FRUTA DE VEZ

FRUTA DE VEZ

Da janela do meu quarto avistei do nada dois cachos de mangas na árvore do vizinho.

-- "Extemporâneas!" -- pensei em voz alta. De facto, já estávamos em maio, quando as noites começavam a ser mais frias. Eu abria as bandeiras da janela, de manhã bem cedo, quando topei com elas. Dali onde observava, pareciam estar levemente amareledas, se bem que podia ser apenas uma impressão dada pelo sol as inundando de luz matinal. Sorri e fui cuidar da vida.

Dia seguinte, a mesma visão a me surpreender logo ao me levantar. Em tempo, moro em uma casa assobradada e meu quarto fica no pavimento superior. Do outro lado da rua, em terreno grande e cheio de árvores, tinha por vizinho uma pessoa da qual eu quase nada sabia, visto mui raro quedar em casa. Desconhecia haver crianças ou mulheres ali, sequer um cachorro. Nas poucas vezes que o vira, apenas entrara silencioso em seus domínios. Uma vez eu lhe acenei, mas, antes que dissesse palavra, ele meneou a testa de modo vago e entrou. -- "Eis alguém ainda mais reservado e tímido que eu!" -- pensei comigo -- e nunca mais me dei conta dele ou o vi.

E assim se repetiu todas as manhãs por uma semana inteira: Levantava, abria as janelas e me deparava com dois absurdos cachos de manga em pleno maio! Lembrava que, em dezembro último, tive de ralhar com minhas filhas por, da rua, tacarem pedras contra as mangas daquele pé, sob risco de acertar algo ou mesmo alguém no quintal de meu taciturno vizinho. Lembrava ainda de como fui ter com elas e, usando de um cano grosso de plástico, as maravilhava pegando uma por uma as mangas que, sacudidas, calhavam por dentro do tubo até minha mão. Elas se fartaram naquele dia e eu não tive reclamação de quem quer que fosse. Expliquei a elas que, embora a lei permitisse colher frutas de galhas que avançam para fora de propriedades vizinhas, não deixava de ser um transtorno e fonte de rixas aquela situação. Para dar ainda mais autoridade à minha fala, evocava os termos explícitos do texto legal sobre aquilo. Rindo a valer das mangas entubadas, pouca ou nenhuma atenção deram sobre minha tosca exegese do Código Civil e seu "direito de vizinhança"... Não que eu seja legalista ou coisa do gênero, mas achei interessante a oportunidade para, em face de um caso concreto, fazer ver às minhas filhas os conflitos de interesses e as regras que os arbitram. Ledo engano!... Elas tinham então mais interesse nas mangas que em conflitos. Compreensível, diria o leito, mas eis que percebo o ruído de passos do outro lado do muro, afastando-se... Era o vizinho! Ele ouvira tudo e não dissera nada.

De qualquer modo, isso aconteceu em dezembro, ocasião em que a cada canto de minha cidade se vê mangueiras carregadas de frutas maduras. Na estação das águas, quando o calor tropical não dá tréguas sequer à noite, o sol, em seu movimento aparente, se mostra então cada dia mais próximo e imenso ao prumo do zênite. Como se quisesse torrar às pedras e crestar todo o chão, brilhava forte a ponto de deixar o ar mais denso. Logo, esse mormaço prenunciava ao cair da tarde o azul do céu sumir sob nuvens escuras e pesadas. Estas avançavam ameaçadoras como a vanguarda de um exército e, afinal, se precipitavam em tempestades estrepitosas com relâmpagos clareando os longes do contorno das serras.

Agora, entretanto, céus limpos abrigavam um sol constante. A vida corria simples em dias mais curtos e frescos. A doçura das mangas era já uma lembrança longínqua quando, de súbito, topava com mangas onde menos esperava vê-las, isto é, em minha própria rua! Com efeito, todas as mangueiras que me lembrava de ter visto nos últimos meses estavam cheias tão-só de folhas. Sequer a florada das mangueiras havia começado. Mangas, à essa altura do ano, somente aquelas abominações sem gosto vendidas no mercado a preços exorbitantes... Variedades comerciais que só tinham tamanho, aparência e nomes cujo anglicismo apenas lhes ressaltava a mediocridade. Não passava de fruta amadurecida fora do pé isto que vendiam. Sequer devia ser chamada de manga!... Recordo de como se comia manga no meu tempo de menino: Trepado ainda no pé, a fruta dulcíssima e tão fresca, cheirando ainda a seiva nodosa de recém-colhida. A casca, gradiente de tons solares, do sanguíneo ao ouro. Derretia na boca... Isso é que era bom! Fico triste vendo minhas filhas pedindo essa coisa insossa, verde, que vendem por ai... Manga? Era um sabor de dezembro aguardado pelo ano todo. A do mercado, uma irreconhecível massa dura!

Pensava esta tolice é outras semelhantes quando fui assustado pelo barulho do motor de uma motosserra. Por mal dos pecados, meu sempre tão discreto vizinho resolvera justamente àquela manhã podar as árvores de seu pomar. Começara por um frondoso e alto abacateiro cujas galhas caiam pesadas e grossas no chão... Era triste de ver aquela máquina do demo amputando copas tão frondosas!... Todavia, nada possuía dali senão a paisagem afetiva... Apesar de muito desgostoso com o facto, é sabido que as razões do coração não se impõem sobre interesses ou necessidades de terceiros. Fui trabalhar e esqueci o caso.

* * *

Quando volto para casa no fim da tarde, eu me deparo com o pé de manga do vizinho parcialmente podado. Os frutos temporãos ainda estavam lá, levemente amarelados. Mais que depressa fui pegar o tubo de plástico para resgatá-las de seu fim eminente nas galhas que seriam cortadas. O leitor provavelmente me corrigirá argumentando que as colher não as livrava da morte, antes a antecipava. Ao que vou rebater com a insofismável ideia de que se existe vida após à morte para as mangas é justamente dentro do estômago de alguém, servindo de alimento... Concedo: Que pensamento absurdo! Deve ser fome... Deixai-me com minhas mangas bem-aventuradas, caro leitor, que vos deixo com vosso ceticismo. A mim, porém, penso que tenho a melhor parte dessa economia da salvação em meu paraíso estomacal para mangas!

Chego perto da árvore mutilada e começo a cutucar as frutas com meu tubo de plástico. Pena que as meninas ainda estão na escola! Elas adorariam ver essas mangas serem entubadas... Sem embargo, a poda seguia sobre as galhas e se esperasse por elas corria o risco de ficar sem nada. Cutuco uma, não cai. Cutuco outra, nada! Pela dificuldade imprevista, logo percebi que não estavam maduras. Enquanto isso, o ronco da motosserra volta a troar do outro lado do muro junto daquela árvore. O vizinho... Eu tinha de colher rápido as mangas! Bati mais forte e feri a casca da manga sem que, contudo ela caísse. A seiva pingava... Um galho oscilava do outro lado do muro, prestes a cair de vez! Tenho-de sair logo! Impaciente, bati sem maiores cuidados e ela caiu no chão, trincando e sujando. Que lástima! Exclamei comigo mesmo. Perdi essa. Tentei outra que, igualmente dura, demorou muito a cair. Assim, uma após outra, colhi com dificuldade todas as mangas dos cachos enquanto a árvore era podada e seus galhos caiam. Peguei meu butim fui para casa. As mangas eram amarelo-claras, dum tom pastel opaco que não era comum em frutas maduras. Para meu desconsolo, comê-las somente após amaducê-las nalguma estufa, tal-e-qual as frutas do mercado que eu tanto menosprezava!...

Dia seguinte, saindo para trabalhar, ao invés das galhas da mangueira topo com meu vizinho junto a seu muro com uma espécie de sorriso zombeteiro no rosto. Folgando para cima de mim, irônico, ele me pergunta:

-- "E as mangas? Como estavam?"

-- "Estavam de vez."

Respondi seco com o mesmo meneio vago de cabeça que com que ele me saudava.

Ele se foi, satisfeito consigo mesmo, enquanto eu me afastava dali com o sentimento de que apreciava mais meu vizinho quando ele era tímido e discreto.

Betim - 10 05 2016