Amoreiras
As mãos idosas ainda serão ágeis daqui a dez anos. Sim, certamente serão. Dez anos. Esse é o tempo que a amoreira começará a dar seus frutos. Será um belo arbusto esse que minha querida acabou de plantar. Por favor, não estranhe esse devaneio, pois quando se chega a minha idade, noventa e nove, quase um século, as coisas adquirem uma noção diferente de futuro. Ele, esse tal de futuro, passa a existir somente para os outros; para nós mesmos, só se perfazem túmulos e terra sobre a pele.
Vi Cândida plantar a muda na terra fofa e já a visualizei com dez anos a mais, noventa e seis ou noventa e sete, não sei ao certo, colhendo as amoras e levando a boca saudosamente pensando em mim. É engraçado pensar que daqui a poucos minutos estarei morto e que ela ainda ficará um tempo solitária nesta casa.
É bom poder ter uma visão do gramado aqui da janela do quarto. Estou no quarto, deitado na cama onde passei os últimos sessenta anos ao lado de minha amada. Minha esposa poderá acordar todos os dias que lhe restam aqui, depois abrir os olhos saudosos e encarar a amoreira que crescerá dia a dia. Lembrará então que estarei ali, a poucos metros de distância, esperando por ela.
Agora mesmo, enquanto gera com as mãos nuas a cova onde me deitarei, ao pé da muda de amoras, vejo Alice fazendo a mesma coisa um pouco ao lado. Será a vigésima cova a ser aberta em nosso quintal. Temos praticamente um pomar em linha reta cruzando o jardim. Minha filha Alice compreende bem o ritual e o manterá. Cresceu com ele e já passa para os filhos também. A séculos moramos nesta casa e plantamos as árvores ao pé das covas onde depositamos nossos corpos, logo abaixo de suas raízes. Partilhamos nossa experiência através dos frutos. Passamos o conhecimento através dos sumos. Benditos somos nós e nossos frutos. Gosto dessa idéia de sermos benditos.
Agora é hora de um esforço final. Vejo que o buraco já está grande o suficiente para que eu me deite. Retiro minha cabeça suarenta dos travesseiros por uma última vez e me esforço para erguer meu corpo requebrado, dando meus passos finais até meu penúltimo refúgio. Penúltimo, pois serei vivo através das gerações que se alimentarem das amoras. Meus descendentes serão meu refúgio final, como eu sou de meus antepassados.
Quando passo por Cândida, vejo seus olhos rasos e úmidos, mas nenhuma lágrima escorre por suas faces para encontrar o sorriso farto mais abaixo. As mãos sujas da terra revolvida passam nos sulcos de minha pele encarquilhada. Elas apontam para a pequenina amoreira, no momento em que entro na cova e me deito com um estranho conforto e prazer. Deixo meus olhos encontrarem a muda e sorrio, balançando a cabeça em um gesto afirmativo. Ela escolheu uma bela muda para ser minha lápide.
Ficamos assim por uma hora mais ou menos, não sei precisar. Eu no fundo do buraco e Cândida ao lado de minha amoreira, sentada linda como sempre, ou linda como nunca, não sei ao certo. Linda basta. Será linda também quando chegar sua hora de juntar-se a mim. Vejo suas mãos limpas da terra, cruzadas sobre o peito como as minhas agora estão. A imagem me vem em ondas de paz e quando dou por mim, sei que são pensamentos de outra vida. Sei que no momento em que vejo as mãos de Cândida livres da terra, a visão está apenas nos resquícios de minha consciência, pois essas mesmas mãos estão cobrindo meu corpo com terra, ao pé da amoreira.
Passei da vida para a vida.
Fim.
Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e NecroZine (www.necrozine.blogspot.com), além de moderador dos Grupos "Tinta Rubra" e "Fábrica de Letras" pelo Yahoo!