O Gnomo da Srta. Agnes

A Srta. Agnes era uma mulher alta, magricela, com cabelos secos, quebradiços, enrolados em coque no alto da cabeça. Havia completado 38 anos recentemente e nunca em sua vida conseguiu manter o interesse de alguém por sua triste figura. É certo que seu coraçãozinho solitário batera com mais intensidade muitas vezes, inchado de paixão, por jovens, homens de meia-idade e até por alguns velhos com encanto já desbotado – cronologicamente falando, pois sua sina de espanta-namorado vinha desde os tempos da adolescência. Os indivíduos a levavam a um cineminha, um passeio na praça, um jantar em restaurante popular. E desapareciam no dia seguinte. Um deles, professor aposentado barrigudo e careca, disse-lhe impiedosamente:

– Você é a mulher mais pedante da face da terra.

A Srta. Agnes rebateu:

– Nós somos iguais, gostamos de literatura.

– Iguais? Não fico o tempo todo falando sobre as obras de Gérard de Nerval, Lautréamont, Raymond Roussel, Klosowski, Qorpo Santo e toda essa fauna de escritores esquisitos. Quem diabos neste mundo já leu Qorpo Santo?

Depois dessa afronta, apagou do peito qualquer resquício de esperança amorosa, trancou-se no seu mundinho de névoas e mergulhou no trabalho com zelo e dedicação – era bibliotecária do Colégio Santa Ifigênia. E assim, sem ilusões, tornou-se ainda mais antipática. Se já não tinha amigos no trabalho – e muito menos fora dele – sua cara emburrada matou definitivamente o sentimento de caridade de alguns colegas que lhe dirigiam um bom-dia no início do expediente. A Srta. Agnes não se importou, parecia mesmo morta para as mais reles emoções.

*

Numa sexta-feira, a Srta. Agnes estava tão deprimida que quase ao fim do expediente dirigiu-se à secretaria do colégio e reivindicou suas férias – não as tirava havia pelo menos uns cinco anos. Foi prontamente atendida. Voltou à biblioteca, e, para bem dimensionar seu abatimento, pegou emprestado para ler em casa o livro Do It Yourself Coffins (Esquifes, faça você mesmo), de um autor chamado Dale Power. Seus planos para gozar as férias? Dormir até ao meio-dia, comer, ver tevê, ler, ler e ler. Durante um mês mão botaria os pés fora de casa. Entrou no seu veículo Gol com mais de dez anos de uso e tomou o rumo de seu minúsculo apartamento de sala, quarto e quitinete, na Rua das Magnólias, Bairro Primavera. As cinco e pouco da tarde, horário de verão, o dia era de uma claridade intensa e as pessoas circulando pelas avenidas pareciam alegres, festivas, o que só aumentava a desolação da Srta. Agnes. Tão emocionalmente debilitada, e querendo chegar logo em casa, nem percebeu que pisava fundo no acelerador – e atropelou um homenzinho que surgiu como que num passe de mágica bem diante do veículo. Não só atropelou, como passou por cima do corpo, sentiu que o carro corcoveou como um cavalo de rodeio e – talvez fosse só imaginação – achou ter escutado o barulho medonho de ossos sendo triturados pelas rodas. A Srta. Agnes conseguiu parar o Gol três metros adiante, desceu do carro e correu para o sujeitinho estendido no asfalto numa grotesca posição de pernas e braços entortados. Ficou um instante de pé ao lado do corpo, apavorada, incapaz de raciocínios rápidos. Sua mente registrava apenas a absurda aparência de sua vítima: devia ter um metro e cinquenta, se tanto, era gordinho e vestia-se com um ridículo terno verde-floresta, de veludo; colete vermelho de seda; gravata larga azul, de crochê; calçava um estranho par de botas marrom de cano sanfonado – tinha uma cabeçona de bastos cabelos crespos grisalhos e uma barba imensa, também cinza, que ia lhe dar na região do umbigo. A Srta. Agnes lançou um olhar para os lados em busca de auxílio, era incrível, mas a rua estava deserta. Não havia um único vivente nas cercanias, tudo parado, imóvel, as lojas sem ninguém – não havia ruído de insetos, nem pio de pardais, sequer uma brisa acariciava as poucas árvores da calçada. Percebeu, ainda, que havia partículas de pólen suspensas no ar, estáticas, não se moviam de jeito nenhum. Estava começando a tomar consciência da inusitada imobilidade do tempo quando ouviu um sussurro saindo da boca do homenzinho. Ajoelhou-se, curvou a cabeça e tentou entender o que ele estava dizendo.

– Me ponha de pé! – gritou o sujeitinho, a voz rascante, arenosa e autoritária. Agnes levantou-se, assustada. E não fez menção de ajudá-lo. O homenzinho firmou as mãos gorduchas no asfalto e ergueu-se. Espanou a roupa com os dedinhos volumosos e depois encarou a Srta. Agnes. Tinha uns olhos grandes, pupilas azuis e córneas raiadas de veiazinhas vermelhas.

– Vou levá-lo a um hospital… - disse ela. Ele fez beicinhos com os lábios grossos e lascivos.

– Não precisa se preocupar, mocinha, eu estou bem. Mas aceito uma carona até a minha casa. Durante o trajeto eu te indico o percurso.

E sem se preocupar com o aturdimento da Srta. Agnes, dirigiu-se ao Gol, abriu a porta e sentou-se no banco de passageiro. A Srta. Agnes ainda ficou alguns minutos estacada no mesmo lugar, depois agradeceu aos Céus pela graça de nada ter ocorrido de mais grave ao homenzinho e foi tomar a direção do carro.

– Sou a Srta. Agnes – ela disse enquanto girava a chave na ignição.

– Meu nome é Dr. Frobel – ele disse, pegou o livro que a Srta. Agnes levava para ler, folheou-o e, subitamente, o arremeteu para a calçada.

– O que o senhor fez?! – gritou ela, indignada. O Dr. Frobel deu de ombros.

– Uma garota bonita como você não deve ler essas coisas.

A Srta. Agnes sentiu o impacto daquelas palavras no centro de seu coraçãozinho solitário, o rosto enrubesceu de comoção.

– Ora... O senhor... O livro não era meu, era da... – E não terminou a frase, deliciada como estava com a sensação de plenitude provocada pelo singelo elogio.

Assim que o carro se pôs em movimento, a normalidade do dia se restabeleceu, a rua encheu-se de vozearias, buzinas de veículos, locutores anunciando produtos nas portas das lojas, vento saturando o ar de polens, camelôs sobrecarregados de bugigangas – uma tarde de sexta-feira igual a tantas outras. O Dr. Frobel, refestelado no banco de passageiro, começou a cantar uma alegre canção num desconhecido e cativante idioma de poucas vogais.

*

O Jardim Vitória, na zona Sul, era bairro mais afastado de Cantuária. O Dr. Frobel ali morava, numa casa de pedras britadas em cor natural, a última da Rua Afrodite. Plantada no meio de um pasto de capins ressequidos, a casa isolava-se das demais por cerca de uns duzentos metros. Por causa dessas características, seria improvável que uma mulher ressabiada, machucada pelas vicissitudes da vida – como era o caso da Srta. Agnes –, pusesse os pés em suas dependências. Mas a Srta. Agnes aceitou o convite para tomar uma xícara de chá com o homenzinho. Por um motivo bastante prosaico: estava adorando a companhia do Dr. Frobel. Sentia uma coisa estranha espraiando pelo peito, uma vontade de cantar e de sorrir sem qualquer motivo – e se algum dia em sua existência a Srta. Agnes tivesse conhecido os sintomas da felicidade, poderia decifrar com absoluto acerto aquele sentimento a lhe bulir com o espírito.

A sala da casa tinha uma mesa quadrada coberta de minúsculas cadeiras de balanço do tamanho de um punho fechado. Três ou quatro delas estavam oscilando para frente e para trás, como acontece quando a gente deixa apressadamente o seu conforto. Eram brancas com almofadinhas dispostas nos assentos e nos encostos. Havia uma poltrona de couro, grande o suficiente para caber o corpo do Dr. Frobel, encostada à parede de um branco imaculado; um quadro de paisagem nórdica logo acima – e só. Nada mais havia na sala.

– Vou tomar um banho e trocar de roupa – disse o Dr. Frobel. – Você, como uma boa mocinha, não teria a gentileza de nos preparar o chá?

– Será um prazer!

– A casa é pequena, você vai achar a cozinha com facilidade – arrematou o Dr. Frobel, e sumiu da sala. Bem isso: sumiu. A Srta. Agnes não presenciou o passe de mágica, visto que tinha os olhos voltados para as cadeirinhas. A curiosidade e encantamento eram tão grandes que apalpou com o dedo indicador uma almofadinha de um dos assentos. Estava quente. Será mesmo que havia alguma coisa viva sentada aqui? indagou-se com uma ponta de sorriso – achava muito divertido deixar a imaginação brincar com fantasias malucas.

Seguiu para a cozinha. Havia um fogão comum, de quatro bocas, a gás, uma pia de mármore com torneiras de água quente e fria, uma mesa de granito no centro e, sobre esta, outra mesa – baixinha e com o diâmetro de um televisor de 26 polegadas. Em volta da pequena mesa mais cadeirinhas, estas com espaldar alto. À frente das cadeirinhas, pratinhos quadrados e copinhos do tamanho de dedais. Havia armários embutidos em todas as paredes. A Srta. Agnes abriu uma das portas à procura de vasilhas e do chá e deu de cara com um serzinho encolhido no canto como se estivesse apavorado. Vestia-se com um terno axadrezado, na cor vinho e cinza, tinha cabelos louros e encaracolados como os anjinhos que a gente vê nas pinturas renascentistas. A Srta. Agnes mediu-o com um breve olhar, calculou que o corpinho caberia por inteiro na concha de sua mão, pegou-o, divertindo-se com a birra estabanada do pequenino, socando e chutando o ar como um lutador de MMA. A Srta. Agnes estava encantada. Tentando acalmá-lo, aconchegou-o no peito com uma vontade doida de cantar uma canção de acalento. Então sentiu que uma mãozinha atrevida abarcava o bico de seu seio nunca dantes tocado por qualquer ser, humano ou não. A mãozinha começou a fazer massagens e a Srta. Agnes sentiu que explodia dentro de si uma caldeira de lavas vulcânicas – experimentou um prazer tão intenso que não seria possível compará-lo a nada. As pernas amoleceram e, vencida pelo gozo extraordinário, A Srta. Agnes foi escorregando pela parede de armários e sentou-se no chão, as pernas distendidas, para em seguida mergulhar numa deliciosa inconsciência.

Acordou com música e rodeada por um batalhão de gnomos – machos e fêmeas – dançando aos pares, pelo ladrilho vitrificado da cozinha. O Dr. Frobel estava mexendo em panelas sobre o fogão, de avental roxo e gorro de cozinheiro; ao vê-la se recuperando do breve desmaio, sorriu:

– Meus parabéns, mocinha – ele disse –, você acaba de contrair matrimônio com Zástropro, meu filho mais velho.

*

A Srta. Agnes continua morando no apartamentozinho de sala, cozinha e quitinete, mas seu comportamento e aparência mudaram. É uma mulher jovial, comunicativa, frequenta os melhores salões de beleza e usa roupas da última moda. Ninguém sabe como assim de repente tornou-se uma mulher tão viçosa, no dizer dos mais velhos; uma gata, no dizer da rapaziada. Ninguém faz a menor ideia de como enricou tão repentinamente. Mandou às favas seu emprego no Colégio Santa Ifigênia, comprou uma livraria suntuosa no centro da cidade e um carrão Citroën modelo do ano. E até infantilizou-se, comentam alguns. É que ela carrega pra onde quer que vá um bonequinho de terno axadrezado e cabelos louros encaracolados. E como cuida, beija, acaricia, penteia, perfuma o seu brinquedinho! Parece até uma boba alegre, dizem as invejosas.

O único que sabe das coisas é o seo Pedro, o porteiro noturno do prédio da Srta. Agnes. Dias atrás um inquilino idoso exigiu que ele fosse alertar a moradora do apartamento no andar de cima que o barulho de corpos fornicando era uma indecência. O porteiro foi bater na porta da Srta. Agnes. E quem atendeu foi um jovem musculoso com mais de 1m90 de altura, nu e com um pênis cavalar. O rapagão meteu-lhe um dedo nas fuças e prometeu quebrar-lhe todos os ossos se não desse no pé naquele mesmo instante. Seo Pedro nunca sentiu tanto medo na vida. O moço fortão tinha cabelos louros e encaracolados. Idênticos aos do bonequinho da Srta. Agnes. Bem que seo Pedro tentou contar a história para seus amigos, mas foi alvo de gozações – e o que é pior: agora dizem às suas costas que ele tem um parafuso a menos na cachola.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 07/06/2016
Código do texto: T5660566
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