformou-se em um violento redemoinho, deslocando-se na direção do homem, que continuava a dormir imprudentemente alheio a tudo aquilo.
Chegando ao homem, o redemoinho tocou-o e rapidamente mergulhou em seu peito, puxando toda a nuvem para dentro. Em um piscar de olhos, o céu estava limpo de novo e apenas uma brisa moribunda percorria os campos. O velho continuava a dormir como se nada tivesse acontecido.
...
Pela manhã, o ancião acordou. Deitado de costas, olhando para cima, viu que a árvore sob a qual repousara estava totalmente desfolhada e morta. Piscou novamente e, focando a velha visão, teve pasma certeza do que via. Escorou-se dolorosamente sobre seus cotovelos e pôs-se sentado com incomum dificuldade. Olhando a planície ao seu redor, toda queimada pelas cinzas de algum vulcão, fedendo fumaça e enxofre, sentiu-se desolado. Não estava assim quando pegou no sono; tampouco se sentia tão mal.
Pegou seu cajado que repousava perto de si e, escorando-se nele, ficou de pé, suspirando. Sentia-se exausto e cheio de dores. Era velho, mas nunca sentira algo assim; era como se um peso enorme fora colocado sobre si. Olhando suas coisas ao redor, todas intactas, viu o mapa. Caminhando até ele, pegou-o e leu. Não teve reação. A esperança que sempre enchia seu espírito quando lia aquele antigo mapa transformou-se em amarga descrença. Jogou o pergaminho de lado e sentou-se novamente. Pela primeira vez desde que começou a caminhada, há muitos e muitos anos, sentia dúvida. A certeza o abandonou, junto com a esperança e a alegria em viver. Não entendia o que estava acontecendo, e assim ficou por muitas horas e dias, contemplando o vazio inexplicável que tomara sua alma. Acima de si o triste sol se levantava e se punha, dando lugar às estrelas e à lua sem brilho que iluminavam aquele deserto desfalecido até o sol nascer outra vez. O vento levantava as cinzas e fazia redemoinhos sinistros de madrugada, a poeira fustigava seu pétreo rosto, mas o velho permanecia catatônico.
...
Depois de longo e incalculável tempo, o velho levantou-se e seguiu a caminhada, mas não mais usou o mapa; apegou-se a uma estranha certeza dentro de si de que sabia para onde ia. Seus pés o levaram a regiões sombrias, muito diferentes daquele risonho lugar que era o objetivo de sua caminhada. Agora se arrastava como um vulto por paragens sem luz e sem vida, e os penhascos e abismos escuros o satisfaziam funestamente. Passava longas horas do dia meditando coisas sem sentido, e suas noites tornaram-se atribuladas. A desgraça o havia tomado sem sequer perceber ou esboçar uma reação. Ruía por dentro e estava longe, muito longe de seu destino.
Numa de suas andanças por lugares mortos, vislumbrou uma pedra muito alta. Pateticamente arremedando sua antiga vitalidade, escalou mancando os calhaus frios e enegrecidos da encosta do penhasco. Alcançando o topo, olhou para baixo. Tentou se lembrar de como chegou àquela situação, mas sua mente estava tremendamente confusa. Guardava dentro de si uma semente de luz, mas estava cercada por trevas. Uma lágrima escorreu pela sua face cavada de rugas, olhou para baixo; nada via. Era muito profundo o vale. Vale da morte... Fechou os olhos, resoluto. Abandonou-se de si mesmo para a fatal queda.
Estacou.
Estava tomado por um impulso interno que não o permitia pular. Desesperado por incomum sentimento, sentia um tremendo combate interno. Algo estranho a si estava tentando dominá-lo. Por dentro sentia como se queimasse nas chamas do inferno, e sua consciência retornou plena por um instante, como o sol que aparece por entre as nuvens num dia chuvoso. De repente, percebeu o que ocorria. O forte velho rangeu seus dentes e tensionou todos os músculos. Abriu os olhos para o alto e soltou forte grito que ecoou no abismo, causando a revoada de alguns corvos e abutres de suas encostas.
O velho era sábio em demasia. Percebeu que era tarde demais. Reunindo todas suas forças, pegou a espada da bainha e tentou atentar contra sua funesta existência, mas foi contido. Caiu no chão, sofrendo, gritando. Sua consciência se esvaía lentamente como o fechar de cortinas de uma peça teatral. No seu último instante, vislumbrou sua face pelo reflexo da lustrosa espada que jazia ao seu lado: seu olhar era o mesmo do seu adversário da luta passada: frio, sem vida, vazio. Olhou para os pés; ambos esquerdos. Até as surradas sandálias tinham os dois pés esquerdos. Já agia sob a influência do demônio há muito tempo e não sabia. Sem forças e sem esperança, exaurido, entregou-se.
...
O vento fustigava o cume da alta montanha, balançando os trapos da roupa que cobria o corpo caído no seu alto. Um coiote fora atraído para o fresco cadáver, farejando sua pele enrugada e imunda. De orelhas empinadas, tomou grande susto quando aquele homem morto começou a se mexer. Correu enquanto este se levantava, vacilante. Sua face era impassível, inexpressiva. Seus olhos de profundo negrume percorreram o ambiente ao redor. Sentia-se em casa, mas aquilo não lhe bastava. Precisava de mais em sua existência amaldiçoada e insatisfeita. Olhou para o oriente e viu um pedaço de céu azul. Um maldito pedaço de céu azul. E planícies verdejantes.
Principiou sua marcha. Não raciocinava como homem, e ninguém era capaz de entendê-lo. Agia conforme sua condição demoníaca. Outras vítimas eram necessárias.
O pequeno coiote viu sua última refeição escapar, de longe. Seus instintos animalescos o preveniram de ameaçadora coisa. Seu potente focinho não farejava um cadáver, mas algo pior, muito putrefato, repugnante até para o pior dos carniceiros. Mas essa coisa estava viva, alucinantemente perigosa, curvada à esquerda, afastando-se para o leste, para o nascente, costas banhadas pelas luzes rubras do crepúsculo daquelas terras malditas em sua marcha de morte.